INTRODUÇÃO
“E eis que depois da mulher, do louco e da criança, uma quarta figura da alteridade surgiu diante do que a sociedade ocidental definia por normalidade: o selvagem. E, à semelhança das três outras figuras, esse selvagem era mudo, isto é, podia suportar um e até vários discursos estereotipados.” (ROGNON, 1991 [5], p. 12)
O presente artigo discute a identidade indígena, como ela é abordada em julgados que envolvem questões penais e como deveria ser observada pela magistratura brasileira. Estas não são questões originais, mas recorrentes e ainda não solucionadas. Ou melhor: solucionadas estão, mas em afronta a direitos fundamentais assegurados aos indígenas na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF/88). Portanto, demandam revisão e renovado debate.
A identidade étnica é tema bastante explorado pelas Ciências Sociais em suas mais diversas disciplinas acadêmicas, como a Psicologia, a Sociologia e a Antropologia, por exemplo. “[T]odas empenhadas em trazer sua própria abordagem para lograr uma explicação adequada das relações interétnicas e de suas repercussões no indivíduo e na sociedade” (OLIVEIRA, 1976 [6], p. XI). É a partir dos desenvolvimentos da última que realizaremos nossa exploração.
Diante da proliferação de estudos acerca da identidade étnica, principalmente a partir da década de 1970, cabe questionar sua repercussão nos campos do Direito e nas maneiras a que este lança mão para reconhecer a identidade indígena a partir da CF/88. Apesar de a CF/88 ser considerada um marco divisor no reconhecimento dos direitos dos indígenas no Brasil, do ponto de vista da efetividade de tal reconhecimento, o caminho a percorrer é ainda longo. Talvez se possam ampliar as reflexões de Luís Roberto Cardoso de Oliveira (2002) [7] a essa parcela da população, quando afirma que o reconhecimento de fato de identidades distintas refira-se a mudanças que demandam uma aceitação genuína de certos valores, cuja efetivação implica em sua internalização. “Ou seja, trata-se de um processo que requer alterações não apenas no campo do comportamento, mas no das atitudes, e que não pode ser implementado [apenas] por decreto ou a partir de iniciativas [...] legislativas” (OLIVEIRA, 2002 [7], p. 96). Parece ser este o caso em questão.
As identidades coletivas distintas trazem consigo direitos diferenciados. “Direitos diferenciados por grupos”, conforme expressão de Kymlicka1 [8] (1995 apud OLIVEIRA, 2002 [7], p. 95). O reconhecimento constitucional é imprescindível, até mesmo porque abre a possibilidade de luta por direitos perante o Judiciário. Todavia, é insuficiente quando se observa que o próprio Judiciário, mesmo que em parte, não reconhece a amplitude dos direitos dos indígenas em todas as suas consequências, demandando, então, uma mudança de atitudes deste em relação aos “portadores” dessa identidade distinta, que é a identidade indígena. Identidade indígena é aqui compreendida como a autoidentificação do sujeito indígena, decorrente do laço de pertencimento que o liga ao seu grupo étnico e, concomitantemente, o reconhecimento pelo grupo de que essa pessoa é um dos seus. Esse laço pode ser identificado externamente, mas decorre primariamente da autoatribuição e costuma estar fundado num sentimento de origem comum partilhado pelo grupo, que o distingue dos demais. Aos indígenas, em razão dessa identidade étnica partilhada entre si e distinta da sociedade envolvente, são assegurados direitos próprios, também em razão de constituírem uma minoria.2 [9]
O presente artigo parte do questionamento acerca da influência dos estudos identitários desenvolvidos pela Antropologia nos campos do Direito, dada a necessidade sempre renovada de que este se abra ao diálogo com outras áreas do conhecimento. Teriam tais estudos influenciado a compreensão sobre identidade indígena no Direito brasileiro, especialmente no que se refere à sua repercussão no âmbito penal?
A formulação de tal questionamento se justifica, pois muitas decisões judiciais ainda utilizam como critério para comprovação da identidade indígena a existência de documentos que a atestem. Ocorre que a Constituição Federal de 1988 (CF/88) reconhece aos índios, no artigo 231, sua organização social, seus costumes, idiomas, crenças e tradições (BRASIL, 1988 [10]). Nesse sentido, não estariam superadas a necessidade de documentos oficiais para atestar a identidade indígena e as discussões acerca dos níveis de integração do indígena que comete delitos penais? Para responder a tais questionamentos, o presente estudo enceta a análise de um julgado do Tribunal de Justiça do Estado do Amapá (TJAP) e, então, discute o assunto tendo por referência os estudos identitários, a doutrina jurídica e a legislação pátria.
A análise refere-se a um julgado para ilustrar alguns problemas e desafios relevantes no que concerne ao tratamento que a magistratura deve dar à questão da identidade indígena. Nessa direção, pretende contribuir para o debate, sempre necessário. Tem em consideração que não é possível estabelecer um entendimento único acerca da identidade indígena, já que vários e distintos são os indígenas, seja no que se refere às diferentes etnias que congregam, seja no que se refere a seus modos de vida, igualmente múltiplos e diferentes.3 [11] E aqui é importante relembrar o cuidado de não se referir o índio genérico e abstrato, em expressão utilizada por Roberto Cardoso de Oliveira (1978) [12], porque ele não existe, salvo no imaginário da sociedade nacional, que desconhece a realidade atual dos indígenas no Brasil.4 [13]
Essa ideia de que todos os índios são iguais, “culturalmente virgens, página em branco” (TODOROV, 2014 [14], p. 49), aparece já nas cartas que Cristóvão Colombo escreveu à Coroa espanhola em sua primeira viagem nas Américas. Delas depreende-se que Colombo, à medida que foi deparando com os “nativos”, depois de ter visto uns, passou a ver todos, indistintos entre si. Nas cartas escreve, por exemplo, que “[o]s habitantes se assemelhavam aos que já tínhamos encontrado, nas mesmas condições, também nus e com idêntica estatura” (17.10.1492). “[...] e vieram muitos habitantes, parecidos com os que encontramos nas outras ilhas” (22.10.1492) (COLOMBO, 1987 [15], p. 51-54). Essa visão do índio genérico segue sendo reproduzida ainda hoje, a exemplo do que se verifica nas decisões judiciais acerca da imputabilidade penal de indígenas, como se discutirá.
