Apontamentos sobre Existência, Validade e Eficácia da Norma Jurídica Negocial


PorJeison- Postado em 12 novembro 2012

Autores: 
ALBUQUERQUE, Bruno Caraciolo Ferreira.

 

Resumo: O presente artigo trata da norma jurídica negocial, tecendo apontamentos sobre um estudo de Teoria Geral do Direito aplicado ao Direito Comercial. A introdução justifica a empreitada pela insubsistência de pesquisas zetéticas no âmbito do Direito Comercial brasileiro. Iniciando o desenvolvimento são apresentadas as noções básicas de sistema jurídico, ordenamento jurídico e norma jurídica, neste último ponto esclarecendo o conceito e a classificação da norma jurídica negocial. Em seguida o tema central, existência, validade e eficácia da norma jurídica, é abordado com apontamentos relacionados às especificidades da norma jurídica negocial.

Palavras-chave: Norma Jurídica – Direito Comercial – Existência – Validade – Eficácia.

Abstract: This article deals with the transaction rule of law placing notes on a study of General Theory of Law applied to the Commercial Law. The introduction justifies the study on the lack of zetetic researches under the Brazilian Commercial Law. The development initially presents the basic notions of legal system, legal order and rule of law, this last point by clarifying the concept and classification of the transaction rule of law. Then the central theme, existence, validity and efficacy of the rule of law is discussed with notes regarding the specifics of the transaction rule of law.

Keywords: Rule of Law – Commercial Law - Existence – Validity – Efficacy.

Sumário: 1. Introdução. 2. Sistema, Ordenamento e Norma Jurídica. 2.1. Sistema Jurídico. 2.2. Ordenamento Jurídico. 2.3. Norma Jurídica. 3. Existência, Validade e Eficácia da Norma Jurídica Negocial. 3.1 Existência e Nulidade. 3.2 Validade e Autonomia da Vontade. 3.3. Eficácia e Alteração da Norma Jurídica Negocial. 4. Considerações finais. 5. Bibliografia.


1. Introdução

A maior parte da doutrina comercialista nacional é focada basicamente em construções dogmáticas, tratando quase que exclusivamente da interpretação que deve ser feita das normas jurídicas vigentes, sem um maior aprofundamento em investigações de cunho zetético.

Contudo, no cenário atual uma massiva produção científica de outras áreas do Direito que partem preponderantemente de disciplinas mais recentemente consolidadas, como o Direito do Consumidor e o Direito Ambiental, e ainda de novas formulações de áreas tradicionais, como o Direito Penal, o Direito Tributário, o Direito do Trabalho e o Direito Administrativo, apresenta diversas construções que afetam diretamente a empresa, objeto central do Direito Comercial.

Essa massiva produção acadêmica de que se fala invade questões tradicionalmente tratadas apenas pelo Direito Comercial e partindo de pressupostos e enfoques completamente diferentes apresenta conclusões muitas vezes diametralmente opostas às postuladas pelo Direito Comercial. Um bom exemplo desta situação, mas não o único, é a questão da limitação da responsabilidade dos sócios.

Sobre a matéria uma volumosa doutrina comercialista trata apenas e tão somente da questão dogmática atinente aos dispositivos da legislação tipicamente societária, defendendo que os sócios respondem apenas pelo valor investido na sociedade, excetuadas as hipóteses de confusão patrimonial e desvio de finalidade, que como exceções devem ser interpretadas da forma mais restritiva possível.

De outro lado há uma igualmente vasta doutrina de outras áreas do conhecimento jurídico defendendo outras tantas hipóteses de responsabilidade dos sócios, tendendo a tornar a regra de Direito Comercial uma verdadeira exceção. Bons exemplos da situação são ainda as discussões em torno da responsabilização objetiva, da inversão do ônus probatório, da solidariedade, entre outros.

Essa doutrina não comercialista que contesta os preceitos de Direito Comercial, todavia, apresenta-se amplamente fundamentada em valores diferentes daqueles dogmaticamente aceitos pelo Direito Comercial, os quais sequer são reafirmados pela maioria da doutrina comercialista, enquanto na outra ponta existe uma veemente e aprofundada afirmação de valores diversos, além de fortes críticas aos valores contestados.

Com efeito, o Direito Comercial brasileiro encontra-se em uma fase de reconstrução, a qual deve dar-se em um plano de investigação diverso, devendo concentrar-se na zetética para reafirmar e desenvolver seus pressupostos.

Nesse contexto surgem no Brasil algumas manifestações já adotadas pelos comercialistas de outros países, cujo maior exemplo na atualidade é a análise econômica do direito, um instrumental da pesquisa científica passível de utilização tanto positiva – dever ser - quanto normativa – ser -, que busca uma visão de eficiência não puramente capitalista, mas sim voltada à realidade da insuficiência de recursos necessários ao atendimento das demandas da sociedade, sejam pecuniárias ou não.

Todavia, essa é apenas uma das diversas frentes zetéticas nas quais o Direito Comercial brasileiro precisa evoluir em seu processo de reconstrução, sendo necessário que a doutrina da área desenvolva-se no sentido de aprofundar cada vez mais os fundamentos de sua ciência.

O momento, por conseguinte, é de pensar os pressupostos em que são fundamentados os conhecimentos das diversas áreas e desta forma buscar convergências possíveis, restando mais do que evidente a impossibilidade de uma convergência fundada unicamente em debates no plano dogmático.

Ademais, na impossibilidade de convergência uma construção puramente dogmática nunca poderá prevalecer sobre uma construção zetética que afirma valores sociais modernos, cabendo, neste caso, ao Direito Comercial inserir-se em um debate de igual plano, assim tornando viável uma contraposição paritária.

Nesse contexto, entre a zetética empírica e a analítica, uma vasta gama de formas investigativas não satisfatoriamente exploradas pela doutrina comercialista brasileira aguarda que juristas as tragam à luz, sendo esta a única forma de rebater posicionamentos contrários advindos das demais áreas do conhecimento jurídico.

O presente trabalho, voltado a um estudo tipicamente de Teoria Geral do Direito, insere-se nessa situação, apesar de não combativo, justificando-se a empreitada pela quase inexistência de uma doutrina comercialista que trate especificamente da norma jurídica negocial, de sua existência validade e eficácia, do sistema e do ordenamento jurídico sob a ótica empresarial.

