Editora Unijuí • ISSN 2179-1309 Ano 6 • nº 12 • Jul./Dez. 2018 • Qualis B1 Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Unijuí https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/direitoshumanosedemocracia [2] http://dx.doi.org/10.21527/2317-5389.2018.12.67-84 [3]
Os Efeitos Advindos da Condenação do Brasil no Caso Damião Ximenes Lopes na Corte Interamericana de Direitos Humanos por Violação aos Direitos Previstos no Pacto de San José da Costa Rica
Bruna Pereira Aquino
Advogada. Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória. Especialista em Direito e Processo Tributário pela Faculdade de Direito de Vitória. Egressa da Faculdade de Direito de Vitória. brunapereiraaquino@gmail.com [4]
Gilsilene Passon Francischetto
Possui Graduação em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo (1998) e em Pedagogia pela Universidade Norte do Paraná – Unopar (2013); Mestrado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (2001), Doutorado em Direito pela Universidade Gama Filho (2005), Pós-Graduação em Docência do Ensino Superior pela Universidade Norte do Paraná – Unopar – e Pós-Doutorado em Ciências Sociais pelo Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra (2008), sob a orientação do professor doutor Boaventura de Sousa Santos. Atualmente é professora titular na Graduação, Pós-Graduação, Mestrado e Doutorado da Faculdade de Direito de Vitória – FDV. gilsilenepasson@uol.com.br [5]
RESUMO
O presente artigo analisa quais as consequências advindas da sentença condenatória internacional, proferida em desfavor do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Damião Ximenes Lopes, tais como condenação pecuniária, elaboração de estrutura de apoio para pessoas com adoecimento mental e capacitação dos profissionais da área da saúde mental. O primeiro tópico traz uma análise dos direitos humanos no pós-Segunda Guerra Mundial e trata do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, dando ênfase ao Pacto de San José da Costa Rica (1969). O segundo item versa sobre a posição adotada pelo Brasil como signatário da Corte Interamericana de Direitos Humanos. O terceiro tópico trata das particularidades do caso Damião Ximenes Lopes versus Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Finalmente, o quarto e último item discorre sobre as consequências advindas da condenação do Estado brasileiro no caso Damião Ximenes Lopes. Assim, o presente artigo objetiva descrever o papel da Corte Interamericana de Direitos Humanos na proteção dos direitos humanos, bem como apontar seu funcionamento, especificar as características do caso Damião Ximenes Lopes, descrevendo e analisando quais as consequências advindas da condenação do Brasil, nesse caso, no que diz respeito ao enfrentamento das questões relativas aos doentes mentais. Assim, por meio do método dialético e de revisão bibliográfica, o artigo busca responder ao seguinte questionamento: Quais os efeitos advindos da condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos por violação a vários direitos do Pacto de San José da Costa Rica no caso Damião Ximenes Lopes?
Palavras-chave: Corte Interamericana de Direitos Humanos. Adoecimento mental. Invisibilidade. Damião Ximenes Lopes. Direitos humanos.
THE EFFECTS OF BRAZIL’S CONVICTION IN DAMIÃO XIMENES LOPES CASE IN INTER-AMERICAN COURT OF HUMAN RIGHTS FOR VIOLATION OF THE RIGHTS OF SAN JOSE CONVENTION
ABSTRACT
This article analyzes the consequences of the international conviction of Brazil by the Inter-American Court of Human Rights in Damião Ximenes Lopes case, such as pecuniary conviction, the elaboration of a support structure for people with mental illness and the training of professionals of mental health area. The first chapter analyzes Human Rights after World War II and talk about the inter-American system of Human Rights, emphasizing the Pact of San José of Costa Rica (1969). The second chapter analyzes the position adopted by Brazil as a member of the Inter-American Court of Human Rights. The third chapter analyzes with the particularities of the case Damião Ximenes Lopes v. Brazil in the Inter-American Court of Human Rights. Finally, the last chapter analyzes the consequences from the condemnation of the Brazilian State in Damião Ximenes Lopes case. The purpose of this article is to describe the role of the Inter-American Court of Human Rights for protection of human rights, as well as to indicate its functioning, to specify the characteristics of the Damião Ximenes Lopes case, describing and analyzing the consequences of Brazil’s condemnation in this case with regard to addressing mental health issues. Thus, through the dialectical method and a bibliographic review, the article seeks to answer the following question: What are the effects of Brazil’s conviction in the Inter-American Court of Human Rights for violation of rights of San José Pact in Damião Ximenes Lopes case?
Keywords: Inter-American Court of Human Rights. Mental illness. Invisibility. Damião Ximenes Lopes. Human rights.