O contato dos indígenas com a sociedade envolvente aparece como argumento suficiente a caracterizar a aculturação dos indígenas réus em processos penais, independentemente da etnia a que pertençam ou do lugar em que vivam. São tomados indistintamente entre si, sendo considerados “índios”, a despeito de suas diferenças. Toda a diversidade de povos, culturas e idiomas mencionada anteriormente é desconsiderada na apreciação dos casos concretos nos quais os indígenas são réus. Sua diversidade é reduzida à mera diferença em relação aos não índios, tal como Colombo manifestou nos primeiros contatos.5 [16]
O presente estudo está alinhado com o entendimento de que “[t]oda opção metodológica supõe uma concepção provisória da realidade a ser conhecida” (GUSTIN; DIAS, 2013 [17], p. 19). Está abrangido na vertente jurídico-sociológica, na medida em que se propõe a discutir a realização concreta de dispositivos da CF/88, especialmente o artigo 231 e sua relação com outras normas contidas no Estatuto do Índio (EI), Lei n. 6.001/1973, e na Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais da Organização Internacional do Trabalho (OIT), Decreto n. 5.051/2004. Utiliza o raciocínio indutivo, partindo de dados particulares e localizados – a análise de um acórdão do TJAP – e, a partir dele, se dirige a constatações gerais. Quanto à técnica de análise de conteúdo, é pesquisa teórica, que analisa conteúdos de textos legislativos, jurisprudenciais e doutrinários sobre o tema.
1 A provocação
Uma provocação costuma gerar reação. No caso do presente artigo, foi o que ocorreu. Ele representa a reação ao incômodo de perceber que se multiplica na jurisprudência pátria entendimento duvidoso acerca da identidade indígena em âmbito penal.6 [18] Ao lançar como critério de pesquisa os termos “índio”, “índios”, “indígena”, “indígenas”, “silvícola” e “silvícolas” no sítio de buscas jurisprudenciais do TJAP, qual não foi a surpresa de encontrar apenas um acórdão.
O fato de existir apenas um julgado marcado por tais critérios de busca chama a atenção, pois a população indígena no estado do Amapá é significativa, especialmente no município de Oiapoque, onde o fato delituoso objeto da ação judicial ocorreu. O Censo Demográfico 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), demonstra que o município de Oiapoque ocupa a décima posição dentre os municípios com as maiores proporções de população indígena do país, por situação do domicílio, cujo percentual da população rural indígena é de 77,2% (INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA, [2012] [19]).
Dentre as ações judiciais que envolvem indígenas que, por construção jurisprudencial, são de competência da justiça estadual, estão aquelas que tratam de delitos penais cometidos por indígenas, como é o caso sob análise. Considerando o quantitativo da população indígena no Amapá e, em especial, em Oiapoque, o fato de existir apenas um caso no sítio de busca de jurisprudência do TJAP, então, ganha destaque. De qualquer sorte, apesar de ser apenas um julgado, ele é ilustrativo da maioria de casos similares julgados pelos tribunais estaduais e federais sobre o tema.7 [20] Por isso, foi selecionado para a análise: a um só tempo, por sua singularidade e representatividade.
O caso em questão trata de uma apelação julgada em 18 de novembro de 2014, pela Câmara Única do TJAP, interposta por réu indígena condenado pelo crime de roubo tentado, seguido de roubo consumado, cumulado com corrupção de menores, na comarca de Oiapoque, conforme previsto no art. 157, § 2º, I e II, art. 14, II e art. 71, todos do Código Penal. Pelo que se depreende da decisão, num primeiro momento, houve a tentativa de roubo dos telefones celulares de duas jovens, que não se consumou por circunstâncias alheias à vontade do réu. Todavia, em seguida, este consumou o roubo dos celulares de dois rapazes. O réu cometeu tais delitos acompanhado de seu primo, menor de idade, que portava uma arma de fogo. Após os delitos, foram presos pela polícia, que recuperou os objetos roubados e instaurou o inquérito policial. Na sentença de primeiro grau, o réu indígena foi condenado à pena de dezoito anos e oito meses de reclusão, em regime fechado. Todavia, ao apreciar sua apelação, a Turma Recursal do TJAP reformou a sentença quanto à dosimetria da pena, diminuindo-a para sete anos, dois meses e vinte dias de reclusão, em regime inicial semiaberto, e mais o pagamento de vinte dias-multa. Ao apreciar a aplicação do art. 56 do EI, o relator afirmou:
Por fim registro, não ser o caso de se aplicar no caso concreto a atenuante prevista no art. 56 do Estatuto do Índio, seja porque como já assinalado o apelante se trata de índio já totalmente integrado aos costumes da sociedade civil, o que afasta o regramento especial do silvícola; seja porque as penas cominadas na primeira fase da dosimetria da pena pelos crimes de roubo consumado e corrupção de menores foram aplicadas no mínimo, e a circunstância atenuante não pode atrair a pena para aquém do mínimo, ao teor do enunciado da Súmula 231 do STJ. Destaque-se que para o crime de corrupção de menores a pena definitiva ficou no mínimo legal (BRASIL, 2014 [21]).
A ementa, bastante longa, apresenta dois pontos que interessam ao objetivo aqui proposto:
PENAL E PROCESSUAL PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. CRIMES DE ROUBO. CONSUMAÇÃO E TENTATIVA. CORRUPÇÃO DE MENORES. PRELIMINARES DE NULIDADE DO PROCESSO. CIRCUNSTÂNCIA ATENUANTE ESPECIAL. CONCURSO DE CRIMES. [...] 2) No caso concreto, não há nulidade por falta de aplicação de regras do Estatuto do Índio, dada a condição do réu como índio perfeitamente integrado à sociedade de modo responder por seus atos nos termos da legislação comum, máxime porque não demonstrado qualquer prejuízo à defesa, porquanto em Juízo, quando devidamente assistido por advogado, o réu confessou em parte o fato delitivo. [...] 12) A atenuante prevista no art. 56 do Estatuto do Índio, não pode ser aplicada na hipótese dos autos porque o apelante réu se trata de índio já totalmente integrado aos costumes da sociedade civil, o que afasta o regramento especial do silvícola; bem assim as penas cominadas na primeira fase da dosimetria da pena pelos crimes de roubo consumado e corrupção de menores foram aplicadas no mínimo, e a circunstância atenuante não pode atrair a pena para aquém do mínimo, ao teor do enunciado da Súmula 231 do STJ. Destaque-se que para o crime de corrupção de menores a pena definitiva ficou no mínimo legal. 13) Apelação parcialmente provida (BRASIL, 2014 [21], grifo nosso).