Sem buscar esgotar o tema, mas arduamente introduzi-lo nos debates acadêmicos, o presente artigo centra esforços na compatibilização dos conceitos de Teoria Geral do Direito ao estudo do Direito Comercial, tentando construir conceitos específicos a partir dos gerais.

2. Sistema, Ordenamento e Norma Jurídica

2.1. Sistema Jurídico

Muito se confundem as noções de sistema e ordenamento jurídico, sendo as expressões usadas não dificilmente como sinônimas em trabalhos acadêmicos, fazendo-se necessário esclarecer a diferença entre os conceitos.

A dificuldade em estabelecer a diferença entre sistema e ordenamento jurídico deve-se ao fato de em linguagem vulgar sistema e ordenamento terem significados muito semelhantes, ambos importando em algum tipo de organização, combinação, reunião, lembrando a palavra sistema algo ordenado e a palavra ordenamento algo sistematizado.

Esta noção vulgar não é totalmente afastada na Ciência do Direito, posto que existe uma interligação indissociável entre o ordenamento e o sistema jurídico, sendo o ordenamento verdadeiro fruto do sistema jurídico e o sistema integrado ao ordenamento jurídico.

Não existe uma hierarquia entre sistema e ordenamento jurídico, mas uma coexistência, ambos frutos de uma cultura humana delimitada no tempo e no espaço. Sequer é possível entender se os ordenamentos modificam-se de acordo com a evolução dos respectivos sistemas ou se ocorre o inverso.

O sistema jurídico seria a forma das formas, ou mais precisamente a forma pela qual as normas jurídicas, das mais gerais às mais específicas, são estabelecidas e integradas dentro de um determinado ordenamento jurídico, agregando-lhe unicidade, sendo os sistemas jurídicos, no ocidente, classicamente divididos em dois grandes grupos: (i) romano-germânico; e (ii) de common law. Essa classificação, como se vê, é a mais simplória possível, havendo muitas outras. Há também quem, ao lado dos já citados, apresenta ainda mais dois grandes grupos de sistemas jurídicos: (iii) socialistas; e (iv) filosóficos ou religiosos, enquanto outros chegam a apresentar sete diferentes grupos: (i) francês, (ii) alemão, (iii) escandinavo, (iv) inglês, (v) russo, (vi) islâmico e (vii) hindu.

Cada um desses grupos doutrinariamente concebidos abarca diversos ordenamentos jurídicos, mas há na verdade um sistema específico em cada ordenamento, servindo a classificação apenas como uma referência.

Assim, por exemplo, o sistema de common law é conhecido pela grande importância que os costumes ganham dentro do ordenamento jurídico em detrimento dos diplomas legais, que são mais raros e por vezes desconsiderados diante de um costume em contrário.

Por outro lado, em um sistema dito romano-germânico, os costumes contra-legem são claramente ilícitos, não podendo prevalecer em face de diplomas legais, que se apresentam aos montes, regulando praticamente tudo que se possa imaginar e deixando espaço quase que marginal para preenchimento pelo direito consuetudinário.

Todavia, dentre os ordenamentos tipicamente citados como submetidos ao sistema de common law, o inglês e o americano, são facilmente percebidas diversas diferenças que nos levam a conclusão de que não se trata de um sistema único, mas de dois sistemas jurídicos semelhantes, que obviamente se tornam tanto mais semelhantes quanto mais distinto for o sistema com os quais sejam comparados. O Direito Comercial americano moderno, por exemplo, apresenta diversos diplomas legais tratando de contratos, enquanto estes são mais raros no direito inglês.

Ainda assim, um sistema de common law seria mais apegado aos precedentes jurisprudenciais do que um sistema romano-germânico, mas um precedente não representa o mesmo grau de imposição no ordenamento jurídico brasileiro e no ordenamento jurídico alemão.

Com efeito, deixando de lado essa classificação de aplicação mais limitada, a melhor doutrina tem se utilizado de enfoque diverso segundo o qual os sistemas jurídicos seriam abertos ou fechados.

Nesta perspectiva não existe uma classificação dividindo os sistemas em abertos e fechados, mas na verdade um debate em que uma corrente pretende conceituar os sistemas jurídicos de uma forma geral como sistemas abertos e outra corrente que pretende o contrário, definindo os sistemas jurídicos como algo sempre fechado.

A conceituação radical do sistema jurídico como sendo um sistema fechado consiste na afirmação de que o ordenamento é composto por normas objetivas, estáticas e claras, normas abstratas que podem facilmente conectar-se aos fatos ditando-lhes os efeitos jurídicos, que poderiam ser interpretados logicamente apenas de uma única forma, não havendo escolha a ser feita pelo intérprete.

Essa idéia de sistema fechado seria decorrente do positivismo moderno, claramente identificável no pensamento das codificações francesas do século XIX e defendido pela tradição kantiana segundo a qual, conforme Ivo T. Gico Jr. (2010: p. 4), o direito “seria um sistema lógico fechado e coerente de regras da qual a decisão jurídica correta sempre poderia ser inferida lógica e autonomamente do direito posto”. 

De outro lado, uma outra doutrina apresenta o sistema de direito como um sistema aberto, no qual a dinâmica seria imperiosa diante dos diversos valores que compõem o ordenamento, apresentando-se ao intérprete das normas diversas escolhas e cabendo-lhe adotar aquela que mais se coaduna com a evolução cultural do ordenamento.

Ressalta-se, por oportuno, que esta posição defende uma constante mutação do ordenamento jurídico em decorrência da dinâmica social, não sendo necessária nenhuma modificação legislativa para que se tenha uma modificação do direito aplicável, cabendo ao intérprete sempre uma escolha, a qual deve ser guiada pelos valores verificados no seio da comunidade cultural que se submete ao ordenamento em análise.

Em síntese, para os defensores do direito como um sistema fechado a sociedade deve submeter-se aos ditames de um ordenamento estático, do qual pode ser inferida uma única solução diante do caso concreto. Nesta corrente, caso a sociedade não se contente com o direito posto, deverá então modificá-lo de acordo com os procedimentos normados.

Os defensores do direito como um sistema aberto afirmam algo inverso, propriamente no sentido de que o ordenamento é que deve submeter-se à sociedade, sendo o direito aplicável fruto de uma escolha, a qual deve pautar-se sempre nos valores vigentes. Desta forma, a solução aplicável ao caso deveria ser escolhida pelo jurista em conformidade com os valores do tempo da decisão, ainda que isso importe em uma modificação do direito aplicável a um caso presente em relação a um caso passado igual sem que tenha ocorrido qualquer mudança legislativa entre um e outro.

