A concepção clássica, o surgimento do debate e a discussão terminológica sobre a aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas


Porbarbara_montibeller- Postado em 26 abril 2012

Autores: 
MAGALHÃES, Huacy Ragner Amaral de

1 INTRODUÇÃO

Evidencia-se que os direitos fundamentais são concebidos, originariamente, como direitos subjetivos públicos, ou seja, como direitos do cidadão em face do Estado.

Nesse contexto, a questão referente ao grau dessa vinculação, especialmente à aplicação desses direitos e garantias fundamentais nas relações privadas, tem sido discutida nos diversos sistemas jurídicos, tendo a influência da doutrina alemã da Drittwirkung ou os influxos da concepção americana da state action.

Diante disso, o presente trabalho analisará a concepção clássica dos direitos fundamentais, o surgimento do debate e a discussão terminológica a respeito da aplicação dos referidos direitos no âmbito privado.

2 DESENVOLVIMENTO

No Estado Liberal de Direito, a compreensão de direito subjetivo tornou-se, a partir do século XIX, o modelo teórico explicativo da estrutura jurídica dos direitos fundamentais.

Esse entendimento resultou em um verdadeiro obstáculo à aplicação dos direitos fundamentais na esfera privada, visto que, sendo os direitos compreendidos como limitações impostas pelo Estado a si mesmo, o aspecto referente aos destinatários das normas que os consagram está contido no próprio conceito de direito fundamental.

Assim, a doutrina liberal clássica limitava o alcance dos direitos fundamentais à regência das relações públicas, que tinham o Estado em um dos polos, de forma que tais direitos eram vistos como limites ao exercício do poder estatal.

No tocante à origem do debate, sabe-se que nos Estados Unidos, especialmente a partir da década de quarenta, a discussão em torno da possibilidade de incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas começou a ganhar consistência.

Aliando-se o modelo liberal da Constituição com a presença do termo state na fórmula do due process, fez com que a jurisprudência norte-americana admitisse a aplicação dos direitos fundamentais na esfera privada nas hipóteses em que a violação puder, de alguma forma, ser tratada como uma ação estatal.

Na Alemanha, Pereira (2006, p. 443) assinala:

 

Embora haja hesitação quando se trata de identificar a origem precisa do debate, é possível afirmar que este ganhou consistência a partir da década de cinqüenta, quando foi cunhado o célebre termo drittwirking der grundrechte.

Nesse aspecto, ressalta-se a defesa de Münch (1997 apud PEREIRA, 2006, p. 443), o qual entende que a própria ideia de eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas é “uma criação da ciência jurídica alemã”.

Vale ainda registrar o ensinamento de Pereira (2006, p. 443):

Embora a construção norte-americana da state action doctrine torne questionável o pioneirismo invocado pela dogmática germânica, o fato é que esta conferiu ao tema densidade e originalidade ímpares, vindo a tornar-se ponto de referência para toda a doutrina européia. De outro lado, enquanto a jurisprudência americana adotou uma solução hermenêutica que não chega a premissa geral do direito liberal – de que os direitos não vinculam os particulares -, a discussão alemã explorou o problema sob várias perspectivas, apresentando soluções mais radicais quanto à incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas.

Por sua vez, no tocante ao aspecto terminológico, verifica-se que tal debate semântico assumiu uma peculiar importância na Alemanha, tendo desencadeado juntamente com a própria discussão acerca da incidência dos direitos fundamentais na esfera privada.

É oportuno esclarecer que a locuçãodrittwirking der grundrechte (eficácia perante terceiros) foi utilizada pela primeira vez para se referir à ideia da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, tendo prevalecido na primeira fase do debate. Todavia, Münch (1997 apud PEREIRA, 2006) aponta que há antecedentes da drittwirking na Constituição de Weimar de 1919.

