A Teoria do Direito se vê francamente desafiada a repensar seus fundamentos e seus capítulos mais sensíveis,1 [6]quando se trata de pensar o impacto das novas tecnologias e a emergência da era digital,2 [7] da era do numérico,3 [8]ou ainda, da era do cibernético e do espaço virtual. É decisiva, nesta perspectiva, a atitude de antecipação reflexiva, como forma de compreender os riscos e os impactos, tendo-se presente o papel social regulatório do Direito.4 [9] Entende-se que o Direito na era digital tem o papel de circunscrever fronteiras, regras e parâmetros, ‘freando’ o caráter ‘desenfreado’ do desenvolvimento tecno-científico, ao mesmo tempo em que a condição humana é re-significada, e em que as formas de sociabilidade são re-definidas.
Em dois estudos anteriores, já se havia procurado demonstrar como a desumanização prejudica processos de socialização fundados na vitória da técnica e na reificação social, no artigo intitulado Technique, Dehumanization and Human Rights,5 [10] e, também, como os avanços da tecnologia criam novos desafios para o campo de reflexões dos direitos humanos, no livro intitulado Os direitos humanos no espaço virtual.6 [11] Não é possível aqui retomar as categorias, os conceitos e as análises já empreendidas nos espaços anteriormente definidos, que são tomados como pressupostos daquilo que se desenvolverá de modo mais específico no estudo contido neste artigo. Por isso, a tarefa aqui é a de dar continuidade à perspectiva crítica desenvolvida nos estudos anteriores, elaborando-se aqui um diagnóstico de época, concernente aos interesses da Teoria do Direito. Daí, neste presente estudo, a ideia de reforçar a importância de atentar para o legado reflexivo da Escola de Frankfurt (Frankfurter Schüle), partindo-se dos estudos sobre a história da modernidade e o processo de afirmação da razão instrumental (Instrumentelle Vernunft), dentro da tradição deixada por Theodor Adorno, Max Horkheimer,7 [12] Walter Benjamin8 [13] e Jürgen Habermas,9 [14] apontando nesta forma de racionalidade própria do mundo moderno a estrutura que embasa a emergência da era do numérico, do digital e do ciberespaço. As categorias do pensamento frankfurtiano estarão embasando a análise de fundo ao longo do texto, enquanto se dialoga com a emergência de uma bibliografia mais atual, reflexiva e crítica sobre o estado da arte na área,10 [15] fazendo-se desta opção metodológica a forma de enfrentamento do tema, de condução do presente estudo e de discussão da noção de sujeito pós-humano e seus impactos para o Direito contemporâneo.
E, de fato, na toada frankfurtiana, como já vem apontando Hartmut Rosa, a nova dimensão da técnica moderna é aquela marcada pelo elevado grau de aceleração.11 [16] É ela que reforça hoje a importância da abordagem crítico-realista, para a qual a processualidade da condição humana figura agora premida pelas circunstâncias de uma evolução técnica sem precedentes. É aí que a Teoria do Direito, enquanto Teoria do Humanismo Realista, a partir da proposta teórica contida no livro Introdução ao Estudo do Direito: humanismo, democracia e justiça (2018),12 [17]deve responder aos desafios epocais, em tempos pós-humanos e trans-humanos. Isso evidencia a importância da crítica aos processos de desumanização que poderão surgir do hiper-enaltecimento da máquina, da mitificaçãodos processos tecnológicos, das ideologias da cyberculture, da fetichização do corpo-máquina reduzido à coisa-mercadoria, da servilização do homem à máquina. Ali onde a nova potência político-econômica promover barbarização, gerar exclusão e aprimorar processos de dominação, consideradas as novas fontes da violência cibernética, e a lógica eugênica vier a tornar banais as fontes de alimentação da conexão entre vida, respeito, integridade, dignidade e direitos, a reflexão da Teoria do Direito, enquanto Teoria do Humanismo Realista, deverá se retrair em busca de novos fundamentos para o Direito.