No coração desta discussão entre ser o sistema jurídico algo aberto ou fechado a escolhas estão a segurança jurídica e a justiça, no seu sentido ético, o mais importante problema da Ciência do Direito.

Ou seja, se admitirmos o sistema jurídico como algo simplesmente fechado estaremos, em tese, elevando a segurança jurídica ao seu maior grau, ignorando completamente a justiça para a solução dos conflitos, enquanto que em um sistema puramente aberto, igualmente em tese, a justiça se apresentaria em sua maior potência, deixando de lado a segurança jurídica.

Adotada qualquer das posições, contudo, retornamos ao ponto de partida no sentido de que sistema e ordenamento são totalmente interligados. Na concepção de sistema fechado estaria implícita a mensagem de que o ordenamento deve apresentar o sistema em si mesmo, apontando o único direito aplicável e as únicas possibilidades de modificação do mesmo para o futuro. De outro lado, na concepção de sistema aberto o ordenamento não apresenta um único direito aplicável, mas sim escolhas, entre as quais deve ser adotada aquela mais adequada à dinâmica de princípios e valores ínsita ao ordenamento.

O fato é que nenhuma das visões pode ser racionalmente admitida como integralmente correta sem que gere extremas injustiças ou extrema insegurança jurídica, havendo atualmente diversas tentativas frustradas de reconhecer o direito como um sistema aberto com segurança jurídica que se vinculam a parâmetros supostamente científicos de investigação dos valores aplicáveis, entre as quais as doutrinas conhecidas como: (i) a escola da livre investigação científica, na França; (ii) o realismo jurídico, na Escandinávia; (iii) o jusrealismo, nos Estados Unidos; (iv) o neoconstitucionalismo, na maior parte da Europa continental; (v) a tópica jurídica; entre outras conforme Ivo T. Gico Jr. (2010, p. 7).

O fato é que estas teorias nada mais são do que tentativas de relativização de um sistema totalmente aberto, pois que por mais aberto que seja este sistema ele deverá apresentar um mecanismo de fechamento, qualquer que seja, para garantir segurança jurídica, enquanto que uma concepção de sistema fechado, por mais radical que seja, deve também admitir alguma forma de abertura, dando lugar à justiça em casos extremos.

Não havendo ainda um método a contento e não se dedicando este curto trabalho ao papel de desvendar esta que provavelmente é a problemática maior do Direito, basta que se tenha entendido de forma plena o significado da expressão sistema jurídico.

O sistema jurídico, adotando-se a classificação primeiramente apontada ou qualquer das posições no debate apresentado, é uma abstração que garante a unidade do ordenamento jurídico, garantindo uma decidibilidade minimamente racional, segura e justa.

2.2. Ordenamento Jurídico

Como já dito anteriormente, o sistema e o ordenamento jurídico possuem uma interligação indissociável, o que se origina da coexistência de normas de comportamento e de normas de estrutura ou de competência descrita por Bobbio (1997: p.33). O ordenamento jurídico é, assim, um conjunto uno de normas jurídicas tidas como válidas dentro de um sistema específico, delimitado no tempo e no espaço.

As normas de comportamento são as mais comuns, proibindo, permitindo ou obrigando determinadas condutas, enquanto as normas de competência atribuem a determinados centros de poder a possibilidade de produzir novas normas, tanto de comportamento, quanto de competência.

Neste sentido a Constituição Federal da República Federativa do Brasil atribui ao poder legislativo federal, por exemplo, a competência para expedir normas sobre Direito Comercial, que por sua vez expede normas de competência para que o Departamento Nacional de Registro de Comércio (DNRC) regule o registro público de empresas, bem como normas de comportamento nas quais o DNRC deve pautar sua atividade.

Inserida nesta lógica está a existência de uma hierarquia entre as normas, uma hierarquia própria do ordenamento jurídico, havendo ao topo uma norma hipotética fundamental, conforme a doutrina quase universalmente aceita de Kelsen (2011: p. 224).

Ao passo que a norma hipotética fundamental é uma norma predominantemente, senão exclusivamente, de estrutura, a mesma estabelece de forma pressuposta uma competência mínima mediante a qual o direito posto de maior hierarquia é criado, inclusive com novas normas de estrutura que garantem a introdução de novas normas de hierarquia inferior, tanto de conduta como de competência, e assim por diante.

No Brasil de hoje, como na maioria dos países civilizados da atualidade, a norma hipotética fundamental outorga poderes a uma assembléia constituinte que, criando uma Constituição Federal, regula comportamentos e diversas estruturas, outorgando poderes para que diversos entes criem novas normas de conduta e estrutura, assim como declara recepcionadas as normas jurídicas produzidas anteriormente à promulgação da Constituição Federal que com ela não conflitem.

A lógica desta hierarquia entre as normas jurídicas está centrada na idéia de que as normas estabelecidas por uma estrutura mais próxima à norma hipotética fundamental não podem ser contrariadas por uma norma jurídica criada através de uma competência mais distante da norma hipotética fundamental, a qual, assim verificada, deve ser tida como inválida.

Como se nota, as normas ditas de estrutura, ou competência, estabelecem a forma pela qual as normas inferiores devem ser criadas, sendo, portanto, reguladoras das fontes do direito, normas que regulam as condutas das quais se originam novas normas inferiores.

Por isso mesmo muitos doutrinadores negam a existência de normas que não apenas de conduta, pois que as normas ditas de estrutura ditam verdadeiras condutas através das quais novas normas são criadas, o que leva o próprio Bobbio (1997: p. 47) a dividir as normas de competência entre: (i) normas que mandam ordenar; (ii) normas que proíbem ordenar; (iii) normas que permitem ordenar; (iv) normas que mandam proibir; (v) normas que proíbem proibir; (vi) normas que permitem proibir; (vii) normas que mandam permitir; (viii) normas que proíbem permitir; e (ix) normas que permitem permitir.

Com esta idéia, em um ordenamento jurídico como o brasileiro atual, na concepção de um sistema fechado se poderia afirmar que o ordenamento apresenta todas as formas de criação de novas normas jurídicas, das mais genéricas e hierarquicamente superiores às mais específicas e hierarquicamente inferiores, cabendo a todos os que possuem competência para gerar normas jurídicas, sejam abstratas ou individualizadas, apenas observar o que lhes é imposto pela norma de estrutura que lhes atribui competência e demais normas jurídicas superiores.