SUMÁRIO
1 Introdução. 2 O Sistema Interamericano de Direitos Humanos. 3 A Posição do Brasil Como Signatário da Corte Interamericana de Direitos Humanos. 4 O Caso Damião Ximenes Lopes. 5 As Consequências Advindas da Condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Damião Ximenes Lopes. 6 Considerações Finais. 7 Referências. Recebido em: 20/7/2017 Revisões requeridas em: 11/12/2017 Aceito em: 4/9/2018 Páginas 67-84 Direitos Humanos e Democracia Editora Unijuí • ISSN 2317-5389 • Ano 6 • nº 12 • Jul./Dez. 2018 • Qualis B1 Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Unijuí https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/direitoshumanosedemocracia [2] Bruna Pereira Aquino – Gilsilene Passon Francischetto 68
1 Introdução
Com o fim da Segunda Guerra Mundial houve uma mudança no tratamento atribuído aos direitos humanos. Isto porque, neste contexto do pós-guerra, após as incontáveis atrocidades praticadas por seres humanos contra seus pares ganharem repercussão em todo o mundo, a comunidade internacional, de uma maneira geral, entendeu ser imprescindível que os direitos humanos fossem concebidos como direitos inerentes a todas as pessoas. Dessa maneira, para garantir proteção aos direitos inerentes aos seres humanos, bem como o amparo à dignidade humana, foram criados meios internacionalmente capazes de inibir quaisquer tipos de violações direcionadas aos direitos humanos. Para tanto, em uma perspectiva global, a Organização das Nações Unidas elaborou, em 1945, disposições sobre os direitos humanos por meio da Carta das Nações Unidas e, finalmente, em 1948, instituiu a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Por sua vez, em uma perspectiva regional, surgiram diversos sistemas de proteção aos direitos humanos, contudo no presente artigo a análise se restringirá à Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969, mais conhecida como Pacto de José da Costa Rica, instituída por meio da edição da Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem, datada de 1948. Juntamente com a Convenção Americana de Direitos Humanos foi criada a Corte Interamericana de Direitos Humanos, que iniciou suas atividades em 1978. Quanto à competência, de acordo com o artigo 62 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, a Corte poderá julgar qualquer caso relativo à interpretação e aplicação das disposições desta Convenção, entretanto deve se limitar aos fatos ocorridos a partir da ratificação de sua competência pelo Estado-parte, conforme determina o parágrafo 1º do artigo 62 (COSTA RICA, 1969). Vale destacar que o Brasil aderiu à Convenção Interamericana de Direitos Humanos em 1992 mas apenas em 1998 foi reconhecida a competência da Corte. Ocorre que, no Estado brasileiro, a Convenção Interamericana de Direitos Humanos de 1969, ao ser incorporada pelo ordenamento jurídico, equiparava-se a uma lei ordinária, quanto à sua eficácia e hierarquia, conforme entendimento até então adotado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do HC nº 72.131-RJ julgado em 22 de novembro de 1995. Somente no ano de 2004 houve uma mudança de perspectiva com a aprovação da Emenda Constitucional nº 45, observando-se que, a partir de então, o artigo 5º, § 3º, passou a estabelecer que “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais” (BRASIL, 1988). O fato é que continuou a vigorar, até este momento, o entendimento do Supremo de que as convenções e tratados internacionais, quando recepcionados, equiparavam-se às leis ordinárias. Isto porque somente em 2008 o Supremo Tribunal Federal (STF), durante o julgamento do RE nº 466.343 SP, reviu seu posicionamento e passou a reconhecer que os tratados de cunho internacional possuem força supralegal, isto é, estão acima das demais leis brasileiras, mas abaixo das normas provenientes da Constituição Federal de 1988. Direitos Humanos e Democracia Editora Unijuí • ISSN 2317-5389 • Ano 6 • nº 12 • Jul./Dez. 2018 • Qualis B1 Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Unijuí https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/direitoshumanosedemocracia [2] Os Efeitos Advindos da Condenação do Brasil no Caso Damião Ximenes Lopes na Corte Interamericana de Direitos Humanos por Violação aos Direitos Previstos no Pacto de San José da Costa Rica 69 Dessa maneira, a partir desta nova percepção, eventuais condenações experimentadas pelo Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos ostentariam um novo sentido. Entre os diversos casos em que o Brasil figurou como parte diante da Corte Interamericana de Direitos Humanos merece destaque o caso Damião Ximenes