Dentre os argumentos formulados pelo réu em sua defesa e expostos no relatório do acórdão, destacamos aqueles que têm relação direta com o tema objeto do presente artigo: a identidade indígena e seu tratamento pelos magistrados.
Partindo dessa consideração, em síntese, é possível afirmar que as alegações do réu expostas pelo relator e que têm relação com a discussão aqui proposta são as seguintes: em sede preliminar, suscitou a nulidade do processo, alegando que não lhe foi nomeado curador ou defensor quando de seu depoimento na Delegacia, por ser índio e menor de 21 anos de idade; não houve o reconhecimento da atenuante prevista na Lei n. 6.001/1973 (Estatuto do Índio). O apelante investiu, ainda, contra a fixação de regime fechado para cumprimento da pena. Em contrarrazões, o Ministério Público rebateu as alegações do apelante, e postulou o não provimento do recurso para o fim de ser mantida, na íntegra, a sentença recorrida (BRASIL, 2014 [21]).
O réu em questão é indígena, sendo sua identidade assim reconhecida pelo Tribunal. Nesse sentido, afirma o relator:
Na hipótese, embora o apelante comprove sua condição de indígena da tribo Galiby (doc. f. 24), o próprio apelante informou nos autos, exercer atividade de ajudante de pedreiro; deter instrução até o segundo grau incompleto e residir no Município de Oiapoque, com endereço na BR 156, nº 405, bairro Universidade. Tal situação demonstra sua condição de índio integrado à sociedade, subsumindo-se a hipótese de incidência do art. 4º, inciso III, do Estatuto do Índio (Lei 6.001/1973), de modo responder por seus atos nos termos da legislação comum, sendo inaplicáveis a regras do Estatuto do Índio (BRASIL, 2014 [21]).
Como reforço argumentativo, o relator transcreveu a íntegra do art. 4º do Estatuto do Índio (EI), que os categoriza em índios isolados, em vias de integração e integrados. Também citou o Habeas Corpus (HC) n. 79.530, julgado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 16 de dezembro de 1999 [22] e que recebeu grande destaque da imprensa nacional à época do julgamento. Trata-se do caso de Paulinho Paiakan, indígena da etnia Kayapó, acusado da prática do crime de estupro, do qual destacamos apenas os pontos que têm relação com a discussão aqui proposta:
ÍNDIO INTEGRADO À COMUNHÃO NACIONAL. CONDENAÇÃO PELO CRIME DO ART. 213 DO CÓDIGO PENAL. DECISÃO QUE ESTARIA EIVADA DE NULIDADES. DENEGAÇÃO DE HABEAS CORPUS PELO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. RENOVAÇÃO DO PEDIDO PERANTE ESTA CORTE, À GUISA DE RECURSO. Nulidades inexistentes. Não configurando os crimes praticados por índio, ou contra índio, “disputa sobre direitos indígenas” (art. 109, inc. XI, da CF) e nem, tampouco, “infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas” (inc. IV ib.), é da competência da Justiça Estadual o seu processamento e julgamento. É de natureza civil, e não criminal (cf. arts. 7º e 8º da Lei nº 6.001/73 e art. 6º, parágrafo único, do CC), a tutela que a Carta Federal, no caput do art. 231, cometeu à União, ao reconhecer “aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”, não podendo ser ela confundida com o dever que tem o Estado de proteger a vida e a integridade física dos índios, dever não restrito a estes, estendendo-se, ao revés, a todas as demais pessoas. Descabimento, portanto, da assistência pela FUNAI, no caso. Sujeição do índio às normas do art. 26 e parágrafo único, do CP, que regulam a responsabilidade penal, em geral, inexistindo razão para exames psicológico ou antropológico, se presentes, nos autos, elementos suficientes para afastar qualquer dúvida sobre sua imputabilidade, a qual, de resto, nem chegou a ser alegada pela defesa no curso do processo. Tratando-se, por outro lado, de “índio alfabetizado, eleitor e integrado à civilização, falando fluentemente a língua portuguesa”, como verificado pelo Juiz, não se fazia mister a presença de intérprete no processo. Cerceamento de defesa inexistente, [...], devendo-se a movimentação, portanto, ao próprio paciente, que, não obstante integrado à comunhão nacional, insistiu em ser defendido por servidores da FUNAI (BRASIL, 1999, grifo nosso).
Transcrevemos partes da ementa da decisão do STF por ter sido utilizada como paradigma para a decisão do TJAP. Além disso, ambas as decisões contêm argumentos que remetem à identidade indígena e à forma pela qual o Poder Judiciário a afere. Ambas são recorrentes e caracterizam o cerne da provocação que levou ao presente estudo.
Em síntese, é possível afirmar que em ambos os casos, para fins penais, tratando-se de réu indígena, passa-se a perquirir aspectos que servirão de indícios para estabelecer seu grau de integração à sociedade nacional, nos termos do art. 4º do EI.
Art. 4º Os índios são considerados:
I - Isolados - Quando vivem em grupos desconhecidos ou de que se possuem poucos e vagos informes através de contatos eventuais com elementos da comunhão nacional;
II - Em vias de integração - Quando, em contato intermitente ou permanente com grupos estranhos, conservam menor ou maior parte das condições de sua vida nativa, mas aceitam algumas práticas e modos de existência comuns aos demais setores da comunhão nacional, da qual vão necessitando cada vez mais para o próprio sustento;
III - Integrados - Quando incorporados à comunhão nacional e reconhecidos no pleno exercício dos direitos civis, ainda que conservem usos, costumes e tradições característicos da sua cultura (BRASIL, 1973a [23]).