A revolução digital será aqui compreendida, portanto, como mais uma das etapas internas do mundo moderno, e a glorificação das novas tecnologias será interpretada como a ideologia que autoriza a emergência das novas fronteiras e conquistas da técnica moderna. Dentro de uma nova fronteira dos processos de modernização, será novamente a razão instrumental (Instrumentelle Vernunft) que fará emergir, no contexto atual, a substituição do ‘governo’ pela ‘governança numérica’, e o deslocamento da noção de ‘lei’ pela ‘noção de cálculo’, conforme aponta o filósofo francês Alain Supiot, o que se traduz em novos e graves desafios para o Estado Democrático de Direito.13 [18] As inovações atuais são tão graves que se chega mesmo, nesta ‘nova era’, a colocar em questão o próprio papel da razão, inclusive, da razão moderna, como o faz filósofo tunisiano Pierre Lévy.14 [19] Por isso, esta reflexão encontra atualidade e deve demarcar um espaço importante de trabalho, de modo que neste breve espaço se procurará tratar dos avanços da instrumentalidade ao nível da virtualidade, a galope de um processo de hipermodernização social, tendo-se presente o vocabulário do sociólogo francês Gilles Lipovtesky.15 [20]
A Teoria do Direito na Era Digital
A era digital corresponde ao período histórico em que a vida social, as relações de trabalho e boa parte das interações humanas passam a estar determinadas por ‘algoritmos’ e ‘operações digitais’. A emergência da era digital impõe novos desafios ao Direito. Desta forma, a Teoria do Direito não pode permanecer estática diante destes novos desafios. A Teoria do Direito depende de profundas modificações sociais, para creditar mudanças aos conceitos jurídicos, e, com isso, retorcer o Direito em torno das novas categoriais sociais em mutação.16 [21]Diante da tecnologia avançada, da inteligência artificial e da aceleração da vida, entra-se de fato numa ‘nova era’, a era da revolução digital, num novo estágio de desenvolvimento do capitalismo, e, portanto, do mundo moderno.
A partir daqui, já se podem apontar os fatores que estarão cada vez mais presentes na dinâmica de interferência das novas tecnologias,17 [22] e que constituem os novos ingredientes da ‘era digital’: i.) a tecnologia da informação; ii.) as nano-bio-tecnologias; iii.) a tecnologia genética; iv.) a tecnociência; v.) a neurociência; vi.) a cloud computing; vii.) a robotização; viii.) a digitalização; ix.) as microtecnologias; x.) a inteligência artificial.18 [23] Todos estes termos evocam um processo de auto-aprimoramento da técnica moderna. Isso torna possível enxergar o quanto se está diante de um hiper-aperfeiçoamento da razão técnica, das tecnologias e das fronteiras das ciências. Por isso, estes fatores aqui presentes não são tomados apenas como aspectos isolados do mundo contemporâneo, mas como conglomerados de fatores que constituem uma nova dinâmica, uma nova etapa dos processos de modernização, à qual se costuma chamar de ‘era digital’.
Diversos diagnósticos de época vêm sendo apontados, considerando os desafios impostos pela ‘era digital’, como apontam os estudos de sociólogos renomados de diversas tradições teóricas, a exemplo de Zygmunt Bauman, Gilles Lipovetsky e Alain Supiot. Em verdade, o que se processa é uma dessubstancialização da matéria e das relações, num processo social de modernidade líquida - considerando-se a leitura do sociólogo Zygmunt Bauman - em direção à sua transferência para o virtual, para o digital e para a hipervelocidade.19 [24] Assim, em nossos tempos, emerge uma civilização da leveza - tendo-se presente a leitura do sociólogo francês Gilles Lipovetsky - cujas características apontam para as dimensões do impalpável, do imaterial, do virtual e, portanto, da leveza.20 [25]Aqui, se pode também dizer - nas palavras do filósofo francês Alain Supiot - que se está diante do império do numérico, este que instala a governança numérica e destrona o império da lei.21 [26] Estes diagnósticos sociológicos contemporâneos são relevantes para uma apreensão mais profunda dos rumos e desrumos sociais dos processos de modernização. Junto com isso, evidentemente, a percepção de novos destinos ao universo do Direito e de suas práticas.
Neste contexto, é certo que uma nova fronteira da Ciência do Direito irá emergir. E, de fato, a esta terceira dimensão da realidade - chamada realidade digital pela filósofa Marcia Tiburi22 [27] - já corresponde uma nova fronteira da Ciência do Direito, qual seja, o Direito Digital,23 [28] também chamado de Direito Virtual. Este é apenas um aspecto da relação entre Direito e Tecnologia. O outro aspecto é propriamente aquele que implica novos desafios, e, com isso, um impacto das novas tecnologias que irá re-cambiar a Teoria do Direito, em múltiplas dimensões, especialmente em capítulos mais diretamente sensíveis às novas fronteiras das transformações sociais. E, em verdade, a Teoria do Direito – enquanto Teoria do Humanismo Realista - já começa a constatar este tipo de reconfiguração em algumas fronteiras, dimensões e interfaces específicas do Direito contemporâneo, em especial, considerando o abalo profundo no Direito Privado, na esfera dos Direitos da Personalidade, no âmbito do Direito Internacional, considerando-se a perda de fronteiras para a regulação da moeda e das interações comerciais virtuais, na esfera do Direito Penal, tendo em vista o surgimento dos crimes cibernéticos e do terrorismo virtual, e, ainda mais, na esfera dos Direitos Humanos, considerando-se as diversas ameaças à dimensões da dignidade humana.24 [29] Por isso, mapear este tipo de questão é algo concernente aos domínios da Teoria do Direito, pois o tremor provocado por estas mutações haverá de se fazer ressoar em diversos ramos do conhecimento do Direito, afetando as Ciências do Direito em sua totalidade. E é diante desta encruzilhada que se terá que colocar a Teoria do Direito em reavaliação.