Lopes, pessoa com adoecimento mental que, com apenas 3 (três) dias de internação na Casa de Repouso de Guararapes (CE), veio a óbito, destacando-se que o hospital psiquiátrico apresentou laudo apontando a causa da morte como indeterminada. A família de Damião Ximenes Lopes, indignada com o descaso do poder Judiciário e em razão da inércia e morosidade da Justiça, resolveu submeter o caso para análise da Comissão Interamericana de Direitos Humanos que, por sua vez, apresentou a demanda à Corte Interamericana, originando a denúncia nº 12.237 em desfavor do Brasil. A Corte Interamericana de Direitos Humanos recebeu a denúncia e, em 2006, condenou o Brasil, pela primeira vez, em uma sentença de mérito, em decorrência das diversas violações aos direitos humanos de pessoa com doença mental evidenciadas no caso em tela. É válido lembrar que, à época da condenação do Brasil, mais especificamente no ano de 2006, os tratados e convenções internacionais eram recepcionados com força de lei ordinária, em virtude do entendimento até então adotado pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Diante do exposto, por meio da utilização do método dialético, o presente artigo tem como objetivo reconhecer as consequências advindas da condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Damião Ximenes Lopes, tais como a criação de leis, a elaboração de estrutura de apoio para pessoas com deficiência mental, a capacitação dos profissionais da área da saúde mental, bem como a condenação pecuniária do Brasil. O primeiro tópico traz uma análise dos direitos humanos no período pós-Segunda Guerra Mundial e trata do Sistema Interamericano de Direitos Humanos, dando ênfase ao Pacto de San José da Costa Rica (1969). O segundo item versa sobre a posição adotada pelo Brasil na condição de signatário da Corte Interamericana de Direitos Humanos. O terceiro tópico expõe as particularidades do caso Damião Ximenes Lopes versus Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Por fim, o quarto e último item versa sobre as consequências advindas da condenação do Estado brasileiro no caso Damião Ximenes Lopes versus Brasil. Nesse contexto, o artigo busca responder ao seguinte questionamento: Quais os efeitos advindos da condenação do Brasil na Corte Interamericana de Direitos Humanos por violação a vários direitos do Pacto de San José da Costa Rica no caso Damião Ximenes Lopes?
2 O Sistema Interamericano de Direitos Humanos
Os direitos humanos, como verdadeiras reivindicações morais, “são fruto de um espaço simbólico de luta e ação social, na busca por dignidade humana, o que compõe um construído axiológico emancipatório”, segundo Flávia Piovesan (2007, p. 109). Desta forma, de acordo com os ensinamentos da autora, é possível afirmar que se trata de uma categoria de direitos inerentes a todo e qualquer indivíduo em decorrência de sua condição humana. Para Alberto Silva Santos (2012, p. 91), os direitos fundamentais ganharam relevância internacional somente após a Segunda Guerra Mundial, deixando de pertencer a um determinado Estado, isto porque passaram a ser compreendidos como direitos inerentes a toda a hu- Direitos Humanos e Democracia Editora Unijuí • ISSN 2317-5389 • Ano 6 • nº 12 • Jul./Dez. 2018 • Qualis B1 Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Unijuí https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/direitoshumanosedemocracia [2] Bruna Pereira Aquino – Gilsilene Passon Francischetto 70 manidade. Como consequência disso, os direitos humanos passaram a ser concebidos como direitos universais, indivisíveis e de cunho cosmopolita. Assim, o autor destaca que se adotou a ideia de que tais direitos não decorrem da nacionalidade do indivíduo, posto que os direitos humanos são essenciais à natureza de toda pessoa (2012, p. 102). Neste sentido, Luciana Genro (2012, p. 19) destaca que a afirmação dos direitos humanos como preocupação universal somente se concretizou após o fim do nazismo, com esse processo sendo estimulado pelos crimes hediondos cometidos durante a Segunda Guerra Mundial. Assim, é possível afirmar que as atrocidades ocorridas durante esse período histórico contribuíram diretamente para uma mudança de perspectiva no que diz respeito aos direitos humanos. É válido destacar que, durante anos a fio, propagou-se a ideia de que o relacionamento entre um determinado país e seus nacionais restringir-se-ia unicamente a um problema de jurisdição interna, sendo vedada a possibilidade de intervenção externa por parte de outros países ou órgãos internacionais quando da constatação de violação de direitos humanos. Ocorre que, com o passar