Todavia, esta equação inicialmente simples pode ganhar uma série de incógnitas ao passo que o ordenamento dificilmente apresenta uma única norma por plano hierárquico para regular determinada matéria, podendo haver normas jurídicas conflitantes de mesma hierarquia, assim como o ordenamento jurídico em muitos casos não deixa clara a hierarquia entre determinadas normas ou poderes normativos, atribuindo em alguns casos ao mesmo centro de poder normativo a função de estabelecer normas de diferentes hierarquias.

Complicando ainda mais esta visão hierarquizada do ordenamento jurídico encontram-se neste inseridos, além de normas, princípios, os quais, normatizados ou não, não sendo propriamente normas, não poderiam com estas ser equiparados para o fim de estabelecer uma hierarquia.

Além dos princípios, encontram-se no ordenamento jurídico as regras de direito, as quais, na lição de Maria Helena Diniz (2011: p. 384), possuem conteúdo meramente descritivo, não sendo por isto normas jurídicas, que se apresentam como imperativos, caracterizando-se as regras de direito como as proposições condicionais estabelecidas pela leitura que faz a Ciência do Direito das normas.

Mas há, vale ressaltar, posições mais céticas e aproximadas a um sistema fechado nas quais as regras de direito não fariam parte do ordenamento, assim como os princípios ou seriam normatizados, tornando-se normas jurídicas, ou também não se poderia entender como parte do ordenamento, o que tende a simplificar o ordenamento e a fazer crer o mesmo como algo fechado, no sentido já aqui explicado.

De toda forma, o ordenamento jurídico, como conjunto sistematicamente organizado, apresenta diversas possibilidades de conflitos normativos que sob pena de não se poder conceber o ordenamento como sistema devem ser resolvidos dentro do próprio ordenamento, advindo desta noção os conceitos de existência, validade e eficácia da norma jurídica adiante estudados.

2.3. Norma Jurídica

Como já exposto, as normas jurídicas, sejam de estrutura ou de conduta, são parte dos componentes do ordenamento jurídico que através de um caráter imperativo estabelecem o dever ser dos comportamentos intersubjetivos na comunidade que ao mesmo se submete.

A imperatividade ínsita ao conceito de norma jurídica diferencia-o do conceito da regra de direito, cujo conteúdo é, em contraposição, de caráter descritivo, as normas advindo dos poderes legitimados a tanto e as regras advindas da Ciência do Direito, que não sendo uma autoridade investida de poder na hierarquia social nunca poderá prescrever condutas, mas apenas descrever a forma pela qual se entendem as imperatividades jurídicas.

Ressalta-se que ao se falar do dever ser como algo próprio da norma jurídica se está a falar aqui de apenas um plano do dever ser, qual seja, um dever ser posto pelo ordenamento jurídico, um dever ser que assim ao mesmo tempo é, não se confundindo com o dever ser fundado puramente no conceito de justiça, o qual é meramente ideal e relativo, sendo sempre algo que deve ser, nunca podendo ser alcançado pelos centros de poder para que se confunda com o direito posto, passando a ser um dever ser absoluto no mundo do ser através de uma normatização.

Esse dever ser de justiça, portanto, é objeto apenas da descrição da Ciência do Direito e de outras ciências, mas provavelmente nunca será igual ao Direito posto, podendo ser conhecido apenas em caráter descritivo, nunca em caráter imperativo, como a norma jurídica que ao mesmo tempo em que deve ser (observada) é (direito posto), apesar da necessidade de legitimação impor às normas jurídicas uma constante busca pelo dever ser em sentido de justiça.

Da mesma forma, as normas jurídicas com seu caráter imperativo afastam-se das demais regras esclarecidas pelas tantas outras ciências, seja qual for a área do conhecimento humano, sendo todas estas regras de cunho meramente descritivo, algo do mundo do ser, em contraposição ao mundo do dever ser, que, no sentido já explorado, é próprio das normas jurídicas. Assim, por exemplo, as leis da física, da matemática, da química e da biologia nunca estarão em caráter imperativo a apontar como deve ser, mas apenas descrevendo, de modo não absoluto, o ser.

De outra sorte, existem ainda outras tantas normas em qualquer sociedade que possuem uma imperatividade, normas de comportamento que postulam o dever ser, como são as normas da moral, dos bons costumes, das religiões, da família, entre outras, das quais devemos distinguir as normas jurídicas para individualizá-las.

A característica essencial que distancia a norma jurídica das demais normas sociais imperativas é, na doutrina de Maria Helena Diniz (2011: p. 404), o autorizamento, ou seja, a autorização que a norma jurídica concede ao prejudicado por uma conduta ilícita para que, através das vias legalmente estabelecidas para tanto, proceda com a coação de outrem ao cumprimento da norma ou a reparação do mal sofrido.

Destaca-se, por oportuno, ser comum a descrição da norma jurídica como um imperativo dotado de coercibilidade ou coatividade, mas, como bem esclarece Godofredo Telles Júnior (1980: p. 263), coatividade e coercibilidade não são elementos da norma jurídica, que é, na verdade, autorizante da coação ou coerção.

Este autorizamento à coerção, portanto, distingue as normas jurídicas dos demais imperativos sociais, sendo as primeiras normas de garantia social e as demais normas de aperfeiçoamento social, mais uma vez conforme Maria Helena Diniz (2011: p. 405).

Às normas de garantia, normas jurídicas, cabe o papel de manter uma ordem mínima a partir da qual é possível a convivência pacífica necessária à sociedade, por isso mesmo sendo dotadas de autorizamento para cumprimento forçado, enquanto que às normas de aperfeiçoamento, por exigirem algo a mais do que o entendido como o minimamente necessário à vida em sociedade pelo poder constituído, cabe o papel de estabelecer o que se esperar a mais das pessoas, mesmo sem que haja uma autorização para coagi-las ao cumprimento.

Sendo assim, comporiam o ordenamento jurídico todas as regras sociais imperativo-autorizantes, no sentido já apontado, esclarecendo Franco Montoro (1999: p. 65) que quanto à hierarquia as normas jurídicas brasileiras classificam-se em: (i) normas constitucionais; (ii) leis complementares; (iii) leis ordinárias, leis delegadas, medidas provisórias, decretos legislativos e resoluções; (iv) decretos regulamentares; (v) normas internas (despachos, estatutos, regimentos etc.); e (vi) normas individuais (contratos, testamentos, sentenças, ect.).