Em decorrência, o fato de o indígena exercer trabalho remunerado, ter frequentado escola, residir em município, ser eleitor, portar outros documentos como carteira de trabalho ou carteira nacional de habilitação são considerados indicadores de que se trata de índio integrado à sociedade nacional. Consequentemente, não se lhe aplica a atenuante prevista no art. 56 do EI nem a possibilidade de cumprimento da pena em regime especial, previsto no parágrafo único do art. 56 do EI, in verbis:
Art. 56. No caso de condenação de índio por infração penal, a pena deverá ser atenuada e na sua aplicação o Juiz atenderá também ao grau de integração do silvícola.
Parágrafo único. As penas de reclusão e de detenção serão cumpridas, se possível, em regime especial de semiliberdade, no local de funcionamento do órgão federal de assistência aos índios mais próximos da habitação do condenado. (BRASIL, 1973a).
No mesmo sentido, é possível encontrar várias outras decisões de diferentes tribunais em todo o país, que entendem que índio alfabetizado, eleitor, falando fluentemente a língua portuguesa é integrado à comunhão nacional. Em tais hipóteses, a aplicação do art. 56 do EI é afastada.
Ocorre que o EI foi promulgado em 1973, sob a égide de ordem constitucional autoritária e superada. O EI estava em conformidade com uma compreensão, então em vigor, de que os indígenas seriam paulatinamente integrados à comunhão nacional e que isso significava que deixariam de ser indígenas, perdendo sua identidade étnica, sendo assimilados na sociedade nacional. Todavia, esse entendimento não condiz com a realidade dos fatos: a extinção por assimilação dos índios, tantas vezes proclamada, não ocorreu nem encontra eco na CF/88. Esta, em vez disso, rompeu com essa lógica e inovou drasticamente o cenário legislativo nacional ao reconhecer aos indígenas sua singularidade.
A CF/88, art. 231, ao reconhecer aos índios sua organização social, seus costumes, idiomas, crenças, tradições e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, não estaria também reconhecendo a identidade indígena? E mais: o reconhecimento da identidade indígena depende da existência de documentos oficiais que a declarem? A resposta afirmativa para esta questão não estaria a invalidar o próprio reconhecimento que a CF/88 deu aos índios, em seu art. 231, já que sua organização social pode ser diferente daquela da sociedade envolvente e, portanto, prescindir de documentos (como de fato dispensa)?
Todas essas questões demonstram que estamos diante de mais um paradoxo, como tantos outros a envolver a chamada “questão indígena” (KAYSER, 2010 [24]) no Brasil. Tal paradoxo se verifica em quase todas as searas nas quais são discutidos assuntos de interesse dos indígenas e se traduz em sentimentos e atitudes contraditórios em relação a eles: ora de reconhecimento e apreço, ora de desapreço, intolerância e desrespeito. Essa contradição acompanha a história de contato dos povos e a conquista da América, como lembra Todorov (2014) [14], ao se referir à figura de Cristóvão Colombo. O navegador está associado a dois mitos aparentemente contraditórios: um, em que o índio é entendido como o bom selvagem, quando visto de longe, e o outro em que ele é um cão imundo, canibal, escravo em potencial. Ambos os mitos têm uma origem comum que é o desconhecimento dos índios e a recusa em admitir que sejam sujeitos com os mesmos direitos que ele próprio, embora sejam diferentes. “Colombo descobriu a América, mas não os americanos” (TODOROV, 2014 [14], p. 69). Assim, desde a conquista, toda a história é marcada por essa ambiguidade, na qual a alteridade humana é, a um só tempo, revelada e negada (TODOROV, 2014 [14]).
Outro exemplo dessa ambiguidade é examinado por Roberto Gambini, na obra O espelho índio (1988 [25]), na qual analisa as cartas enviadas pelos jesuítas no século XVI à Coroa portuguesa. Nelas desvela os sentimentos dúbios que os jesuítas nutriam pelos indígenas, considerando o fenômeno da projeção psicológica.
A ambiguidade que marcou o início do contato com os indígenas persiste até o tempo presente, como o tratamento judicial da imputabilidade de indígenas demonstra: inicialmente é perquirida a identidade do indígena, num aparente reconhecimento de sua distinção. Todavia, a partir da constatação dessa identidade, estando o réu indígena em contato com a sociedade envolvente, é considerado aculturado e, então, não mais suficientemente indígena a merecer a aplicação da legislação que lhe seria mais benéfica, a exemplo do art. 56 do EI, como já afirmado.
2 Um olhar acerca da identidade étnica
Os estudos antropológicos acerca da identidade étnica, que se intensificaram a partir da década de 1970, ganharam grande impulso e mudança de compreensão com a obra de Fredrik Barth. Barth substituiu uma concepção estática de identidade étnica por uma concepção dinâmica. A partir de seus estudos foi possível compreender que a identidade étnica, tal como outras identidades coletivas, é construída e transformada na interação de grupos sociais, seja em processos de inclusão, seja de exclusão, sempre numa dinâmica de se estabelecer os limites entre tais grupos e aqueles que os integram ou não (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 1998 [26]).
Antes de Barth, prevalecia a compreensão de que a identidade étnica decorria de traços culturais exibidos pelo grupo étnico. Tais traços, como língua, crenças, valores, símbolos, ritos, regras de conduta, práticas de vestuário, culinária etc., seriam perenes, sendo que sua alteração implicaria aculturação e perda da identidade étnica específica. Aculturação é aqui empregada no sentido de assimilação, tal como explicado por Silva (2006, p. 47), na qual “a adoção de elementos estrangeiros elimina o sistema de valores indígenas e afirma o valor da sociedade dominante, provocando a dissolução da identidade étnica”.
Essa compreensão, muito em voga em decorrência dos estudos culturalistas, identificava na permanência de traços culturais a manutenção do grupo étnico. Assim, mudanças nos traços culturais decorrentes do contato com outros grupos poderiam significar aculturação, que levaria à extinção inevitável daquele grupo enquanto diferenciado. Exemplos disso abundam na etnografia brasileira, em estudos que identificaram no contato interétnico a extinção inexorável de grupos indígenas.8 [27]
Havia a compreensão de que a identidade étnica seria estática, fixada em características imutáveis. Todavia, como sugere Silva (2006), é preciso insistir na importância da ampliação do entendimento do conceito de identidade étnica – “[i]dentidade não é sinônimo de unicidade” (SILVA, 2006, p. 44). Aí reside a grande importância dos estudos de Barth, que compreendeu que os processos de organização social pelos quais se mantêm de forma duradoura as distinções entre “nós” e “os outros” podem se alterar e que tais alterações não são capazes de suprimir a diferença entre o “nós” e “os outros” (LAPIERRE, 1998 [28]): “as diferenças culturais podem permanecer apesar do contato interétnico e da interdependência dos grupos” (BARTH, 1998 [29], p.188).