dos anos, segundo Flávia Piovesan (2007, p. 116-117), houve um enfraquecimento da ideia de que o relacionamento entre um Estado e seus nacionais consistiria em um problema de jurisdição doméstica em decorrência da soberania estatal. Em consequência disso, progressivamente, ganhou força o entendimento de que os indivíduos, além de objetos, são também sujeitos do Direito Internacional. Assim, sob essa nova ótica, Flávia Piovesan (2007, p. 116-117) entende que “começa a se consolidar a capacidade processual internacional dos indivíduos, bem como a concepção de que os direitos humanos não mais se limitam à jurisdição doméstica, mas constituem matéria de legítimo interesse internacional”. Essa nova percepção foi importante, neste primeiro momento, para garantir a propagação dos direitos humanos, visto que, a partir de então, passou-se a vislumbrar a possibilidade de intervenção estrangeira nos Estados em que fosse constatada violação a esta categoria de direitos. Conforme exposto anteriormente, os direitos humanos, na condição de Direito Internacional, somente se consolidaram no contexto do pós-Segunda Guerra Mundial. Alberto Silva Santos (2012, p. 91) destaca que, nesse momento, além dos enunciados elaborados para garantir a proteção dos referidos direitos, foi necessária a criação de meios eficazes para inibir eventuais violações, bem como garantir sua aplicação concreta. Assim, em 1945 foi instituída, em âmbito global, a Organização das Nações Unidas (ONU), por meio da Carta das Nações Unidas, que trouxe algumas disposições referentes aos direitos humanos e também instituiu a Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948. Por sua vez, também foram instituídos, em níveis regionais, diversos sistemas de proteção dos direitos humanos que, de acordo com o autor, foram “inspirados pela noção internacional da necessidade de sua proteção em âmbito superestatal” (2012, p. 92). Interessante destacar a crítica tecida pelo autor Boaventura de Sousa Santos, o qual pretendeu demonstrar que, na verdade, não existe universalidade no que diz respeito à difusão dos direitos humanos, tendo em vista que houve propagação desses direitos apenas sob a ótica defendida pela cultura ocidental. Em síntese, o autor entende que a história dos direitos Direitos Humanos e Democracia Editora Unijuí • ISSN 2317-5389 • Ano 6 • nº 12 • Jul./Dez. 2018 • Qualis B1 Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Unijuí https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/direitoshumanosedemocracia [2] Os Efeitos Advindos da Condenação do Brasil no Caso Damião Ximenes Lopes na Corte Interamericana de Direitos Humanos por Violação aos Direitos Previstos no Pacto de San José da Costa Rica 71 humanos no período subsequente à Segunda Guerra Mundial revela que as políticas de direitos humanos estiveram, de maneira geral, a serviço dos interesses econômicos e geopolíticos dos Estados capitalistas hegemônicos (1997, p. 20). Boaventura de Sousa Santos (1997, p. 20) entende que a marca ocidental, também compreendida como ocidental-liberal, do discurso dos direitos humanos pode ser identificada, a título exemplificativo, na Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, visto que o documento, ao ser elaborado, dispensou a participação dos povos subjugados pelo colonialismo europeu, ou seja, não deu vez para a participação da maior parte dos povos do mundo. Além disso, segundo o autor, estabeleceu-se como prioridade os direitos cívicos e políticos sobre os direitos sociais, culturais e econômicos. Gradualmente, foram-se desenvolvendo discursos e práticas contra-hegemônicos de direitos humanos, foram sendo propostas concepções não ocidentais dos direitos humanos, foram-se organizando diálogos interculturais de direitos humanos. Neste domínio, a tarefa central da política emancipatória do nosso tempo consiste em transformar conceptualização e prática dos direitos humanos de um localismo globalizado num projecto cosmopolita (SANTOS, 1997, p. 21). Dessa forma, a fim de combater esse falso universalismo, posto que diversas culturas são excluídas da construção do significado de direitos humanos, Boaventura de Sousa Santos (1997, p. 22) propõe um diálogo intercultural sobre a concepção de dignidade humana, o que eventualmente pode desaguar em um significado “mestiço” de direitos humanos, constituindo, assim, redes de referências normativas capacitantes. Para que isso aconteça, entretanto, segundo o autor, é preciso que exista o reconhecimento de incompletudes mútuas como verdadeira condição sine qua non para a promoção de um diálogo intercultural. Nesse