Estruturas sociais da esfera pública para Habermas em “Mudança estrutural da esfera pública”


Porjulianafachin- Postado em 04 setembro 2012

 

HABERMAS, Jürgen. MUDANÇA ESTRUTURAL DA ESFERA PÚBLICA – INVESTIGAÇÕES QUANTO A UMA CATEGORIA DA SOCIEDADE BURGUESA. Tradução, Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.

 

Estruturas sociais da esfera pública para Habermas em “Mudança estrutural da esfera pública”

 

1. Delimitação do objeto desta resenha

 

Esta breve resenha tem como objeto o capítulo II (“Estruturas sociais da esfera pública”) da obra “Mudança Estrutural da Esfera Pública” de Jürgen Habermas. Será feita uma breve descrição da estrutura da obra como um todo, mas apenas para não descontextualizar o capítulo escolhido e não prejudicar sua compreensão. Sobre este será exposto um breve resumo ao tempo em que se procurará realçar alguns de seus aspectos mais relevantes na tentativa de levantar alguns modestos apontamentos.

 

2. Publicação, objeto e método da obra

 

“Mudança estrutural da esfera pública” foi o trabalho que Jürgen Habermas apresentou à Faculdade de Filosofia de Marburg como tese de livre-docência em 1961, com exceção dos §§ 13 e 14. Acrescido destes, a obra foi publicada no mesmo ano. A este tempo, Habermas tinha ainda recente sua experiência como assistente de Horkheimer e Adorno no Institut für Sozialforschung (Instituto para Pesquisa Social) da Universität Frankfurt-am-Main e estava atuando como pesquisador do DFG (Deutsche Forschungsgemeinschaft).

Nesta obra, o jovem intelectual delimita o objeto de sua pesquisa no tipo “esfera pública burguesa”, deixando bem claro que a investigação se restringe à estrutura e função deste modelo liberal (considerando-o em sua origem e evolução), valendo-se de uma combinação dos procedimentos não só da Sociologia, como da Economia, do Direito e da Ciência Política e da História. Sua metodologia concebe o objeto como uma categoria típica de época para depois generalizá-lo num ideal-tipo, como o próprio autor faz questão de deixar bem claro. Assim, posiciona seu método entre as tendências sociológicas formalista e historicista[1]:

“Este meu procedimento sociológico diferencia-se de uma historiografia rigorosa por uma aparente liberdade maior de critério em relação ao material histórico; por sua vez, presta, no entanto, sua homenagem aos critérios proporcionalmente rigorosos de uma análise estrutural da totalidade das relações sociais”.[2]

 

3. Estrutura da obra em linhas gerais

 

“Mudança Estrutural da Esfera Pública” (“Strukturwandel der öffentlichkeit” no original alemão) – investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa – é prefaciada pelo próprio Habermas, estando dividida em 25 (vinte e cinco) seções, organizadas em 7 (sete) capítulos.

O autor introduz o assunto chamando a atenção do leitor para a pluralidade de significados que os termos “público” e “esfera pública” têm adquirido ao longo da história; posteriormente, empreende uma excursão histórica para refazer os percursos que levaram à gênese da “esfera pública burguesa” a ser analisado no trabalho. Primeiramente, o autor fala da separação clara que havia na Grécia antiga entre as esferas pública e privada. Esta era ambientada no oikos, onde os membros da família estavam todos submetidos ao domínio do patriarca, o qual empreendia uma administração visando suprir as necessidades infinitas do lar para então assumir a sua autonomia na outra esfera. Ambientada na polis, local de tomada das decisões políticas (no sentido estrito), a esfera pública era aquela em que os cidadãos não apareciam como os proprietários, mas como homens livres, que, discursando com os pares, deliberavam não mais levando em conta somente as necessidades, como acontecia na esfera privada. Tanto que a propriedade era condição para que o indivíduo assumisse a posição de cidadão e exercesse sua autonomia na polis.

Daí o autor nos mostra como tais categorias já não mais se fazem presentes no medievo, quando as relações de dominação se estabelecem pelos direitos individuais de jurisdictio, sem compreender a dicotomia de dominium privado e imperium público. Apenas tem-se em common e particular, do direito germânico, uma relação compublicus e privatus. Porém, na sociedade feudal, o que era da comunidade e o que era particularizado se invertem e correspondem respectivamente ao que era privado (no sentido de destituído ou despojado) e ao que era público (de direito do senhor). Inversão esta que se deve à inexistência de uma contraposição entre esferas pública e privada, mesmo motivo pelo qual é importante entender essa publicidade em termos de uma representatividade pública, a qual o próprio Habermas assim define:

“Esta representatividade pública não se constitui num setor social, numa esfera daquilo que é público; ela é, pelo contrário, caso se possa ampliar o sentido do termo, algo como uma marca de status.”[3]

Na representação pública, pois, “seu detentor [...] apresenta-se como a corporificação de um poder superior”[4]; logo, não é delegado de qualquer autoridade (como quer a doutrina constitucional, notadamente em Sieyès), menos ainda do povo, afinal é mesmo perante este que se apresenta como sendo o próprio poder soberano. Representação aqui também não significa uma “figuração”, como na Roma Antiga. É uma encenação teatral, não literalmente, mas como que uma “presentificação”[5]. Tanto que para caracterizá-la há todo um código de comportamento, o qual primeiramente serve para personificar o cavaleiresco e depois o “cortegiano”.