Para Barth, atribuía-se muita importância ao fato de o grupo étnico compartilhar uma mesma cultura. Em contraposição a isso, ele sugeriu que se deveria entender esse traço como uma implicação ou resultado muito mais do que uma característica primária e definicional da organização do grupo étnico (BARTH, 1998).
Na perspectiva proposta por Barth, o que importa é a fronteira étnica que define o grupo, e não a matéria cultural que ela abrange. Os grupos étnicos são uma forma de organização social na qual a característica da autoatribuição ou da atribuição por outros a uma categoria étnica se torna um traço fundamental (BARTH, 1998).
Uma atribuição categórica é uma atribuição étnica quando classifica uma pessoa em termos de sua identidade básica mais geral, presumivelmente determinada por sua origem e seu meio ambiente. Na medida em que os atores usam identidades étnicas para categorizar a si mesmos e outros, com objetivos de interação, eles formam grupos étnicos neste sentido organizacional (BARTH, 1998 [29], p. 193-194).
Ainda conforme Barth, embora as categorias étnicas levem em conta as diferenças culturais, não o fazem numa relação direta no sentido de uma “relação de um para um entre as unidades étnicas e as semelhanças e diferenças culturais” (BARTH, 1998, p. 194). As características que são levadas em consideração não são uma soma de diferenças objetivas, mas apenas aquelas que os próprios atores consideram significativas. Alguns traços culturais são utilizados pelos atores como emblemas e sinais de diferenças, já outros são ignorados e ainda em alguns casos diferenças radicais são minimizadas e negadas (BARTH, 1998 [29]).
Pelos exemplos utilizados por esse autor, é possível afirmar que as diferenças culturais que podem marcar as dicotomias étnicas podem ser tangíveis, como os sinais diacríticos, que são traços culturais que se percebem pela forma como as pessoas exteriorizam e demonstram sua identidade. Além deles, há também diferenças étnicas que se caracterizam por não serem tangíveis, como os valores fundamentais que as orientam – a moralidade e os padrões de excelência –, que são usados como critérios para julgar suas ações. “Desde que pertencer a uma categoria étnica implica ser um certo tipo de pessoa que possui aquela identidade básica, isso implica igualmente que se reconheça o direito de ser julgado e de julgar-se pelos padrões que são relevantes para aquela identidade” (BARTH, 1998 [29], p. 194).
Todavia, o autor ressalta que não existe nenhum tipo de lista que descreva exaustivamente os traços diacríticos ou diferenças culturais dos quais seriam originados esses “conteúdos culturais”. Assim, não é possível prever os traços que serão realçados ou tornados organizacionalmente relevantes pelos atores e os que serão ignorados ou mesmo escondidos por eles. Ou seja, “as categorias étnicas fornecem um cadinho organizacional dentro do qual podem ser colocados conteúdos de formas e dimensões várias em diferentes sistemas socioculturais” (BARTH, 1998 [29], p. 194).
Para Barth, o traço fundamental dos grupos étnicos é a atribuição e o pertencimento. Assim, pouco importa que traços culturais ou outras diferenças “objetivas” se modifiquem e pouco importam as diferenças que os membros do grupo possam ter em seus comportamentos manifestos: “se eles dizem que são A, em oposição a outra categoria B da mesma ordem, eles estão querendo ser tratados e querem ver seus próprios comportamentos interpretados e julgados como de As e não de Bs, ou seja, eles declaram sua sujeição à cultura compartilhada pelos As” (BARTH, 1998, p. 195).
Portanto, a partir de Barth se compreende que a relevância está na fronteira étnica que define o grupo, e não na matéria cultural que ela abrange. Fronteiras aqui entendidas como fronteiras sociais. “Se um grupo conserva sua identidade quando os membros interagem com outros, isso implica critérios para determinar a pertença e meios para tornar manifestas a pertença e a exclusão” (BARTH, 1998, p. 195).
Então, em síntese, com Barth, é possível afirmar que grupos étnicos são organizações sociais cujas fronteiras se definem pelo pertencimento que cada ator manifesta em relação ao grupo, mesmo que os sinais diacríticos possam se modificar. Os traços culturais devem ser compreendidos muito mais como produzidos pelo grupo do que como formatadores da identidade étnica do grupo.
Em acréscimo, é possível afirmar que a identidade étnica refere-se sempre a uma origem comum suposta e o que diferencia, em última análise, a identidade étnica de outras formas de identidade coletiva é que ela é orientada para o passado (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 1998 [26]).
3 Os documentos e as identidades
“Não se poderia ‘ser’ um bambara sem ter sido antes denominado como tal: denominado por quem, em que contexto, quando?” (BAZIN, 1983 apud POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 1998 [26], p. 81).9 [30] Embora o questionamento de Bazin refira-se aos Bambara do Mali e esteja no contexto da discussão norte-americana acerca da etnia, que fervilhou nos idos de 1970, pode ser apropriado para problematizar a categorização dos índios brasileiros. Essa categoria índios, assim as de como etnia e tribo, é resultado de classificações prévias que a etnologia pretendeu fazer, mas que não obedecem a regras formais independentes do contexto nem têm como assim fazê-lo (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 1998 [26]). Todas elas são, utilizando expressão de Eduardo Viveiro de Castro, “palavras pontiagudas e cheias de arestas” (2006 [31], p. 47) atribuídas pelo “outro”, não índio e, assim, servem exclusivamente a este.10 [32]
Seguindo nessa ideia, são os Estados que atribuem importância às identidades, na medida em que determinam que delas decorram direitos ou obrigações específicos. Quanto aos indígenas no Brasil, sua identidade étnica traz consigo direitos específicos assegurados pela CF/88, principalmente no art. 231. Destarte, há que se considerar que tal identidade seja a um só tempo atribuída e negada pelo Estado, que passa a tornar necessárias formas de comprová-la e, na ausência dessa comprovação segundo os critérios que o próprio Estado, por meio de seus agentes, julga adequados, negar também os direitos dela decorrentes.11 [33] Nessa direção, com Maybury-Lewis (2003 [34], p. 11), é possível afirmar que “[s]ão os estados que ditam as regras de nossas vidas e, sobretudo, que dão forma às nossas identidades, tanto coletivas como individuais”.