sentido, Alberto Silva Santos (2012, p. 148) destaca que, apesar da crítica feita à ocidentalização dos direitos humanos, mesmo os autores adeptos da teoria crítica reconhecem a importância do papel desempenhado pelo Sistema Interamericano, razão pela qual não se pode desprezar as conquistas já obtidas pelos processos de lutas que culminaram com a criação do Sistema. Apesar do dever de reconhecer os méritos do Sistema Interamericano dos Direitos Humanos, há também que constantemente fazer uma leitura crítica do mesmo, a qual poderá ampliar suas potencialidades para que cada vez mais o sistema tenha condições de cumprir com a missão de dar conta da enunciação, tutela, garantia e efetivação dos Direitos Humanos no âmbito do continente Americano (SANTOS, 2012, p. 155). Muito embora o presente artigo detenha-se em analisar questões ligadas ao Sistema Americano de Direitos Humanos, é necessário destacar que existem muitos outros sistemas de proteção, sendo possível citar, a título exemplificativo, o Sistema Africano e o Sistema Europeu. Conforme demonstrado anteriormente, porém, ganhou força e, consequentemente, hegemonia, os sistemas difundidos por meio dos países ocidentais localizados no Hemisfério Norte. No continente americano merece destaque a Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem, datada de 1948, que serviu como base fundamental para a elaboração da Convenção Americana de 1969, também chamada de Pacto de San José da Costa Rica. A re- Direitos Humanos e Democracia Editora Unijuí • ISSN 2317-5389 • Ano 6 • nº 12 • Jul./Dez. 2018 • Qualis B1 Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Unijuí https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/direitoshumanosedemocracia [2] Bruna Pereira Aquino – Gilsilene Passon Francischetto 72 ferida Convenção, integrante do Sistema Americano de Proteção dos Direitos Humanos, também foi responsável pela criação de uma Corte com competência necessária para promover a apreciação e julgamento dos casos envolvendo direitos humanos. Embora tenha sido criada em 1969, a Corte Interamericana de Direitos Humanos entrou em vigor somente em 1978, ou seja, cerca de 10 (dez) anos após a sua criação. Com sede na cidade de San José da Costa Rica, na Costa Rica, a Corte é composta por 7 (sete) juízes com mandato de 6 (seis) anos, sendo possível apenas uma prorrogação. Para garantir a composição da Corte, cada Estado-parte da Convenção Americana de 1969 pode indicar até 3 (três) nomes que, por sua vez, deverão ser aprovados por voto secreto da maioria absoluta dos Estados-parte, destacando-se que pelo menos um dos nomes indicados deverá ser de pessoa natural de Estado diferente do proponente. De acordo com Flávia Piovesan (2007, p. 237), a Convenção Americana limita-se a determinar que os Estados-parte alcancem, progressivamente, a plena realização dos direitos sociais, culturais e econômicos elencados na norma internacional mediante a adoção de medidas, inclusive legislativas, que se mostrem adequadas ao que está disposto no artigo 26 da Convenção, conferindo efetividade aos direitos e liberdades enunciados. Dessa maneira, segundo a autora, não restam dúvidas de que “cabe ao Estado-parte a obrigação de respeitar e assegurar o livre e pleno exercício desses direitos e liberdades, sem qualquer discriminação” (2007, p. 237). A Corte Interamericana de Direitos Humanos possui competência dúplice, ou seja, pode ser compreendida como órgão consultivo ou contencioso, ressaltando-se que a competência litigiosa para o julgamento dos casos é limitada aos Estados signatários da Convenção Americana de 1969 que tenham expressamente reconhecido tal jurisdição, conforme destaca Flávia Piovesan (p. 250). Flávia Piovesan (p. 251) ensina que as decisões proferidas pela Corte Interamericana têm força jurídica vinculante sendo, portanto, obrigatórias, cabendo ao Estado-parte seu cumprimento imediato. Ocorre que, para tanto, “é necessário que o Estado reconheça a jurisdição da Corte, já que tal jurisdição é apresentada sob a forma de cláusula facultativa (p. 252). Vale destacar que o Brasil aderiu à Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 somente em 1992 mas, conforme será demonstrado no tópico seguinte, não houve adesão imediata aos termos da Convenção, sob o argumento de que o Estado brasileiro “precisaria analisar a viabilidade de conformar a Convenção com o direito interno”, isto porque, à época estava vigorando o regime autoritário da ditadura militar (SANTOS, 2012, p. 105). Dessa maneira, a adesão tardia do Brasil à Convenção se justifica pelo momento político vivido pelo país naquela década.