Direito, Ideologia e cyberculture
Toda era produz suas próprias ideologias. A ‘era digital’, quando emerge em todo o seu frescor nos tempos atuais, não seria uma exceção neste sentido. A era digital vem revestida de ideologias, trazidas pela cyberculture. Ora, as ideologias servem para justificar novos processos sociais e, por isso, tornam possível camuflar a emergência de novos poderes e formas de dominação. As ideologias são, assim, a face cultural - na forma de um sistema de ideias - de processos sociais mais basilares, ao nível da economia e do trabalho, das interações sociais e do controle social.25 [30] Não por outro motivo, nossa época é farta em proporcionar a apologia das novas tecnologias. É assim que se torna possível que os indivíduos se tornem apêndices de seus gadgets, enquanto enxergam apenas nestes seus novos aliados. A tecno-dependência deixou de ser algo lateral, e a vida moderna impõe um uso irrestrito, imoderado, exaltado e tecnofílico de todo o aparato técnico que suporta a integração das novas tecnologias e a expansão dos novos instrumentos técnicos.
Afinal, os avanços técnicos já são tantos que, por projeções, hoje já é possível antever que um robô poderá substituir um humano para ler um discurso (2025), escrever um trabalho escolar (2026), compor um sucesso musical (2027), atuar como vendedor de loja (2030), e, afinal, substituir qualquer trabalho humano (2140).26 [31]As previsões do crítico norte-americano Andrew Keen apontam para o fato de que nos próximos quinze anos as tecnologias digitais irão reconfigurar por completo os relacionamentos humanos.27 [32] É neste sentido que se podem localizar ‘utópicos das novas tecnologias’ a idealizar os traços da nova era a partir do Vale do Silício28 [33] - o Vale das Tecnologias nos Estados Unidos da América -, estes que professam uma fé imoderada pelas novas tecnologias, de onde promanam promessas futuristas, entre elas a libertação do homem de seus fardos.29 [34]
Ora, fica claro por esta análise que existe uma ‘vociferação’ em torno das promessas das novas tecnologias. Como é certo que todo discurso tem seus entusiastas, a ideologia da cyberculture também tem seus filósofos-profetas, cientistas-futuristas, internautas-tecnofílicos, estes que são os sujeitos responsáveis pela exaltação das ‘novas tecnologias’, tendo-se em Donna H. Haraway, Ray Kurzweil e Nick Bostrom seus protagonistas.30 [35] E, de fato, esta história não começou de hoje, e encontra seu passado recente nas últimas décadas do século XX, sabendo-se da importância do marco encontrado no escrito da filósofa norte-americana Donna J. Haraway, na perspectiva do feminismo, com o ensaio Manifesto for Cyborgs: Science, Technology, and Socialist-Feminism in the 1980s, publicado na Socialist Review (1985). No entanto, no início do século XXI, vem despontando o papel do Institute for Ethics and Emerging Technologies [36],31 [37] o Extropy Institute,32 [38] com Ray Kurzweil, e as inquietações expostas por Nick Bostrom, através do Future of Humanity Institute.33 [39] A partir das preocupações que desperta e das promessas desmesuradas que carrega, são importantes as reflexões emergentes. No entanto, quer-se afirmar que aqui se está propriamente diante da ideologia futurista que qualifica e justifica a chegada de uma nova revolução da indústria - a partir do mundo desenvolvido e altamente tecnológico - com um olhar estriônico e hiper-exaltado.