Por outro lado, Estrada (2000 apud PEREIRA, 2006, p. 444) pondera que a ideia de que os direitos fundamentais são direitos subjetivos públicos oponíveis apenas ao Estado foi, de fato, parcialmente afetada pela Constituição Weimar, já que esta veio a contemplar expressamente a aplicação de certos direitos na esfera privada. No entanto, assevera o autor:

Estes preceitos eram entendidos como uma exceção à regra, que não permitiam pôr em dúvida a primogênita vocação como limites à intervenção estatal dos direitos fundamentais [...] O sentido e significado de um drittwirking dos direitos fundamentais só pode passar a fazer parte do acervo do direito constitucional no pós-guerra.

É necessário registrar também que o vocábulo terceiros referia-se à necessidade de indicar a inserção de um novo destinatário dos direitos fundamentais, além do Estado. Desse modo, a locução eficácia perante terceiros não se mostrou imune a críticas.

Um dos aspectos questionados contra o termo drittwirking refere-se ao fato de não se considerar que o terceirovinculado ao direito fundamental é também titular de direitos, de forma que não é possível, conforme Estrada (2000 apud PEREIRA, 2006, p. 444), “equiparar a vinculação dos particulares com a do Estado, sem fazer distinção rigorosa”.

Nesse contexto, vale mencionar o ensinamento de Pereira (2006, p. 444):

Acresça-se, ainda, que a denominação em tela traz ínsita a idéia de que os direitos fundamentais não são oponíveis erga omnes, já que o vocábulo terceiros pressupõe que as pessoas vinculadas não seriam originariamente destinatárias dos direitos.

Ademais, entende-se ainda que não seria correto falar em um terceiro nível de eficácia, mas sim “de um segundo nível, já que está em pauta a vinculação dos particulares (relação horizontal), em contraposição à clássica e inconteste vinculação das entidades estatais, no âmbito das relações (verticais) entre particular e Estado”, nos termos de Sarlet (2000, p. 114).

No tocante à tese deste último argumento, tem-se que surgiu a expressão horizontalwirkung, a qual significa eficácia horizontal dos direitos fundamentais, sendo também objeto de diversas críticas.

Dessa maneira, segundo Bilbao Ubillos (1997 apud PEREIRA, 2006, p. 444-445), pode-se afirmar que “a palavra horizontal induz à ideia de igualdade entre as partes na relação, desconsiderando, assim, o fenômeno dos poderes privados, que se manifesta nas relações particulares em que há proeminência de uma parte e sujeição da outra”.

É oportuno mencionar ainda que as expressões eficácia privada e eficácia dos direitos fundamentais no direito privado apresentam o aspecto negativo da amplitude, podendo abranger tanto a questão da vinculação dos particulares aos direitos fundamentais como a da vinculação do legislador de direito privado.

Sendo assim, diante da análise dessa discussão terminológica, é pertinente a explicação de Pereira (2006, p. 446):

É de ter-se em consideração, ainda, que a exatidão do emprego das diversas expressões depende, essencialmente, da concepção que se defenda para explicar o problema substancial. No presente estudo, optou-se por utilizar, indistintamente, as fórmulas ‘aplicação/incidência ou eficácia dos direitos fundamentais nas relações jurídicas privadas’ e, ainda, ‘vinculação dos particulares aos direitos fundamentais’, as quais expressam, com razoável precisão, o problema ora se investigada.

Desse modo, entende-se pertinente a utilização das expressões aplicação ou incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas e vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, tendo em vista as considerações explicitadas anteriormente.

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A doutrina liberal clássica limitava o alcance dos direitos fundamentais à regência das relações públicas, que tinham o Estado em um dos polos, sendo que tais direitos eram vistos como limites ao exercício do poder estatal. Assim, sob essa forma de estruturação do sistema jurídico, não havia como conceber a aplicação dos direitos individuais constitucionais às relações jurídicas entre particulares.

Ademais, em relação à terminologia aplicada à questão da incidência dos direitos fundamentais no âmbito privado, constatou-se que são adequadas as expressões aplicação ou incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas e vinculação dos particulares aos direitos fundamentais.   

REFERÊNCIAS

PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional e direitos humanos: uma contribuição ao estudo das restrições aos direitos fundamentais na perspectiva da teoria dos princípios. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais e direito privado: algumas notas sobre a chamada constitucionalização do direito civil. In: A Constituição concretizada: construindo pontes com o público e o privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000.