3 A Posição do Brasil como Signatário da Corte Interamericana de Direitos Humanos
Mesmo após aderir à Convenção Americana em 1992, o Brasil ainda se mostrou resistente quanto à sua aplicação. Como exemplo disso podemos citar a questão – muito discutida – na jurisprudência brasileira do depositário infiel. Isto porque a proibição da prisão por dívidas, contida no artigo 7º, § 7º da citada Convenção, confrontava o ordenamento brasileiro que, com o aval do Supremo Tribunal Federal (STF), permitia essa modalidade de prisão civil. Direitos Humanos e Democracia Editora Unijuí • ISSN 2317-5389 • Ano 6 • nº 12 • Jul./Dez. 2018 • Qualis B1 Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Unijuí https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/direitoshumanosedemocracia [2] Os Efeitos Advindos da Condenação do Brasil no Caso Damião Ximenes Lopes na Corte Interamericana de Direitos Humanos por Violação aos Direitos Previstos no Pacto de San José da Costa Rica 73 Vale destacar que, de acordo com Alberto Silva Santos (2012, p. 106), à época, o Supremo adotava o entendimento de que “a Convenção deveria ser interpretada de acordo com as limitações impostas pelo art. 5º, inciso LXVII da Constituição Federal”, que elencava a possibilidade de prisão do depositário infiel. Nesse sentido, Flávia Piovesan (2007, p. 63-64) relembra que o Supremo, no julgamento do HC nº 72.131-RJ, em 22 de novembro de 1995, ao tratar dos impactos trazidos pela Convenção Americana de 1969 (Pacto de San José da Costa Rica), entendeu que a Convenção, no que diz respeito ao plano da hierarquia das normas jurídicas, estaria no mesmo nível de eficácia e autoridade das leis ordinárias internas. Dessa maneira, o Congresso Nacional não estaria impedido de aprovar legislação que instituísse a prisão civil do depositário infiel como meio de coerção processual. O Brasil, na qualidade de Estado-parte da Convenção Interamericana de 1969, somente reconheceu a competência jurisdicional da Corte Interamericana de Direitos Humanos no ano de 1998, por meio do Decreto legislativo nº 89, datado de 3 de dezembro, entretanto, conforme recorda Alberto Silva Santos (2012, p.106), a competência restringia-se aos fatos ocorridos a partir do seu reconhecimento, em conformidade com a previsão contida no parágrafo 1º do artigo 62 da Convenção. Apenas em 2004, com a aprovação da Emenda Constitucional nº 45, houve alteração dessa perspectiva. Isso porque a referida emenda, conhecida como “emenda do Judiciário”, provocou profundas mudanças no texto constitucional, entre as quais merece destaque a alteração do artigo 5º da Constituição Federal de 1988 (CRFB/1988). A partir de então o artigo 5º, § 3º da Constituição Federal de 1988 (CRFB/1988) passou a estabelecer que “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais” (BRASIL, 1988). Acredita-se que o novo dispositivo do art. 5º, § 3º, vem a reconhecer, de modo explícito, a natureza materialmente constitucional dos tratados de direitos humanos, reforçando, desse modo, a existência de um regime jurídico misto, que distingue os tratados de direitos humanos dos tratados tradicionais de cunho comercial. Isto é, ainda que fossem aprovados pelo elevado quorum de três quintos dos votos dos membros de cada Casa do Congresso Nacional, os tratados comerciais não passariam a ter status formal de norma constitucional tão-somente pelo procedimento de sua aprovação (PIOVESAN, 2007, p. 75). Ocorre que, mesmo diante da possibilidade de normas internacionais serem recepcionadas no ordenamento brasileiro como emendas constitucionais, ainda vigorava o entendimento do Supremo de que as Convenções e Tratados Internacionais, quando recepcionados, equiparavam-se às leis ordinárias. Alberto Silva Santos (2012, p. 106) destaca que somente em 2008 o Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento do RE nº 466.343-SP, mudou seu posicionamento e passou a reconhecer a impossibilidade da prisão do depositário infiel. A partir de então o STF, além de evidenciar sua nova postura, reconheceu que os tratados internacionais não possuem força constitucional, mas supralegal. Direitos Humanos e Democracia Editora Unijuí • ISSN 2317-5389 • Ano 6 • nº 12 • Jul./Dez. 2018 • Qualis B1 Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Unijuí https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/direitoshumanosedemocracia [2] Bruna Pereira Aquino – Gilsilene Passon Francischetto 74 Vale destacar que, muito embora o Supremo tenha revisto sua posição inicial, a Corte majoritariamente