A exaltação central da era digital escorre, portanto, para a exaltação da centralidade da máquina. Esta exaltação desloca o sentido do humano, e, com ele, o sentido da razão humana. Por isso, começa-se a professar um tipo de ideologia em que se encontra inscrita em seu interior uma lógica de exaltação da máquina e decretação de morte da razão. Eis aqui a ainda tímida e germinativa instauração de uma era pós-racional. Alguns, no campo da Filosofia, chegam inclusive a detalhar a dimensão dos limites da razão humana, ao compará-la ao ilimitado da máquina e aos apoios da memória sobre as coisas e as tecnologias, como o faz o filósofo francês Pierre Lévy.34 [40]Aqui, o próprio estatuto do pensamento é colocado em questão - e substituído por expressões mais sutis e leves - como a ideia de Pierre Lévy, de que pensar se torna um “...devir coletivo no qual misturam-se homens e coisas”.35 [41] Neste sentido, torna-se possível imaginar que os efeitos negativos deste processo são apenas aspectos marginais, ou apenas riscos de efeitos colaterais, dos mais profundos avanços tecnológicos.36 [42]
Seja como for, onde se vê apenas a emergência da ideologia da auto-exaltação das novas tecnologias - enquanto expressão de uma nova revolução da indústria - se torna possível, sobretudo, o (i) rebaixamento do sentido do corpo humano, e, simultaneamente, a (ii) heroicização da máquina, e (iii) a proclamação da vitória do numérico/digital. Na contra-marcha deste processo, há aqueles que são protagonistas em apontar a críticas da revolução digital e de seus efeitos negativos, tal como o crítico norte-americano Andrew Keen, geralmente visto como uma voz isolada.37 [43] Assim, a era digital, vista como era cognitiva, se torna a era que produz novas ideologias tecnofílicas, trazendo consigo enormes riscos de novas irracionalidades. São estes riscos que precisam ser considerados, na imoderação da ideologia da cyberculture. Daí a importância de serem mapeados, identificados, dosados e regulados, quando exatamente o mero enaltecimento não permite senão o encobrimento da estrutura das novas formas de dominação. Por isso, é tarefa da razão (Vernunft), e, especialmente, da razão crítica fornecer subsídios para a leitura e desmistificação das novas ideologias da era digital.
Por isso, pelo caminho da Kritische Theorie,38 [44] é possível apontar para a crítica das irracionalidades tecnológicas, considerando-se os seguintes riscos, já atuais e presentes: i.) a sobrecarga informacional se torna uma nova forma de des-informação e des-orientação, com sensível perda de autonomia intelectual; ii.) o crescimento das formas de hipercontrole dos indivíduos pelo controle de dados derivados da vida digital dos sujeitos; iii.) o crescimento da dominação intelectual e da perda de liberdade de consciência, considerada a invasividade dos meios eletrônicos plugados ao corpo humano; iv.) a emergência da programação pela ‘governança numérica’, no lugar do governo pelo respeito ao povo soberano, como aponta Alain Supiot;39 [45] v.) a perda da autonomia do sujeito, diante do império do visível, no lugar do reflexivo, como aponta Marcia Tiburi;40 [46] vi.) o enfraquecimento da subjetividade, que se vê funcionalizada, absorvida e capturada pela técnica, como aponta Christian Dunker;41 [47]vii.) a emergência da pós-verdade, da verdade-consumo, como aponta Marcia Tiburi;42 [48] viii.) o enfraquecimento da ética e dos liames que implica;43 [49] ix.) a perda de rumo e o enfraquecimento dos liames sociais, com forte tendência de entrega e absorção dos poderes sociais pelas novas formas de poder digital.44 [50]
A Teoria do Direito, o Sujeito de Direito e a emergência do Pós-Humano
São múltiplas as mudanças que se farão sentir ao longo das próximas décadas. Entre elas, se encontra a nova relação que se manterá com o corpo humano, considerando-se os avanços da tecnociência - entendida aqui, em sua centralidade, como a aliança estratégica entre tecnologia avançada e ciência robotizada, enquanto um dos motores desta nova era45 [51]- será capaz de reconfigurar por completo as relações humanas e sociais, e, por isso, a fonte de motivação e justificação do Direito. Isto se diz, considerando-se, sobretudo, o fato de que boa parte da tradição em que se funda o Direito moderno, deriva da figura do Sujeito de Direito - a qual, por sua vez, nasce à imagem e semelhança da figura corporal do Homem, situado a partir da visão do humanismo ocidental antropocêntrico - levando-se a uma crise de definição da própria função do Direito, ao menos na forma moderna como é conhecido. Em verdade, com todas estas mudanças, é o capítulo acerca do Sujeito de Direito - aliás, um dos capítulos mais sensíveis a mudanças de toda a Teoria do Direito - que entrou em crise, como aponta o sociólogo Laymert dos Santos.46 [52] Nesta perspectiva de análise, vale apontar que uma nova fronteira do conceito de Sujeito de Direito está em surgimento e formulação: a do Sujeito Pós-Humano de Direito.
Mas, para que se aprofunde este ponto, é necessário estudar o impacto dos avanços tecnológicos na auto-compreensão do corpo humano. E, para efeitos desta análise, o ‘corpo’ será tomado como um campo complexo de disputas sociais, e, por isso, é visto como o lugar de manifestação dos novos avanços da tecnociência e das novas fronteiras do capitalismo. Aqui, o ‘corpo’ é considerado - mais do que como expressão físico-biológica da humanidade -, o lugar-síntese de processos de socialização, de trocas entre ego e alter, sendo por isso o locus da cultura e das práticas de um tempo, permitindo registros significativos acerca da relação que se tem com o ‘corpo-biológico’ (proibição; medo; dominação; ódio; exploração; comiseração; martírio; extermínio; risco; limite; hedonismo; etc.). Daí, sua importância estratégica e reveladora, quando se quer pesquisar e compreender a nossa ‘era’.47 [53] Por isso, ter-se-á presente na dimensão do corpo físico a emergência de uma nova disputa por re-configuração de nossa própria humanidade.