Salienta-se, por necessário a este ponto, que, conforme a classificação acima, fazem parte da categoria norma jurídica inclusive as normas internas e as normas individuais, ou seja, normas que não se destinam ao público em geral, mas a um ou mais destinatários específicos, o que muitas vezes é refutado pela doutrina.

Assim, muitas normas próprias do Direito Comercial ganham relevo ao serem classificadas definitivamente como normas jurídicas, como em verdade não poderia ser diferente porque dotadas de imperatividade e autorizamento, além de advirem de centros de poder aos quais normas superiores de estrutura outorgam competência específica.

Neste conceito estariam, portanto, os contratos, as deliberações societárias, os estatutos e contratos de sociedades, os regulamentos de fundos de investimento e possivelmente muitas outras espécies normativas de Direito Comercial, posto que todas essas normas partem da outorga que a Lei concede aos particulares para disporem dos bens componentes de seus patrimônios em relações negociais, estabelecendo normas jurídicas específicas para regência dos direitos e obrigações dos envolvidos.

Importa esclarecer, ainda, que tais normas de natureza negocial podem ser tanto de conduta, como também de estrutura ou competência, o que se verifica primordialmente nos estatutos, contratos sociais e regulamentos, os quais estabelecem novos centros de poder diversos daqueles que os instituíram, atribuindo-lhes competência para dispor sobre novas condutas e, em alguns casos, novas estruturas, como ocorre, por exemplo, nos conselhos de administração criados por normas estatutárias que criam comitês técnicos, estabelecendo as respectivas normas de conduta.

Essa definição de atos negociais como produtores de normas jurídicas é inegável em diversas doutrinas de grande relevo, entre as quais a de Kelsen (2011: p. 284), ao tratar do negócio jurídico, a de Carnelutti (1999; p. 158), ao dissertar sobre a autonomia jurídica privada, a da própria Maria Helena Diniz (2011; p. 351), ao discorrer sobre “o poder negocial como força geradora de normas jurídicas particulares”, que cita, no mesmo sentido, Miguel Reale, Franco Montoro, Luiz Fernando Coelho, Fausto E. Vallado Berrõn e Santoro Passarelli, encontrando esta posição reforço ainda na doutrina de José Luiz Bulhões Pedreira (2009.: P.163), que tratando das espécies de normas cita em seu favor Enzo Roppo, Emílio Betti e Vicente Rao.

Estas normas jurídicas de origem negocial, que se enquadram ora entre as normas internas, ora entre as normas individuais, serãoobjeto de apontamentos em sucessivo em detrimento das demais normas jurídicas estudadas pelo Direito Comercial, posto que a doutrina geral aplica-se com mais facilidade às últimas.

3. Existência, Validade e Eficácia da Norma Jurídica Negocial

3.1 Existência e Nulidade

A típica doutrina de Teoria Geral do Direito hodiernamente parece descartar a hipótese de normas jurídicas inexistentes, tratando basicamente dos conceitos de invalidade e ineficácia. Isto porque a inexistência da norma jurídica em um âmbito hierárquico elevado é um problema quase sempre de facílima solução, comportando apenas casos absurdos, gritantes, que podem ser identificados até mesmo pelo conhecimento vulgar.

Este é o caso de normas emanadas por pessoas destituídas de qualquer poder normativo, imaginando-se, exemplificativamente, uma reunião de estudantes de medicina que insatisfeitos com a situação da saúde pública no país dá por aprovada uma “Lei” de Políticas Públicas de Saúde, inclusive instituindo um tributo para custeio das novas providências programaticamente dispostas nesta “Lei”.

Evidentemente ninguém levará tal “Lei” em consideração, nenhum hospital, público ou privado, a seguirá, ninguém se submeterá ao pagamento do tributo estabelecido, nenhum médico dará ouvido aos seus imperativos, provavelmente nem mesmo os demais estudantes de medicina sequer levarão em conta a suposta norma, não havendo a menor chance dos bem intencionados estudantes exigirem de forma coercitiva o cumprimento do imperativo aprovado na reunião.

Isto porque a falta do autorizamento, componente da norma jurídica como já se tratou, é gritante, nada havendo que justifique um mínimo de dúvida dos demais membros da sociedade quanto à inexistência deste imperativo enquanto norma jurídica.

De outro lado, outras formas de vício presentes em um ato tendente à produção de normas jurídicas, seja formal ou material, não obstam a sua existência, fazendo surgir um problema de validade.

É o caso de uma Lei Ordinária Federal aprovada pelo Congresso Nacional que disponha sobre matéria reservada pela Constituição Federal à Lei Complementar, ou no caso de uma Lei aprovada pelo legislativo de um Estado avançar sobre a competência estabelecida pela Constituição Federal em favor exclusivamente do legislativo federal.

Essas normas serão tidas sempre como inválidas e não como inexistentes, apesar do entendimento pacífico de que uma Lei inconstitucional apresenta-se viciada desde a sua criação, não produzindo efeito algum, mesmo antes de sua declaração de inconstitucionalidade, que em regra terá efeitos ex tunc.

No Direito Comercial brasileiro podemos citar à exemplo o problema atual estabelecido com a instrução normativa nº 117 do DNRC, a qual regulamentou os aspectos de registro mercantil da Lei 12.441, que criou um novo tipo de pessoa jurídico denominada Empresa Individual de Responsabilidade Limitada ou EIRELI. Esta instrução normativa, como se sabe, limitou a titularidade deste tipo de pessoa jurídica às pessoas físicas, impossibilitando que as pessoas jurídicas criem uma EIRELI, mesmo diante do entendimento majoritário de que a Lei 12.441, que lhe é superior, não impôs esta limitação.

Entendendo-se que realmente não há na Lei nenhuma limitação à titularidade de uma EIRELI por pessoas jurídicas, tal entendimento não tornaria a instrução normativa do DNRC inexistente, mas apenas inválida, pois a existência, ainda que ilegal, foi estabelecida no momento em que o órgão competente produziu a norma.

No âmbito da norma jurídica negocial a questão apresenta-se exatamente da mesma forma, havendo apenas um caso extremo no qual se pode considerar o imperativo como verdadeiramente inexistente.

Como já explanado, a norma jurídica negocial decorre da vontade dos particulares e da possibilidade legalmente regulamentada dos mesmos disporem de seus patrimônios, regulando os direitos e obrigações dos envolvidos em uma relação negocial, exarando normas tanto individuais como internas, de conduta e competência.