adotou o entendimento de que os tratados internacionais estavam acima da lei nacional, mas abaixo das normas contidas na Constituição Federal de 1988 devido ao seu caráter supralegal. De acordo com Letícia de Oliveira Ribeiro e Gilsilene Passon Picoretti Francischetto (2011, p. 35), entretanto, os direitos humanos, em decorrência de seu caráter universal e de sua indivisibilidade, deveriam prevalecer diante de um conflito com uma norma interna, visto que são mais benéficos à proteção do ser humano. Para Luciana Genro (2012, p. 71-72) os tratados internacionais que versam sobre os direitos humanos diferem dos demais, uma vez que, por meio deles, os Estados signatários assumem um compromisso perante a comunidade internacional de respeitar essa categoria de direitos sem que, para tanto, seja necessária uma contraprestação, visto que objetivam a proteção dos direitos dos indivíduos que vivem sob a jurisdição dos Estados. Isso porque a Convenção Americana de Direitos Humanos estabelece, em seus artigos 1º e 2º, deveres aos Estados que a ratificaram. Assim, os Estados-partes comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades reconhecidos na Convenção, garantindo seu livre e pleno exercício a qualquer pessoa que esteja sujeita a sua jurisdição, sem que exista nenhum tipo de discriminação. Além disso, os Estados signatários da citada Convenção comprometem-se a adotar, em conformidade com suas normas constitucionais e com as disposições contidas no Tratado, as medidas que forem necessárias para tornar efetivos os direitos e liberdades garantidos por meio da Convenção. Por essa razão, Luciana Genro (2012, p. 72) destaca que a violação de um Tratado ou norma de Direito Internacional enseja a responsabilização do Estado no que diz respeito à obrigação de reparar os eventuais danos que tenha causado, bem como possibilitou que o ente público sofresse sanções em decorrência da violação causada. Neste mesmo sentido, Alberto Silva Santos (2012, p. 103) destaca que não serão aceitas manobras de qualquer natureza, sejam legislativas ou judiciais, que contribuam para a limitação dos direitos resguardados pela Convenção. Ademais, destaca que as hipóteses de limitação estão expressamente dispostas na própria Convenção em seu artigo 27, que deve ser lido em conjunto com o artigo 30. Para esse autor (2012, p. 143), a relativização da soberania estatal que se dá com a adesão à Convenção Americana de Direitos Humanos é um ato de soberania em si mesmo e não pode, portanto, ser compreendido como uma usurpação por parte do Sistema Americano. Isso porque o próprio Estado resolveu voluntariamente aderir à Convenção e também à competência da Corte Interamericana. É válido destacar que a adesão à Corte deverá ser expressa, na medida em que o artigo 62 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos estabelece que o Estado signatário poderá, no momento de ratificação da Convenção ou de adesão a ela, ou em qualquer momento posterior, declarar que reconhece de pleno direito a competência da Corte em quaisquer casos relativos à interpretação ou aplicação do Tratado. É o que ensina Luciana Genro: As obrigações incorporadas nos Tratados de direitos humanos possuem caráter objetivo, e seu escopo fundamental é a proteção dos direitos do ser humano, e não a dos Estados. Esse é um traço marcante e específico dos Tratados de proteção internacional dos direitos humanos. Ao contrair uma obrigação internacional, isto é, assinar ou ratificar uma Direitos Humanos e Democracia Editora Unijuí • ISSN 2317-5389 • Ano 6 • nº 12 • Jul./Dez. 2018 • Qualis B1 Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Unijuí https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/direitoshumanosedemocracia [2] Os Efeitos Advindos da Condenação do Brasil no Caso Damião Ximenes Lopes na Corte Interamericana de Direitos Humanos por Violação aos Direitos Previstos no Pacto de San José da Costa Rica 75 Pacto ou uma Convenção, o Estado está no exercício pleno da sua soberania e, portanto, não pode invocá-la como razão para justificar o descumprimento desse compromisso (2012, p. 74). Assim, de acordo com Luciana Genro (2012, p. 73), é possível afirmar que, sob o olhar do Direito Internacional “não importa a visão que predomina no Direito interno a respeito do status dos Tratados Internacionais de direitos humanos”. Isso porque as violações dos direitos humanos sempre ensejarão a reponsabilidade internacional, mesmo que a violação seja amparada pela Constituição do país transgressor da Convenção.