Uma forma de o Estado externar a importância da identidade de seus cidadãos é pela necessidade de documentos de identificação, dos quais dependem direitos e obrigações. Segundo Peirano (1986) [35], os documentos assumiram no Brasil um caráter simbólico, servindo como símbolos de identidade cívica, que são fornecidos por órgãos públicos apenas para aqueles que preenchem determinados requisitos estipulados por lei (PEIRANO, 1986 [35]). Eles preenchem, portanto, a função de distinguir as pessoas. Na mesma direção, Da Matta (2002 [36], p. 47), quando afirma que “os documentos de identidade atestam a personalidade cívica dos seus portadores” e “[...] legitimam o portador como um ser social exclusivo e singular (2002, p. 57).
Em síntese, no Brasil, os documentos têm essa função: identificar e individualizar seu portador. Além disso, documentos também podem atestar habilidades ou autorizações específicas, como a habilitação para dirigir veículos automotores ou o título de eleitor. Estaria, então, de acordo com essa concepção a exigência da apresentação de documentos, a exemplo da carteira de identidade, carteira de trabalho e previdência social, carteira nacional de habilitação etc. como mecanismo comprobatório da identidade física de seu portador – de que ele é aquela pessoa que afirma ser e de que ele detém os atributos ou habilidades que afirma ter e de que está autorizado a fazer uso delas. Todavia, persiste o questionamento acerca da possibilidade de que esses documentos atestem ou sirvam de indício acerca da identidade étnica de seu portador, o que será enfrentado mais adiante.
No Brasil, os documentos de identificação, de forma direta ou indireta, decorrem da certidão de nascimento. O Decreto n. 6.289, de 06/12/2007, que estabeleceu o Compromisso Nacional pela Erradicação do Sub-registro Civil de Nascimento e Ampliação do Acesso à Documentação Básica, tem entre seus objetivos conjugar esforços da União, Estados Distrito Federal e Municípios para ampliar o acesso à documentação civil básica a todos os brasileiros. Nesse sentido, para seus fins, compõe a documentação civil básica o Cadastro de Pessoas Físicas (CPF), a Carteira de Identidade ou Registro Geral (RG); e a Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS). Ao considerar os objetivos do decreto, percebe-se que o registro de nascimento é de tal importância que está vinculado ao exercício da cidadania,12 [37] para além de ser a base para a expedição dos demais documentos que compõem a documentação civil básica dos brasileiros.
A certidão de nascimento é ato de natureza declaratória, que atesta fato preexistente – o nascimento – e tem efeito comprobatório, a ser considerado na expedição de outros documentos. A título exemplificativo, para a expedição da carteira de identidade, é necessário apresentar a certidão de nascimento, conforme os arts. 1º e 2º da Lei n. 7.116, de 29/08/1983. É possível requerer a expedição da carteira de identidade a partir da certidão de casamento, mas para a emissão desta, é necessário ter sido apresentado o registro de nascimento quando da habilitação para o casamento, nos termos do art. 1.525, I, do Código Civil. Em síntese, os documentos de identificação podem ser ligados à certidão de nascimento num encadeamento sequencial mais longo ou mais curto, mas dela decorrem, conforme dito.
A Lei de Registros Públicos (LRP), Lei n. 6.015/1973, estabelece a obrigatoriedade do registro de nascimento, do qual é expedida certidão. Em seu art. 50, afirma que a todo nascimento que ocorrer no território nacional deve ser dado registro no lugar em que tiver ocorrido o parto ou no lugar da residência dos pais, dentro do prazo de 15 dias, podendo tal prazo ser ampliado em até três meses quando se tratar de lugar distante mais de trinta quilômetros da sede do cartório (BRASIL, 1973b). Tal obrigatoriedade é excepcionada a uma categoria de indígenas – os não integrados – conforme parágrafo segundo do mesmo art. 50 da LRP, in verbis: “Os índios, enquanto não integrados, não estão obrigados a inscrição do nascimento. Este poderá ser feito em livro próprio do órgão federal de assistência aos índios” (BRASIL, 1973b [38], grifo nosso).
A FUNAI, órgão federal de assistência aos indígenas, em atendimento ao disposto nessa norma, expede o Registro Administrativo de Nascimento de Índio (RANI), cuja previsão encontra-se também no EI, art. 13, e foi regulamentado por meio da Portaria n. 003/PRES, de 14/01/2002, da FUNAI.13 [39] Além disso, está em vigor a Resolução Conjunta n. 3, de 19/04/2012, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), que dispõe sobre o assento de nascimento de indígena no Registro Civil de Pessoas Naturais, que é facultado aos indígenas não integrados, conforme dispõe seu art. 1º.
Destarte, tomando a categorização dos índios realizada pelo art. 4º do EI e as normas sobre a expedição de documentos, os indígenas integrados e os em via de integração seriam obrigados a requerer o assento de nascimento no Registro Civil de Pessoas Naturais, o que não se justifica.
Em paralelo a essa normativa, adentrou nosso ordenamento jurídico a Convenção n. 169 da OIT, por meio do Decreto Legislativo n. 143, de 20/06/2002 e do Decreto Presidencial n. 5.051, de 19/04/2004. Essa norma é das mais importantes para os indígenas, pela amplitude dos assuntos que trata e também pelos valores que consagra, na medida em que também rompeu com o paradigma assimilacionista outrora vigente, seguindo na mesma direção que a CF/88.
No que tange ao tema do presente artigo, importam sobremaneira o item 2 do art. 1º, bem como a integralidade do art. 10 da Convenção, que, respectivamente, estabelecem, in verbis:
Art. 1º
[...]
2. A autoidentificação como indígena ou tribal deverá ser considerada um critério fundamental para a definição dos grupos aos quais se aplicam as disposições da presente Convenção.
[...]