Assim, para chegarmos a um imperativo negocial inexistente é necessário que não haja vontade alguma, nem mesmo viciada, imaginando-se o exemplo do instrumento contratual com assinaturas falsificadas ou até sem assinaturas. Os imperativos constantes deste instrumento obviamente não serão dotados do mínimo autorizamento, posto que a competência para estabelecimento da norma jurídica negocial foi completamente ignorada.

Interessa notar, neste sentido, que o Código Civil ao tratar do negócio jurídico sequer cita a possibilidade de inexistência, abrindo o tema com o artigo 104 tratando já dos requisitos de validade e nos artigos 166 e seguintes tratando apenas da invalidade.

O legislador, portanto, adotou a posição dominante no seio da Teoria Geral do Direito, deixando de ocupar-se do plano da existência da norma jurídica negocial e presumindo que os vícios que podem gerar alguma problemática encontram-se já no plano da validade da norma jurídica.

Assim, em face do direito positivo brasileiro, mesmo nas hipóteses de nulidade do negócio jurídico, haveria a efetiva formação de uma norma jurídica negocial, apesar de inválida desde a sua formação, ou seja, da nulidade de pleno direito, independentemente de qualquer formalização.

Da mesma maneira, adentrando-se no plano das normas jurídicas internas, entende-se hoje que seriam nulas de pleno direito as normas estatutárias que sejam contrárias à Lei, por exemplo, estabelecendo que o objeto de uma sociedade será a comercialização de entorpecentes, o que, todavia, não tornará esta norma inexistente, pois fora criada pelo poder competente para dispor sobre a matéria.

Observa-se que este entendimento hoje prevalecente não é imposto por nenhum dispositivo específico de Direito Societário, não constando, por exemplo, da Lei das Sociedades por Ações, a qual foi interpretada por muitos inicialmente como possuindo um sistema unicamente de anulabilidades, de forma que nenhuma norma estatutária ou deliberação poderia ser nula, mas apenas anulável.

Sobre este fenômeno Kelsen (2009: p. 306) julga que, na verdade, nenhuma norma jurídica seria nula, mas apenas anulável, sendo o que se entende por nulidade uma anulabilidade no mais elevado grau de eficiência. O mestre de Viena explica que a decisão não poderia ser propriamente chamada de declaratório de nulidade, pois na verdade seria constitutiva da anulação, ainda que o efeito (des)constitutivo seja também retroativo, ex tunc.

Para Kelsen (2009: p. 308) sequer a norma jurídica assim dita por um internado em estabelecimento para alienados seria nula de pleno direito, ou inexistente, pois a verificação da nulidade depende de outras normas jurídicas e possuiria caráter constitutivo, o que evidencia ser Kelsen da posição de que nulidade seria sinônimo de inexistência.

Apesar de não concordarmos com esta última posição de Kelsen, entende-se que sua teoria apresenta-se em sintonia com os demais ensinamentos de sua obra, propriamente no sentido de que no Direito se estabelecem dúvidas não no sentido de que o direito é porque deve ser, mas porque vale, de modo que todas as antinomias poderiam ser resolvidas no âmbito da validade, não sendo a existência uma matéria propriamente do direito.

Como já assinalado, adota-se no presente o entendimento segundo o qual os imperativos ditados por pessoas destituídas de qualquer poder normativo simplesmente não podem criar normas jurídicas, havendo um problema realmente de inexistência.

Todavia, no momento em que as pessoas para as quais o ordenamento jurídico estabelece competência dispõem sobre a matéria de forma contrária à Lei, a norma estatuída será uma norma jurídica existente, apesar de apresentar-se nula ou anulável, conforme o caso. A nulidade e a anulabilidade, portanto, são problemas do âmbito de validade, não podendo ser confundidas com a existência.

A nulidade, apesar da Lei brasileira impor às normas nulas uma invalidade desde a sua criação, sem a produção de quaisquer efeitos e sem a possibilidade de convalidação, seja por decurso de tempo ou por outro ato válido, é um problema de validade, entendendo-se que a norma existe por ter sido criada por um órgão dotado de poder para originação de normas jurídicas, o que atribui ao imperativo nulo um autorizamento a priori.

Adentrando na temática dos negócios jurídicos, mas sem encará-lo objetivamente como criador de normas jurídicas negociais, é vasta a doutrina civilista, na qual muitos diferem os planos de existência e validade, apesar do Código Civil brasileiro não dispor sobre a inexistência, mas apenas sobre a invalidade ao impor a nulidade ou a anulabilidade.

Zeno Veloso (2002: p. 104) trata do tema com profundidade, aventando que, não só no Brasil, a figura do negócio jurídico inexistente, ou não-negócio jurídico, apresenta-se em situações nas quais “falta objeto, consentimento ou forma”.

Explica o civilista que sem consentimento algum não há negócio jurídico, o que se coaduna com o que fora exposto anteriormente e se contrapõe ao defendido por Kelsen, pois a norma jurídica não pode formar-se sem a vontade de um poder constituído, sendo certo que os particulares constituem o poder legalmente previsto para a formação de normas jurídicas negociais.

Apesar da doutrina em questão ser respaldada, ainda, por diversos outros nomes de peso, nacionais e estrangeiros, entende-se que os demais fundamentos de inexistência apontados, quais sejam, a falta de forma e a falta de objeto, seriam, na verdade, causas de invalidade, as quais encontram-se inclusive previstas na legislação brasileira, diferindo, portanto, da ausência de consentimento, verdadeira causa de inexistência do negócio jurídico, e, assim, da norma jurídica negocial, que sequer foi aventada pela legislação.

A falta de objeto, exemplificada por Zeno Veloso com a venda de um imóvel que não existe, seria, a depender das peculiaridades do caso, dolo, simulação ou fraude, sendo, consequentemente, inválido o negócio jurídico e a consequente norma negocial, seja em decorrência de nulidade ou de anulabilidade, conforme disposto nos artigos 145, 158, 166, 167 e seguintes do Código Civil.

Esta, portanto, a razão para entender-se que apenas na falta de consentimento inexistirá o negócio, sendo a falta de objeto e de forma questões de invalidade, o que não quer dizer que isso decorre simplesmente de previsão legal, pois, como afirma Pontes de Miranda (1979: p. 190) “dizer que o legislador poder destituir a separação entre inexistência e nulidade é o mesmo que supô-lo apto a, por exemplo, decretar a mudança de sexo ou abrir audiência na lua”.