4 O Caso Damião Ximenes Lopes
Entre os casos em que o Brasil figurou como réu perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos merece destaque o caso de Damião Ximenes Lopes, usuário do Sistema Único de Saúde (SUS), acometido de adoecimento mental que, internado em 1º de outubro de 1999 na denominada Casa de Repouso de Guararapes, instituição de caráter privado que operava no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) no município de Sobral, no Ceará, faleceu após apenas 3 (três) dias de internação, no dia 4 de outubro de 1999. Neste sentido, Letícia de Oliveira Ribeiro e Gilsilene Passon Picoretti Francischetto destacam que: É de domínio público que os portadores de deficiência mental se encontram em situação de vulnerabilidade, razão pela qual merecem especial atenção e proteção do Estado. Não obstante tal constatação seja de sapiência pública, o Estado Brasileiro não se atentou para as cautelas devidas, respondendo por isso perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos (2011, p. 29). Após a morte da vítima, o hospital psiquiátrico apresentou laudo em que apontava a causa de sua morte como indeterminada. A família de Damião Ximenes Lopes, no entanto, em decorrência da inércia e morosidade da Justiça, bem como das condições desumanas e indignas a que foi submetida a vítima durante sua internação, apresentou o caso para análise da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Assim, como bem ensinam Letícia de Oliveira Ribeiro e Gilsilene Passon Picoretti Francischetto (2011, p. 34), com a exclusão e a invisibilidade das pessoas acometidas por adoecimento mental, o Princípio da Igualdade, formalmente assegurado na Constituição de 1988 e na Declaração dos Direitos do Homem de 1948, é desrespeitado, culminando, de igual maneira, com a inobservância dos direitos humanos. As autoras destacam, ainda, que: [...] Em razão das características da universalidade e da indivisibilidade, conclui-se pela legitimidade da interferência internacional no ordenamento jurídico pátrio, no caso Damião Ximenes Lopes, para transcender do plano formal para o efetivo, a concretização da proteção aos Direitos Humanos, que o Estado Brasileiro foi incapaz de garantir (2011, p. 34-35). Dessa forma, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos apresentou a demanda à Corte Interamericana em desfavor do Brasil, o que originou a denúncia nº 12.237, recebida na Secretaria da Comissão em 22 de novembro de 1999. Vale destacar que a Comissão pretendia Direitos Humanos e Democracia Editora Unijuí • ISSN 2317-5389 • Ano 6 • nº 12 • Jul./Dez. 2018 • Qualis B1 Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Unijuí https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/direitoshumanosedemocracia [2] Bruna Pereira Aquino – Gilsilene Passon Francischetto 76 que a Corte decidisse se o Estado brasileiro deveria responder pela inobservância de vários direitos previstos na Convenção Americana de 1969, entre os quais ganham destaque o direito à vida, direito à integridade judicial, direito às garantias judicias e o direito à proteção judicial. Para que se compreenda a relevância do princípio da igualdade e a proteção aos direitos humanos, aos portadores de deficiência mental, indispensável se mostra a análise de seus precedentes históricos, para que posteriormente se compreenda a relevância da interferência da Corte Interamericana no caso de Damião Ximenes Lopes (RIBEIRO; FRANCISCHETTO, 2011, p. 34). Assim, a Corte Interamericana de Direitos Humanos condenou, pela primeira vez, no ano de 2006, o Brasil em uma sentença de mérito em decorrência das diversas violações aos direitos humanos inerentes às pessoas com adoecimento mental evidenciadas no caso em tela. É válido relembrar que, naquela época, o Brasil havia recepcionado a Convenção Interamericana de Direitos Humanos como simples lei ordinária. Nesse contexto, parece salutar trazer a reflexão de que, muito embora as pessoas com adoecimento mental sejam materialmente vistas pelos integrantes da sociedade, são ignoradas e, em razão disso, passam a integrar um grupo socialmente excluído. Ademais, para além do estigma que é atribuído a esses indivíduos, a falta de reconhecimento destas pessoas como sujeito de direitos funciona como óbice que impede sua humanização. Não é incomum que as pessoas que padeçam de algum tipo de sofrimento mental sejam rebaixadas, na maioria das vezes, a condições verdadeiramente animalescas. Dormem, comem e são tratadas como animais, motivo pelo qual esquecem “o que é ser gente”. Além disso, dissemina-se a crença de que esse grupo oferece risco às demais pessoas, razão pela qual deveriam ser mantidas trancafiadas. Logo, não é preciso empreender muitos esforços para constatar que as pessoas com adoecimento mental não são tratadas como pessoas – são desumanizadas – e, portanto, deixam de existir para a sociedade que, por sua vez, via de regra, ignora por completo suas necessidades.1 Nesse contexto, faz sentido destacar os ensinamentos de Boaventura de Sousa Santos, de que a “produção de não existência ocorrerá sempre que uma dada entidade é desqualificada e tornada invisível, ininteligível ou descartável de um modo irreversível (2006, p. 102)”. Boaventura de Sousa Santos (2006, p. 102-103) trabalha com cinco modos de produção da não existência, e, entre elas, é possível destacar a “lógica da classificação social”. Esse modo de produção da não existência consiste, basicamente, na distribuição de categorias que naturalizam hierarquias. Para Boaventura de Sousa Santos (2006, p. 102) a relação de dominação é a consequência e não a causa dessa hierarquia e pode ser considerada como obrigação daquele que é classificado como superior. Nesse viés, o autor ensina que “quem é inferior, porque é insuperavelmente inferior, não pode ser uma alternativa credível a quem é superior” (2006, p. 103). 1 PELLEGRINI, Marcelo. Em extinção, manicômios podem voltar disfarçados. In: Carta Capital. 2016. Disponível em:
Retirado de: https://www.revistas.unijui.edu.br/index.php/direitoshumanosedemocracia [2]