É assim que o individualismo contemporâneo é tão extremo que encapsulou a nova revolução dentro de si, pois ela é agora uma revolução do ‘corpo’ pela tecnologia, em direção à leveza.48 [54] Ali, onde estas duas pontas se encontram, se inicia uma nova história. Seja pela via da body modification, seja pela via da hipercodificação de dados do ‘corpo humano’, seja pelos neurochips, fato é que a tecnociência e as promessas da cyberculturerompem o horizonte do conhecido, como aponta o antropólogo italiano Massimo Canevacci.49 [55] E isto porque, o ‘corpo humano’ é o último nicho de ‘natureza’ que ainda resta a ser ‘substituído’ e ‘superado’ pelo mundo moderno, no extremo de sua fronteira tecnológica. Por isso, ele deve ser ‘escrutinado’, ‘investigado’, ‘observado’ para ser ‘substituído’, ‘reformado’, e, no limite, ‘superado’. Por isso, a ‘era digital’ quer consagrar a tecnologia e declarar a obsolescência do corpo humano. Na obsolescência do corpo humano, se constrói o espaço para a emergência do pós-humano, do pós-orgânico, do trans-humano, ali onde a modernidade se acirra - e, se manifesta como hiper-modernidade, na definição do sociólogo francês Gilles Lipovestky -50 [56] e dialeticamente consome o ‘corpo’ do qual emergiu na figura do Sujeito Moderno cartesiano, na relação entre res cogitans e res extensa.51 [57]
Está-se a caminhar a passos largos em direção à ideia do ‘corpo-total’, ou seja, do ‘corpo-máquina’ - este que se coloca no lugar do ‘corpo-físico’, do ‘corpo-biologia-natureza’ - dimensão contra a qual a modernidade se constituiu como insurgente e insubordinada, na tentativa de ‘controlá-la’ e ‘superá-la’, instalando em seu lugar a vitória do homem moderno sobre a natureza, na figura do Sujeito Moderno. O ‘corpo’ é agora a porção de natureza que a modernidade quer superar. Ali, onde a modernidade instaura a morte do paradigma do homem-velho - ou seja, do detentor do corpo-físico-biológico não modificado, em toda a sua diversidade étnica - e proclama o nascimento do paradigma do homem-novo - o ‘cyborgue’, o ‘homem-máquina’, ou seja, o corpo humano aprimorado pela tecno-ciência - completa-se a vitória da máquina (e a vitória da técnica moderna) sobre o homem, na inversão civilizatória promovida pela modernidade, em que o apêndice-máquina se torna o centro da sociedade - na forma anunciada pela crítica da Escola de Frankfurt -,52 [58] e, por isso, a razão de ser da existência.53 [59] Aqui, com clareza, percebe-se que a tríade moderna formada pela economia, pela técnica e pela ciência segue os seus rumos desembestados, em direção ao futuro dominado pela tecnologia.54 [60]
O que se percebe, portanto, pela análise deste movimento, é que a construção social da irrelevância do corpo humano não é uma invenção ‘nova’, mas sim ‘moderna’, e, ainda, pode-se dizer, ‘moderna demais’. Aliás, este parece ser o último elo a definir que o homem é animal humano, e, portanto, corpo-biologia-natureza, envolvendo a vocação para a superação dos limites biológicos da vida.55 [61] Agora, se trata de levar o ‘corpo’ em direção à sua máxima potência, instaurando-se um ‘novo paraíso’, ali onde o ‘corpo’ desabita o mundo,56 [62] ou ainda, expandindo-se suas qualidades normais em direção à ‘hiper-qualidades’.57 [63] É assim que a nova era se revela ao promover o enaltecimento da superação das características do corpo humano, quais sejam, a imperfeição, a limitação, a incompletude, o defeito físico, a mortalidade, a finitude. Por isso, na ruptura que encapsula, o hiper-corpo é o sonho da hiper-modernidade.58 [64]
Assim, de forma mais sintética, pode-se dizer que o ‘hiper-corpo’ (ou seja, o corpo que não adoece, não perece, não sofre) é a codificação histórica da condição pós-humana. E tudo que é marginal ao hiper-corpo deve ser excluído (ou seja, a fraqueza, a feiúra, a velhice, a doença, a deficiência, o limite).59 [65] Aqui está a geração da tendência social ao desprezo das dimensões do humano em face do pós-humano, considerando-se os aportes possíveis da tecnociência e da tecno-modificação do corpo. É neste domínio que se manifesta um novo campo de saber, mas também, com ele, um novo campo de economia e, portanto, um novo campo de poder. Eis aí, a aparição do nanopoder.60 [66]