A partir deste conceito de representatividade pública, Habermas descreve o surgimento da esfera pública burguesa. Ele apresenta as estruturas medievais, sustentáculos desta representatividade, sendo corroídas pelo surgimento do capitalismo mercantil. A burguesia vai construindo nas cidades e no comércio um mundo próprio que está sob o imperium do Estado, mas não sob odominium do soberano. À esfera do que é estatal vai se contrapondo uma esfera do que é privado, excluído do poder. A representatividade pública tem seu âmbito de atuação reduzido e vai paulatinamente desaparecendo.

Tem-se, então, uma sociedade civil que se forma em oposição ao aparelho burocrático. Quando isto se acentua, pode-se verificar um setor privado em oposição à esfera do poder público. Nesta se pode observar todo o aparato administrativo e a corte – a sociedade aristocrática. Já o setor privado é o espaço da troca de mercadorias e de trabalho social efetuada pela sociedade civil, a qual se estrutura na pequena família. É destas duas instituições da sociedade civil que apareceria o elemento de intermediação setor privado e esfera do poder público.

A intelectualidade burguesa cultivada na intimidade do lar se transforma em produto e estabelece-se um mercado de bens culturais. Também se desenvolve uma crítica de tais produtos em clubes, cafés,salons, etc. A imprensa, que até então se desenvolvera como meio para atender às necessidades de comunicação do comércio, agora servia para conferir publicidade à crítica cultural, voltada principalmente à literatura. Esta crítica literária é que se institucionaliza e se solidifica de tal modo que a sociedade civil dela fará uso político para pressionar e influenciar a máquina pública, detentora do poder de decisão, no qual não tinha, em princípio, maior participação. Este espaço para uma crítica política institucionalizada por parte da sociedade civil com a função de pressionar o Estado é o que Habermas chama de “esfera pública burguesa”, categoria da sociedade liberal que visa interferir nas decisões sobre os fins a que as políticas públicas devem visar.

É a partir deste ponto que o autor fala de idéia e ideologia na esfera pública burguesa, traçando a publicidade como mediadora entre política e moral: “a opinião pública quer racionalizar a política em nome da moral”.[6] Seria este o norte da dialética da esfera pública, que, na discussão racional pode construir uma opinião pública que representa uma posição capaz de convencer os partícipes da esfera pública e, em certa medida, formular o que se poderia chamar “consenso”.

Em seguida, passa-se a expor sobre a mudança na estrutura social da esfera pública, com interpenetração da esfera pública no setor privado e polarização da esfera social e da esfera íntima, caracterizando o desaparecimento da esfera pública burguesa como havia se manifestado originalmente. É claro que a isso correspondeu também uma mudança na sua função política, que agora passa a ser muito mais de manipulação da massa por parte de forças sociais do que de pressão sobre aparelho administrativo. Por fim, Habermas tenta uma proposta para um conceito de opinião pública diante dos diversos problemas com que se pode deparar na realidade atual, mesmo depois das análises empreendidas na obra.

 

4. Estruturas sociais da esfera pública

 

A esfera pública burguesa é apresentada pelo autor como a reunião de pessoas privadas num público que discute com o Estado sobre as decisões que virão a influenciar o mercado de troca de produtos e de trabalho social. O espaço é reivindicado pela esfera pública junto à mesma autoridade regulamentadora contra quem se irá argumentar na tentativa de influenciá-la nas decisões. Ela surge da pequena família e da sociedade civil como setor de trocas. A primeira é onde se dá o cultivo da intelectualidade burguesa na privacidade e a segunda é onde se realiza o luta contra as necessidade. Os bens culturais de uma, adentram na outra como mais um produto para os mercados. É assim que se forma a esfera pública, pois com a comercialização dos bens culturais eles se difundem e, como conseqüência, a discussão crítica a seu respeito se forma na imprensa, que já existia como meio de comunicação entre os mercadores, sendo regulamentada pelo Estado de acordo com as conveniências do governante.

Ou seja, a esfera pública surge como um espaço para a crítica cultural, principalmente literária. Assim, era lugar de exposição do íntimo ao público, submetendo a individualidade à crítica. Mas antes de expor-se, o indivíduo pertence a uma família, que se vê como a prática do conceito de “humano”, estruturado com base no livre arbítrio, na comunhão de afeto (amor) e na formação. Como espaço para exposição de uma intimidade com assim fundamentada, a esfera pública poderia parecer o melhor ambiente para discussão de qualquer tipo. Contudo, o próprio conceito de “humano” não se apresentava na realidade daquela forma: o livre arbítrio não existia, porque todos os membros estavam sob o domínio do pai ou marido; a comunhão de afeto também não, porque o casamento se realizavam em função do patrimônio e da posição dos noivos; e a formação não respeitava a personalidade do indivíduo nem era feita por si mesma, mas apenas em função do trabalho socialmente necessário. Perceba-se como as necessidades imperam mesmo na intimidade da pequena família.