Art. 10
1. No processo de impor sanções penais previstas na legislação geral a membros desses povos, suas características econômicas, sociais e culturais deverão ser levadas em consideração.
2. Deverá ser dada preferência a outros métodos de punição que não o encarceramento (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2011 [40], p. 15-22).
Então, o que se observa é uma incongruência da legislação pátria quanto à identidade étnica e, de forma mais gravosa, uma apropriação equivocada da legislação no julgamento de casos concretos pelo Poder Judiciário, que privilegia normas cujo conteúdo está em desacordo com o respeito à diferença e à identidade étnica dos indígenas, previstos tanto na CF/88 quanto na Convenção 169 da OIT. Destarte, sua identidade étnica é afirmada a partir de sua autodeclaração como integrante de um grupo ou comunidade indígena, independentemente de graus de integração ou dos documentos que eventualmente portem.
Os documentos são solicitados pelo Estado quando se relaciona com seus cidadãos. Não são uma necessidade das comunidades indígenas, mas aparecem a estas como formas de “facilitar” sua eventual relação com o Estado brasileiro. A identidade indígena não é atribuída através de documentos escritos que atendem aos interesses do Estado. Como explica Roberto Da Matta,
[e]m sistemas tribais e arcaicos, todos se conhecem e estão implicados em teias de relações sociais nas quais a individualidade, a formalidade, a documentação escrita, a discussão da norma como tal – numa palavra-chave, a impessoalidade universalista, que ocupa um lugar central na vida moderna – é indesejável, senão praticamente impossível (DA MATTA, 2002 [36], p. 39).
Destarte, querer atribuir ou excluir direitos relacionados à identidade indígena com base na ausência ou presença de documentos é um equívoco. Em primeiro lugar, porque a identidade não é uma característica que assim se possa atribuir e, em segundo, porque ao fazê-lo se caminha no sentido contrário daquele que a Convenção 169 da OIT em seu art. 1º, item 2, estabeleceu, que é o da autoidentificação. Em decorrência, atribuir graus de “identidade indígena original” aos indígenas, como se pudessem ser mais ou menos índios, considerando-os integrados, em vias de integração ou isolados, numa marcha inevitável para a civilização, sequer atende ao comando constitucional contido no art. 231 da CF/88.
Como afirmou Weber, “num Estado moderno a burocracia realmente governa, necessária e inevitavelmente, pois o poder não é exercido por discursos parlamentares nem por proclamações monárquicas, mas através da rotina da administração” (WEBER, 1980 [41], p. 16). Essa rotina da administração que exerce o poder efetivamente acaba por implicar que a posse de documentos confira cidadania, e não o inverso disso, como demonstrou Peirano (1986) [35]. Da mesma forma, em casos semelhantes ao aqui discutido, o Poder Judiciário acaba “atribuindo” ou “reconhecendo” a identidade indígena do réu e, depois disso, exclui as consequências benéficas daí recorrentes para aqueles considerados “integrados”.
A contradição mais uma vez faz-se notar: por um lado, o Estado, por meio de seus agentes, estimula e facilita os procedimentos para que os indígenas solicitem a expedição de documentos de identificação, afirmando daí decorrerem importantes consequências para os indígenas, como a facilidade de acesso a direitos. Pelo menos, é nesse sentido a informação constante no endereço eletrônico da FUNAI.14 [42] Todavia, por outro, na medida em que os indígenas possuem tais documentos, caso sejam réus em processos penais, muito provavelmente a execução penal que lhes será imposta não considerará o disposto no art. 56 do EI e nem o art. 10 da Convenção 169 da OIT, sob a alegação de já serem “integrados”.
4 A identidade indígena no banco dos réus
Deitando os olhos especificamente sobre o julgado do TJAP, ao reconhecer que o réu é indígena, deveria, por consequência, ter em conta tal fato ao aplicar-lhe a norma.15 [43] Ao reconhecer que o réu é indígena para, na sequência, classificá-lo como integrado e, então, excluir a aplicação do EI, é como se tratasse o réu como cidadão de categoria inferior: não é considerado de plano como cidadão brasileiro indistinto porque reconhece sua identidade étnica Galiby, mas não lhe reconhece como cidadão indígena, porque está integrado à comunhão nacional.
O entendimento explicitado no acórdão sob análise deveria ser repensado quanto ao emprego do art. 4º do EI e da parte do art. 56 que refere os graus de integração de indígena. Se a integração e a assimilação, mesmo que possam ocorrer, como efetivamente ocorrem, não importam em perda da identidade étnica, não há como aplicar tais noções no sentido classificatório proposto pelo art. 4º do EI. A identidade étnica persiste, a despeito da apropriação de traços culturais da sociedade envolvente, como é o caso da língua ou do uso de documentos para se relacionar com a burocracia estatal.
Ainda que se reconheça que identidade étnica é um assunto pantanoso, tal como toda e qualquer discussão identitária, há pontos convergentes entre os estudiosos – o caráter mais relacional que essencial das identidades étnicas e o caráter mais dinâmico que estático da etnicidade (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 1998 [26]). Os estudos antropológicos, a exemplo de Barth, têm demonstrado isso.
Destarte, o Poder Judiciário, ao atribuir à apropriação de traços culturais da sociedade envolvente, de forma peremptória, a integração do indígena, como que dá as costas para o avanço dos estudos identitários desenvolvidos pela Antropologia. Ao fazê-lo, deixa de considerar aspectos relevantes que poderiam contribuir para a melhor interpretação ao texto legal, de forma a compatibilizá-lo à Constituição, sobretudo ao seu art. 231.
No caso colacionado, a não aplicação da atenuante prevista no art. 56 do EI ao réu indígena não atende o comando do texto da norma. Ao que tudo indica, tal negativa de aplicação é resultado de construção jurisprudencial nascida antes mesmo da CF/88 e, assim, precisa ser revista e conformada aos valores constitucionais.