É importante grifar que a modernidade contém um projeto não-reconciliado com a natureza, expresso pela razão instrumental, o que faz com seu caráter seja, dialeticamente, destrutivo; aí, este projeto se revelar como um projeto de dominação.61 [67] A modernidade se manifesta na destrutividade do ar, da água, do solo, da vida vegetal, da vida animal e, por consequência, da vida humana e planetária.62 [68] Agora, a nova fronteira dos processos de modernização envolve o controle, a dominação, a redefinição e a medição laboratorial do ‘corpo humano’. Ali onde se tentou dominar, controlar e modificar a natureza, o homem gerou efeitos colaterais verificáveis. O mesmo se dará com os processos de modificação do ‘corpo humano’, pois se trata de ‘controlá-lo’, ‘modificá-lo’, ‘moldá-lo’, ‘aprimorá-lo’, ‘superá-lo’ -63 [69] a pretexto de ‘melhorá-lo’ -64 [70] o que implica fazê-lo capaz de viver numa intensidade, leveza e velocidade sem precedentes,65 [71] todas estas que acompanham as novas rítmicas do mundo do trabalho virtualizado e da economia numérica.66 [72] Assim, conclusivamente, se verifica que uma natureza aprimorada pela técnica se torna uma ‘outra-natureza’, artificializada, uma natureza-produto, ou seja, a natureza trans-humana.67 [73] O quanto este projeto contém de violência, ainda se haverá de aquilatar, num futuro próximo. Mas, desde já, percebe-se o quanto este processo se ocupa de destruir as concepções até então vigentes. Assim, começa a se manifestar – na figura prototípica da nova era, o ‘cyborg’ - o fim da cadeia evolucionária do ser humano, do macaco ao hominídeo, e deste, ao homem-máquina, ou seja, ao homem hibridizado à máquina.68 [74]
A Teoria do Direito e os Sujeitos Pós-Humanos de Direito
Até aqui se pôde estudar de mais perto como a ‘era digital’, da tecnologia avançada, produz novas condições de socialização. A partir daqui, se trata de perceber como o Direito irá lidar com estas novas condições. E o primeiro passo é o de reconhecer que a noção de Sujeito Moderno forjou a concepção que se tem, no Direito Moderno, de Sujeito de Direito. Aliás, esta é uma noção capaz de abrigar conceitos em constante mutação, em seu interior, daí sua enorme versatilidade histórica.69 [75] Diante da ‘era digital’, é normal imaginar que esta categoria volte a se re-configurar, para abranger aí também o ‘homem-máquina’. É aqui que se esboça, para o Direito contemporâneo, o novo estatuto dos Sujeitos Pós-Humanos de Direito. A categoria Sujeitos Pós-Humanos de Direito abriga a nova qualidade do humano, uma vez hibridizado com a máquina por processos tecno-científicos. Mas, aqui, a preocupação não se reduz à necessidade de regulamentar o tratamento da matéria. A preocupação se estende no sentido da re-construção da Teoria do Direito - no sensível capítulo teórico acerca do Sujeito de Direito -, com vistas ao tratamento dos desafios impostos pela revolução digital e tecno-científica sobre o ‘corpo humano’.
E isso impõe sentido à experiência do Direito contemporâneo, na perspectiva de tratar de configurações ainda diáfanas e mal elucidadas, seja na perspectiva prática, seja na perspectiva teórica de sua abordagem. Mas, de toda forma, os riscos já estão presentes, e são a razão suficiente para o tratamento das questões que acaba por impor. Aliás, como aponta o sociólogo francês Alain Supiot, o risco é o fundamento do Direito em nossos tempos, na medida dos próprios efeitos da crise econômico-financeira e numérica de 2008.70 [76] Afinal, são mais do que concretos os riscos a que expõe a vida, podendo-se destacar uma série mínima (e atual) destes já bem identificados: i.) o risco da eugenia,71 [77] e o controle de um mercado de seleção genética da vida, como face macabra do nanopoder; ii.) os riscos decorrentes das aplicações das novas tecnologias na guerra, considerando-se os avanços da robótica militar e, inclusive, a possibilidade de refundar a competição em escala global por estes novos armamentos;72 [78] iii.) o risco da superação do homem pela máquina, diante de uma crescente atitude de desmoralização do corpo em prol da vitória técnica; iv.) o risco da escravidão de seres humanos criados laboratorialmente, pela manipulação genética da vida, conservando-se a propriedade jurídica sob o condicionamento de empresas; v.) o risco da coisificação da vida humana; vi.) o risco da construção de uma hierarquização entre seres ‘hiper-humanos’, corporalmente modificados, que sejam tornado superiores em capacidades e habilidades, e seres ‘humanos’, corporalmente inalterados, e, portanto, inferiores em capacidades e habilidades.