Com a refuncionalização da esfera pública literária, que tem suas instituições e plataformas aproveitadas para exercerem agora uma função política, a esfera pública preserva seu caráter de estrutura da esfera social, que emergia, nos termos em que fala Hannah Arendt[7]. Como o próprio Habermas afirma:

“Com o surgimento de uma esfera do social, cuja regulamentação a opinião pública disputa com o poder público, o tema da esfera pública moderna, em comparação com a antiga, deslocou-se das tarefas propriamente políticas de uma comunidade de cidadãos agindo em conjunto (jurisdição no plano interno, auto-afirmação perante o plano externo) para as tarefas mais propriamente civis de uma sociedade que debate publicamente (para garantir a troca de mercadorias)”.

Assim, a esfera pública burguesa se mostra uma categoria da sociedade moderna já engolida pela esfera social, que invade também o setor privado – não só a sociedade civil, como até mesmo parcela da intimidade. Tal esfera social dilui as estruturas sociais da família e de outros grupos e engloba a todos os indivíduos como em uma grande família, cujos membros estão todos submetidos a uma única vontade e interesse. É a “ficção comunística” de que fala Myrdal, da qual partem todos os clássicos da economia. É mesmo uma premissa necessária ao pensamento moderno que tende à eliminação do Estado em seu sentido verdadeiro para substituí-lo por um mero ente administrador, que deve tomar as melhores decisões em nome do “interesse comum”, preocupando-se, acima de tudo, com o aspecto econômico. Isso bem se vê com o surgimento da “Economia Política”.

A esfera pública burguesa parece, pois, mais um meio para uniformização de opiniões, manifestada na formulação de uma “opinião pública” do que espaço para discurso verdadeiramente livre e espaço de exposição da intimidade. A mudança estrutural e os distúrbios verificados na “publicidade” atual nada mais são do que o agravamento desta circunstância moderna que é a emersão e expansão da esfera social. A manipulação ideológica dos mídias e sua apropriação por grupos sociais com finalidades político-econômicas nada mais são que os efeitos da eliminação progressiva de uma verdadeira esfera pública, âmbito de ação e discurso, e de uma verdadeira esfera privada, que resguarde o íntimo de cada qual para sua exposição adequada ao público.

 

Saul Emmanuel de Melo Ferreira Pinheiro Alves.

 

BIBLIOGRAFIA

 

 

HABERMAS, Jürgen. MUDANÇA ESTRUTURAL DA ESFERA PÚBLICA – INVESTIGAÇÕES QUANTO A UMA CATEGORIA DA SOCIEDADE BURGUESA. Tradução, Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.

 

ARENDT, Hannah. A CONDIÇÃO HUMANA; tradução de Roberto Raposo; posfácio de Celso Lafer. Forense Universitário, Rio de Janeiro, 1995.

 

MONDAINI, Marco. “JÜRGEN HABERMAS E A TEORIA CRÍTICA”, artigo disponível no endereçohttp://www.historia.uff.br/nec/textos/text25.PDF , acessível a 5.07.2007.

 


[1] Nesta obra, portanto, Habermas não parte de um “horizonte teórico-metodológico marxista” como afirma Marco Mondaini em “JÜRGEN HABERMAS E A TEORIA CRÍTICA”, em artigo disponível no endereço http://www.historia.uff.br/nec/textos/text25.PDF , acessível a 5.07.2007.

[2] HABERMAS, Jürgen. MUDANÇA ESTRUTURAL DA ESFERA PÚBLICA – INVESTIGAÇÕES QUANTO A UMA CATEGORIA DA SOCIEDADE BURGUESA. Tradução, Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984, p. 10.

[3] HABERMAS, Jürgen. MUDANÇA ESTRUTURAL DA ESFERA PÚBLICA – INVESTIGAÇÕES QUANTO A UMA CATEGORIA DA SOCIEDADE BURGUESA. Tradução, Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984, p. 20.

[4] Ibidem.

[5] GADAMER, H. G. WAHRHEIT UND METHODE. Tuebingen, 1960, p. 134, nota 2. In HABERMAS, Jürgen. MUDANÇA ESTRUTURAL DA ESFERA PÚBLICA – INVESTIGAÇÕES QUANTO A UMA CATEGORIA DA SOCIEDADE BURGUESA. Tradução, Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984, 291, nota 10.

[6] HABERMAS, Jürgen. MUDANÇA ESTRUTURAL DA ESFERA PÚBLICA – INVESTIGAÇÕES QUANTO A UMA CATEGORIA DA SOCIEDADE BURGUESA. Tradução, Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984, p. 126.

[7] ARENDT, Hannah. A CONDIÇÃO HUMANA; tradução de Roberto Raposo; posfácio de Celso Lafer. Forense Universitário, Rio de Janeiro, 1995.

 

FONTE: http://direitopiaui.blogspot.com.br/2007/09/estruturas-sociais-da-esfera-pblica.html