O que se entende, como exposto, é que apenas a falta do poder normativo inviabiliza a existência da norma jurídica negocial, a qual é dotada de imperatividade e autorizamento justamente por emanar de um poder juridicamente estabelecido através de normas de estrutura presentes no ordenamento, aplicando-se o postulado pela Teoria Geral do Direito às normas jurídicas negociais e, assim, ao Direito Comercial como um todo.

3.2. Validade e Autonomia da Vontade

A força obrigatória dos negócios jurídicos, o pacta sunt servanda, neste trabalho ganha o enfoque de decorrer não de costumes, do direito de propriedade, de brocardos e jargões jurídicos tão conhecidos desde a Roma antiga, mas sim das normas jurídicas a que dão origem, as normas jurídicas negociais, que podem ser impostas em decorrência da imperatividade e autorizamento que o ordenamento jurídico lhes outorga.

Assim, o negócio jurídico não é válido simplesmente porque os particulares possuem liberdade para contratar, mas sim porque ao contratarem os particulares criam normas jurídicas negociais, as quais fazem parte do ordenamento jurídico e gozam de autorizamento à coerção.

Todavia, para que façam parte do ordenamento jurídico em sua plenitude, as normas jurídicas, negociais ou não, precisam adequar-se às normas jurídicas de hierarquia superior sob pena de invalidade. Daí a necessidade dos negócios jurídicos observarem todos os requisitos de validade previstos não só Código Civil, mas em todas as normas de hierarquia superior, tanto formalmente, como no conteúdo.

Essa noção aqui exposta não era objeto de reflexões séculos atrás quando a liberdade dos contratantes era total e pretensamente garantida pela ordem jurídica, que simplesmente não atribuía limites a estas vontades, que eram sempre tidas como livres e válidas independentemente do conteúdo, desde que sem nenhum dos vícios de consentimento.

Como ensina Fábio Ulhoa Coelho (2010: p.11), a autonomia dos particulares como fonte ilimitada em conteúdo para gerar obrigações estaria pautada nos seguintes pilares liberais: (i) todos são livres para contratar ou não; (ii) todos são livres para escolher com quem contratar; e (iii) os contratantes têm ampla liberdade para estipular, de comum acordo, as cláusulas do contrato.

Acrescente-se, ainda, que esta fórmula levava em conta a proteção absoluta ao direito de propriedade, garantindo, assim, que tudo fluísse através dos próprios particulares ante a garantia do direito de propriedade e da liberdade de contratar.

Com o marxismo e a industrialização, contudo, vieram a tona diversas incongruências do liberalismo fundado na autonomia ampla da vontade, sobretudo com foco nas relações de trabalho, nas quais o trabalhador, contratante que dispõe de sua força de trabalho em troca de uma remuneração, não possui nenhuma escolha, seja em relação à faculdade de contratar, com quem contratar ou das disposições contratuais.

Mais recentemente as atenções voltam-se também aos consumidores e aderentes de uma forma geral, que se apresentam igualmente hipossuficientes e totalmente limitados no que concerne à autonomia da vontade.

Com estas atenções mais atuais em relação aos contratos, sejam relacionados aos trabalhadores e aos consumidores ou simplesmente aos hipossuficientes, os ordenamentos jurídicos modernos cada dia mais avançam no sentido de limitar a autonomia da vontade, ditando limitações tanto específicas, expressas e pontuais, como amplas, através de cláusulas gerais, como a função social dos contratos, a boa-fé, os bons costumes, a função social da propriedade privada, entre outras.

Sendo assim, hodiernamente a questão da validade dos negócios jurídicos e, consequentemente, da norma jurídica negocial, não está unicamente atrelada à vontade livremente manifestada pelo particular, ou seja, a forma pela qual se estabelecem as normas jurídicas negociais, mas sujeita-se aos diversos preceitos de ordem pública que limitam o próprio conteúdo das normas jurídicas negociais.

Exemplo desta situação é a imposição da ação renovatório em todos os contratos de locação que cumpram com os requisitos para tanto, mesmo que os contratantes não manifestem vontade neste sentido e até mesmo no caso dos contratantes disporem em contrário, quando a norma jurídica negocial em questão será inválida, valendo salientar que sequer existe uma certeza de hipossuficiência na relação em que o legislador interfere com tamanha contundência, afetando de uma só vez o direito de propriedade do locador e a autonomia da vontade das partes.

A invalidade da norma jurídica negocial, seja no âmbito da nulidade ou da anulabilidade, está assim atrelada tanto aos preceitos formais de processo formador das normas jurídicas, externalização da vontade normatizadora, o negócio jurídico, como vinculada aos preceitos materiais das normas jurídicas de hierarquia superior constante de um determinado ordenamento jurídico, encontrando sua validade se conformar-se com o todo desde a sua norma fundamental, assim como ocorre com qualquer outra norma jurídica.

3.3. Eficácia e Alteração da Norma Jurídica Negocial

Apesar da crescente intervenção estatal na autonomia da vontade que se observa nos dias atuais, que, como já dito, limita de várias formas o conteúdo das normas jurídicas negociais, a própria existência destas ainda depende deste elemento, sendo o consentimento, a expressão da vontade dos particulares, o fato juridicamente adequado para a criação de uma norma jurídica negocial.

Com efeito, tem-se que, respeitado o ordenamento em sua totalidade, a expressão da vontade privada gera normas jurídicas, as quais serão tidas como existentes e válidas, passando a compor o ordenamento na condição de normas jurídicas internas ou individuais, na classificação aqui adotada.

Todavia, a existência e a validade de uma norma jurídica, de uma forma geral, não acarreta sua eficácia, conceito do mundo dos fatos que depende da observância e cumprimento da norma por parte daqueles cujo comportamento o comando normativo pretende disciplinar.

Assim, por exemplo, a legislação brasileira proíbe há algumas décadas o tabagismo em ambientes fechados, mas apenas nos últimos anos e só em algumas localidades a norma passou a ser observada, o que decorreu não da norma original em si, mas da atitude recente de determinadas autoridades no sentido de fiscalizar e exigir o cumprimento da norma, punindo os infratores.

Esse cenário é muito comum e facilmente perceptível no âmbito das normas jurídicas de caráter geral, mas apresenta-se de modo muito peculiar nas normas jurídicas negociais. A peculiaridade está na identidade entre o poder normatizador e os sujeitos a quem a norma pretende vincular, sendo a vontade dos particulares a forma adequada para criar, modificar e extinguir normas jurídicas negociais e também a forma por meio da qual o descumprimento das mesmas, a ineficácia ou inobservância, acontece.