Diante destes riscos, parece significativamente importante a rota em direção às seguintes orientações a serem traduzidas nas preocupações da Teoria do Direito, em novas regulamentações e em novos corpos legislativos:
1. clonagem do corpo humano: a proibição legal da clonagem humana, tendo-se como preocupação que o homem se converta, de Sujeito de Direito, em Objeto de Direito.73 [79] Deve-se evitar que o corpo-objeto da indústria farmacêutica, da engenharia genética e da nanomedicina faça do corpo-físico-biológico um sucedâneo da substitutividade do mundo das mercadorias - para que se crie uma nova realidade de substitutividade do corpo-humano-serial - agora feito corpo-coisa e, por isso, rebaixado ao seu novo estatuto objetual. Nesta perspectiva, em três importantes artigos da década de 1990, intitulados Escravidão genética? Fronteiras morais dos progressos da medicina da reprodução (1998),74 [80] Não é a natureza que proíbe clonar. Nós mesmos devemos decidir (1998), 75 [81] A pessoa clonada não seria um caso de dano ao direito civil (1998),76 [82] o filósofo alemão da 2ª. geração da Escola de Frankfurt, Jürgen Habermas, acende o alerta filosófico e nos fornece argumentos contundentes contrários à clonagem humana, aos avanços indiscriminados da biogenética e das ciências biomédicas e da neo-eugenia;77 [83]
2. corpos híbridos: os corpos híbridos entre homem e máquina, ou o ‘cyborgue’, devem ser objeto de proteção legal personalíssima, no âmbito dos Direitos da Personalidade, na medida em que aqui se configura apenas uma nova dimensão física do corpo humano modificado, conhecendo-se a necessidade de cura de doenças, o uso de próteses e a liberdade estética que cada qual possui ao lidar com o seu próprio corpo físico, cujos limites ainda não se conhece por completo.78 [84] Na era em que tudo se define como ‘-pós’, o corpo-humano-modificado também passa a ser requalificado como ‘pós-corpo’, sabendo-se que este também deve ser alvo de proteção jurídica e política.79 [85] Nesta perspectiva, fica claro que o fundamento desta proteção legal repousa nos Direitos da Personalidade, na forma como o próprio Código Civil brasileiro atualmente os reconhece (arts. 11 a 21 do C.Civil 2002). Com isso, cria-se aqui, o que alguns autores estão chamando de cidadania cyborgue, como aliás nos lembra David Le Breton;80 [86]
3. robôs e inventos mecanizados: os robôs e os inventos mecanizados, criados pela indústria, devem receber o tratamento de Objetos de Direito. Afinal, a repetitividade matricial e serial do objeto-máquina patenteado faz de sua essência uma posse espiritualizada da indústria. Para lidar com isso, o Direito Civil comum, especialmente considerado o Direito de Propriedade Intelectual, e a Teoria da Responsabilidade Civil e o Direito do Consumidor, criaram fórmulas e conceitos que conferem tratamento adequado a esta matéria, sendo objeto de propriedade, e, portanto, o proprietário é responsável por todos os atos e defeitos que decorrem do uso e dos atos maquinais promovidos pelo robô.
A Teoria do Direito, os Direitos Humanos e a regulação cibernética
Por fim, tendo-se presente o que se disse anteriormente, enquanto o aumento da presença da máquinadesmancha, desordena e torna incerta a vida contemporânea, bem como as relações sociais, a forma do trabalho, as interações digitais, considerando-se as categorias que organizaram a modernidade pesada,81 [87] o Direito tem a tarefa de regular os efeitos negativos deste processo, atuando na perspectiva da preservação de direitos e deveres, especialmente tomada a situação dos Direitos Humanos no espaço cibernético.82 [88] Por isso, no Brasil, como em tantos outros países do mundo, a exemplo da França, começa a avultar uma legislação específica sobre as matérias digital e virtual, como apontam os mais de 11 textos legais sobre temas do Direito Digital, ou Direito Virtual.83 [89]
A tarefa do Direito, para fazer face à era do numérico e à era do digital, é a de consolidar a quarta dimensão dos direitos humanos - correspondendo à regulação da engenharia genética84 [90] - e avançar, no sentido de tonar ainda mais claro o surgimento da chamada quinta dimensão dos direitos humanos - correspondendo à regulação da tecnologia da informação85 [91] -, tendo-se em vista a importância de contornar por camadas de regras jurídicas o núcleo central da dignidade da pessoa humana.86 [92] A exemplo do que ocorre na França, começa a despontar na legislação o tratamento dos seguintes temas, a serem traduzidos em termos de ‘novos direitos’: i.) um direito de abertura e circulação de dados (droit d´ouverture et de circulation des données);87 [93] ii.) um direito ao apagamento dos dados pessoais (droit à l´effacement des données personnelles);88 [94] iii.) diante das ideologias do corpo-máquina que afetam o direito ao envelhecimento, a defesa da dignidade humana na velhice;89 [95] iv.) a luta contra a cibercriminalidade (la lutte contre la cybercriminalité);90 [96] v.) a invasão da privacidade em face da liberdade de expressão (ménaces à la privacité en face de la liberté d´expréssion);91 [97] vi.) a inovação nos métodos de participação política e a forma da democracia representativa.92 [98] Estas são já algumas das possíveis perspectivas de ‘novos direitos’ em afloramento, considerada a experiência legislativa francesa. Mas, este é apenas o início de um mais longo processo - que não se pode aqui adiantar, e nem adivinhar -, considerando-se os desafios que ainda estão por vir, e que reclamarão, da Ciência do Direito e da Teoria do Direito, enormes esforços no sentido de sua re-invenção.