Além disso, utilizando-se de interpretação gramatical do art. 56 do EI, compreende-se que a atenuante deve ser aplicada a todo e qualquer indígena réu condenado em processo penal, independentemente de graus de integração ou qualquer outro requisito semelhante. O comando do artigo é imperativo em sua primeira parte e determina que a pena “deverá” ser atenuada. Tanto é assim que a referência aos graus de integração consta da parte final do caput do artigo e vem precedida da conjunção aditiva “também”, referindo que em adição o juiz considerará também os graus de integração. Então, ainda que não se leve em consideração que tanto a CF/88, art. 231, quanto a Convenção 169 da OIT tornaram descabido falar em graus de integração, não se sustenta o argumento produzido tanto no julgado do TJAP quanto no do STF, objetos do presente artigo. Portanto, ainda que se apele ao uso do método da interpretação clássica menos prestigiada, que é a interpretação gramatical, não se sustenta a argumentação de que descabe aplicar a atenuante prevista no art. 56 do EI ao réu, posto ser ele integrado à comunhão nacional.
É possível avançar e aprofundar a discussão desse ponto, considerando o sistema jurídico como um todo e os valores que o fundaram e orientam, que se depreendem da CF/88. Então, ao se utilizar do método da interpretação lógico-sistemática, mais uma vez se conclui que a argumentação produzida nos julgados merece ser revista. Dalmo Dallari (1980),16 [44] citado por Ribeiro e Braga (2008) [45], suscita que o uso dos vários modelos de interpretação confere ao intérprete o sentimento de isenção ante as injustiças que decorrem da lei, o que pode parecer bastante cômodo. No caso sob análise, a citação de julgado do STF feita pelo desembargador relator no TJAP tem esse mesmo efeito – sugere a impressão de isenção e até mesmo de segurança jurídica, já que ambas as decisões caminham num mesmo sentido, o que dá a impressão de que estão livres de convicções teóricas particulares dos aplicadores e de que os órgãos julgadores colegiados são uníssonos sobre o assunto, sendo esta, então, a melhor interpretação.
Considerando as reflexões de Gadamer (2013) [46] acerca da hermenêutica, o emprego de métodos de interpretação jurídica merece ser repensado. Então, a partir de Gadamer, afirmamos que a “fusão de horizontes” por ele proposta, na qual “há a concepção de que a verdade do texto não está na submissão incondicionada à opinião do autor e nem somente nos pré-conceitos do intérprete, mas senão na fusão de horizontes de ambos” (RIBEIRO; BRAGA, 2008 [45], p. 273) pode implicar um desvelar novos sentidos possíveis à interpretação do Direito. Todavia, esta é uma nova provocação, a merecer novo estudo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O paradoxo da questão indígena persiste. A comprovação da identidade indígena é diferente do seu reconhecimento. Aquela se dá equivocadamente por meio da apresentação de documento oficial e este ainda não ocorreu na amplitude prevista na CF/88 e na Convenção 169 da OIT.
Ter instrução, falar e compreender português, exercer uma profissão ou portar documentos não torna ou retira do indígena sua identidade compreendida como pertencimento e que implica autoidentificação, no sentido exposto por Barth. O que se percebe é que os estudos antropológicos acerca da identidade étnica não repercutem na seara jurídica em toda a amplitude de possibilidades.
A ideia do índio genérico se perpetua na jurisprudência pátria na medida em que estudos antropológicos são dispensados. É como se todos os índios e todas as circunstâncias nas quais os fatos delituosos ocorreram seguissem um mesmo padrão: são indistintos e, portanto, recebem o mesmo tratamento. Na medida em que se recusa a realização de laudo antropológico, sob a alegação de ser aquele indígena réu integrado à sociedade nacional, pois é fluente em língua portuguesa e por ter documentos, está-se tratando de maneira formal e padronizada uma riqueza e distinção cultural que não poderia ser reduzida, sob pena de se desconsiderar o reconhecimento à diversidade dos indígenas, consagrada no art. 231 da CF/88. Laudos antropológicos são mais do que traduções de línguas indígenas: prestam-se também a elucidar a forma como os fatos ocorreram e os valores e normas próprios dos indígenas neles envolvidos. No entanto, isso não implica fazer dos antropólogos produtores de laudos, senhores da verdade ou do poder de atribuir, confirmar ou negar identidade étnica de indígenas. Pelo contrário, a participação de peritos antropólogos em processos judiciais penais, dada a gravosidade de suas consequências, pode contribuir para ampliar o horizonte de compreensão e elucidação dos fatos e circunstâncias discutidas.
Em grande parte, os paradoxos que envolvem a questão indígena ilustram uma certa tensão que há na consideração dos direitos dos indígenas, que são diferenciados por grupo. Embora os aspectos relacionados ao direito penal aqui mencionados, como é exemplo a atenuante do art. 56 do EI, digam respeito ao indivíduo e não ao grupo, ainda assim traduzem esse diferencial potencial de tensões.
Destarte, afirmamos que a identidade étnica dos indígenas não decorre de nem é perdida a partir da existência de documentos de identificação, como já afirmado. Muito antes pelo contrário: os documentos têm sido associados ao acesso a direitos e ao exercício de cidadania para todos os cidadãos brasileiros, que são, a partir desses argumentos, estimulados a solicitar sua expedição. Assim também com os indígenas – ainda que não sejam obrigados a solicitar seus documentos, o fazem a partir do estímulo que recebem de agentes estatais que têm com eles contato, como é o caso da FUNAI. Incongruente, portanto, que daí sejam penalizados com a compreensão de que perderam a identidade indígena ou que a eles não se possam aplicar dispositivos legais que em certas circunstâncias os beneficiem.
No que se refere ao Poder Judiciário, quando chamado a julgar processos penais nos quais índios são réus, lhe é demandado que se abra e possibilite a fusão de horizontes, nos termos propostos por Gadamer (2013) [46]. Ainda que não consiga fazê-lo, então, pelo menos, que aplique a legislação, em atividade interpretativa cujo uso de regras hermenêuticas tradicionais é suficiente para depreender a predominância do respeito à diferença previsto no art. 231 da CF/88 e as consequências daí decorrentes: no que tange à dosimetria e à execução da pena, que o art. 56 do EI seja aplicado irrestritamente a todo e qualquer indígena, sem referências a graus de integração, posto ser esse critério superado e inconstitucional. Ignorar isso significa perpetuar a intolerância e a incompreensão etnocêntrica, no sentido apontado por Roberto Cardoso de Oliveira (1976) [6] e a atribuição de identidade pelo “outro” que foi banida da legislação brasileira pelo art. 231 da CF/88 e pela Convenção 169 da OIT.