Assim, interessa notar em que medida uma autoregulação não cumprida pode ser entendida como um problema de ineficácia da norma jurídica negocial ou como verdadeira alteração desta norma, haja vista que o não cumprimento da norma também é um ato de vontade, bastando para alterar a norma em questão.

Neste sentido é que entendemos, por exemplo, que à unanimidade dos sócios tudo poderá ser deliberado em contrário aos estatutos ou contrato social, desde que em conformidade com a Lei, pois se esta vontade pode alterar a norma jurídica em questão, poderá também afastar sua aplicação sem infringi-la.

É o caso, por exemplo, do estatuto de uma companhia impossibilitar que esta conceda garantias em favor de terceiros, mas haver uma deliberação da assembléia geral extraordinária aprovando a concessão de uma fiança em favor de um terceiro em determinado contrato.

Neste caso, vale salientar, não se requer nem mesmo a unanimidade, mas apenas a maioria, pois este quorum já poderia alterar o estatuto e possibilitar garantias de uma forma geral, devendo entender-se que a deliberação que possibilita a garantia sem alterar o estatuto é, na verdade, uma norma jurídica negocial específica para aquele ato, que prevalece sobre a geral, aplicável ordinariamente, sem infringi-la.

Consequentemente, no exemplo acima não haverá um problema de ineficácia, inobservância, descumprimento da norma jurídica negocial estabelecida no estatuto, mas a criação de uma norma jurídica negocial especial.

Todavia, esta afirmação deve ser feita com a reserva de que as vias formais para a expressão da vontade devem ser observadas, ou seja, a norma excepcional deve ser veiculada através de uma assembléia geral extraordinária, devidamente convocada, instalada e levada a cabo na forma da Lei, sem o que não poderá ser tida como válida a exceção.

Desta feita, não há como se entender pela criação de uma norma jurídica negocial específica se, no exemplo acima, à revelia da assembléia, o acionista controlador comparece no negócio jurídico em conjunto com a companhia e lá outorga autorização para que esta conceda fiança em favor do terceiro.

Neste caso, apesar do poder constituído ter manifestado sua vontade, não o terá feito na forma prescrita em Lei, gerando assim, um problema de descumprimento da Lei que lhe garante competência normativa, fazendo com que a norma jurídica especial seja inválida, vigorando a norma geral, constante do estatuto, que proíbe a fiança.

Para esta hipótese, vale salientar, é comum que contratos sociais prevejam desde logo a possibilidade de o quotista controlador isoladamente e independentemente de qualquer reunião/assembléia de sócios autorize a sociedade a determinados atos em instrumento próprio.

Em casos tais, como se pode notar, não se estará diante de um problema igual ao descrito anteriormente, pois o contrato social estará a estabelecer uma nova norma de competência, sem com isso infringir normas de hierarquia superior, possibilitando, assim, que o controlador emita normas jurídicas negociais específicas fora do contexto previsto em Lei. Ou seja, o controlador passa a deter o poder de autorizar atos da sociedade sem que isso ocorra necessariamente através de uma assembléia.

Este, conduto, parece ser o menor dos problemas no âmbito da eficácia das normas jurídicas negociais, pois apresenta-se de forma meramente aparente como sendo um problema de eficácia, ao passo que temos, na verdade, a criação de uma norma especial.

O problema verdadeira está no direito contratual propriamente dito, fora das questões societárias, pois neste não existem foros tão bem definidos para criação de novas normas ou modificação das já existentes.

Por esta razão é que normalmente os instrumentos contratuais apresentam cláusulas no sentido de que qualquer modificação poderá ser realizada apenas por escrito, não importando o comportamento das partes em contrário qualquer alteração de suas obrigações, nem renúncia aos seus direitos.

Este tipo de disposição, contudo, possui aplicação bastante limitada, pois o comportamento reiterado das partes em sentido contrário ao disposto no instrumento representará evidente modificação das condições estipuladas pelas partes e esta modificação será totalmente válida, pois empreendida pelo poder competente para tanto através do comportamento adequado, qual seja, a expressão de sua vontade em forma não defesa em Lei.

Com efeito, a ineficácia de uma norma jurídica negocial individual acarretará em alguns casos na sua revogação ou modificação e não no seu descumprimento, sendo a definição entre um e outro fenômeno uma questão fática dependente da casuística e de dificílima solução, demandando atenção especial ao interprete.

Por esta razão é que se entende pela necessidade de uma separação entre os conceitos de negócio jurídico e norma jurídica negocial, entendendo-se o primeiro como processo e o segundo como resultado, o que possibilita uma melhor compreensão dos fenômenos jurídicos ínsitos à matéria.

4. Considerações finais

Conforme inicialmente relatado, espera-se com o presente artigo introduzir na doutrina de Direito Comercial um debate de cunho zetético, o que se mostra extremamente importante na atualidade brasileira.

Outrossim, em específico se espera com o presente artigo despertar no Direito Privado um debate sobre a norma jurídica negocial e suas peculiaridades, sobretudo fazendo distinguir os conceitos de norma jurídica negocial e negócio jurídico.

Nos termos aqui defendidos, o negócio jurídico, seja ele qual for, nada mais é do que um processo de criação de normas jurídicas, sendo algo como o processo legislativo, não se confundindo com a norma jurídica a que dá origem.

Esta norma jurídica uma vez criada passa a fazer parte do ordenamento jurídico, sendo válida ou inválida a depender de sua aderência ao todo, respeitados os postulados sistemáticos do ordenamento em específico no qual se insere.

Dai a sua subordinação às demais normas de Direito, sejam de ordem pública ou privada, sem que isso implique em qualquer desrespeito ao direito de propriedade dos particulares ou à autonomia de suas vontades.

Neste sentido vale ressaltar recente posição controvertida firmada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo no julgamento do Agravo de Instrumento nº 0136362-29.2011.8.26.000, no qual foi superada a então tida como absoluta autonomia da assembléia geral de credores, a dita soberania da assembléia geral de credores para deliberar sobre o plano de recuperação judicial.

Neste julgamento o Tribunal decidiu de ofício pela nulidade da assembléia geral de credores que aprovou um plano de recuperação judicial evidentemente incompatível com as normas jurídicas do ordenamento brasileiro, espelhando, portanto, o quanto exposto no presente artigo, no sentido de que toda norma jurídica negocial deve coerência ao ordenamento como um todo.

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