CONCLUSÕES
Este artigo procurou identificar - numa perspectiva teórico-crítica - o conjunto de mutações operadas pelo impacto das novas tecnologias, especialmente considerados os desafios para a Ciência do Direito - tendo-se presente o papel do Direito Digital -, para a Teoria do Direito - tendo-se presente o sensível capítulo dos Sujeitos de Direito -, e para os Direitos Humanos - tendo-se presentes os desafios para a proteção da dignidade da pessoa humana. Em especial, procurou-se abordar o problema do quanto os desafios trazidos pelas novas tecnologias re-modelam a Teoria do Direito, em muitas de suas categorias. Ali onde a revolução digital traz consigo inúmeras inovações - e altera a configuração das relações humanas e sociais - esta acaba por carregar também riscos e desafios, que foram aqui identificados e mapeados, sabendo-se que estes acabam por reclamar a implementação de novos direitos. É assim que na fronteira dos processos de modernização o Direito se renova e se redimensiona.
Tendo-se em vista estas reflexões, pode-se concluir que o reconhecimento de dignidade ao ‘cyborgue’ - à fusão homem-máquina - indica que a dignidade não é atributo do corpo-físico, ou ainda, muito menos, de seu estatuto epocal, enquanto ‘corpo-pós-trans-tecno’. O queer do ‘corpo’, em sua atual condição histórico-social, remodela a significação da categoria do Sujeito de Direito, incluindo-se aí a categoria do Sujeito Pós-humano de Direito, que é definido como sendo todo ‘corpo humano’ que foi alvo de modificação corporal por força da intervenção da tecno-ciência. O que se procurou demonstrar e defender neste artigo aponta para a ideia de que a dignidade é um atributo da pessoa humana, não importando a sua qualidade física ou biológica, modificada ou não, ou ainda, a aparência estética do corpo físico. A pessoa humana é merecedora da condição de Sujeito de Direito, mesmo que o ‘corpo físico’ se hibridize à ‘máquina’, ou ainda, que as modificações impostas pela nanotecnologia, pela tecnociência e pela biomedicina venham a acarretar significativas transmutações físico-corpóreas em indivíduos. Esse mesmo status não é atribuído ao ‘robô’, às ‘invenções robotizadas’ e ‘mecanizadas’, que devem ser entendidas como Objetos do Direito, alvo de simples status de propriedade.
Na fronteira de um novo tempo, onde os avanços são medidos em alta velocidade, os riscos são imediatamente maiores. Por isso, os avanços da nanotecnologia, da tecnologia da informação, da realidade virtual devem ser alvo de politização,93 [99] de redemocratização94 [100] e de discussão legal-jurídica, considerando seus efeitos e potencialidades de danos a direitos. Neste ponto, a observação crítico-reflexiva destas mudanças, a partir de um olhar teórico realista - fornecido pela Teoria do Humanismo Realista -95 [101] tornou possível uma posição vantajosa de observação, na medida em que esta restabelece o sentido da centralidade da dignidade da pessoa humana como lugar de reflexão. Em verdade, no exercício de não se essencializar a pessoa humana, evitou-se o recurso ao antropocentrismo moderno - que isola o ‘corpo-homem’ da ‘natureza-objetificada’ -, e, permitiu-se enxergar nos dilemas humanos tudo aquilo que concerne aos desafios naturais, humanos, sociais e técnicos que venham a afetar a dimensão do humano, e suas derivações. Daí, a importância dos avanços da Ciência do Direito, conjuntamente com a renovação de fronteiras de compreensão da Teoria do Direito, em face destes novos e imensos desafios da ‘era digital’.