Da inconstitucionalidade de fixação da contribuição de melhoria em decorrência de recapeamento asfáltico:Inexistência da valorização imobiliária


Porbarbara_montibeller- Postado em 03 abril 2012

Autores: 
SILVA, Franceclaudio Tavares da

Resumo

O texto trata da inconstitucionalidade da cobrança da contribuição de melhoria perpetrada sem a observância das regras estabelecidas pela CF/88 e pela legislação específica.

Palavras-chave: contribuição de melhoria,  inconstitucionalidade.

 

INTRODUÇÃO

 

O presente trabalho aborda a questão da inexistência de fato gerador da contribuição de melhoria em virtude da realização pela Administração Pública, ou por quem lhe faça às vezes, de obras que visem apenas e tão somente à conservação ou manutenção de obras anteriormente realizadas. Para tanto, trataremos, no primeiro capítulo, do alcance e do significado da expressão “obra pública”, com o respaldo da doutrina administrativista brasileira.

No segundo capítulo exploraremos a prestação dos serviços públicos, sem perder de vista o princípio da legalidade no Estado Democrático de Direito, a vinculação das atividades públicas e a margem de liberdade deixada ao administrador público quanto à oportunidade e conveniência do ato público.

No terceiro capítulo trataremos especificamente sobre a contribuição de melhoria, hipóteses de incidência, o limite de sua cobrança, sua natureza jurídica, além de efetuarmos sua distinção em relação às taxas. Abordamos, também, seus requisitos legais, e a posição do STF na fixação de limites ao Administrador Público na instituição da Contribuição de Melhoria.

Ao final, com fulcro na doutrina pesquisada e nas jurisprudências colacionadas, traçamos nossas conclusões sobre o presente trabalho, levando em consideração todos os argumentos levantados durante sua elaboração.

 

1. SIGNIFICADO E ALCANCE DA EXPRESSÃO “OBRA PÚBLICA”: a correta exegese em face do art. 145, III da CF/1988

A contribuição de melhoria é um tributo de competência aberta, pois tanto a União, quanto os Estados, o Distrito Federal e os Municípios possuem a competência constitucional, art. 145, III, para instituí-lo, em decorrência da realização de uma obra pública.

É natural que as relações humanas fiquem cada vez mais complexas, surgindo, ao lado das necessidades individuais, as necessidades coletivas. Enquanto as primeiras carecem, na maioria das vezes do esforço individual, as segundas, as necessidades coletivas, requerem um esforço que vai além das forças individuais e desarticuladas. Para a efetividade dessas necessidades é necessário um esforço conjunto e articulado, que não seria possível sem a intervenção de um ente superior, capaz de impor sua vontade a dos particulares, viciados pelos desejos pessoais, visando a realização do bem comum.

Por isso, mister se faz que tenhamos em mente a correta noção do que venha a ser serviço público, para tanto passaremos a análise desta expressão.

Para Moreira Neto (2005, p. 425), apoiado na lição de René Chapus, serviço público é essencialmente aquele definido por lei como tal, desenvolvido, direta ou indiretamente, pelo Estado voltado a satisfação de interesses da sociedade.[1]

O objetivo maior da Administração Pública consiste na satisfação do interesse da população, sendo impossível alcançá-lo se se encontrar no mesmo nível dos particulares, que estão sempre priorizando a sua vontade, “determinadas por interesses pessoais” (LAZZARINI, 1999, p. 32).

A nota característica dos serviços públicos é que este “produz a satisfação de necessidades individuais, homogêneas ou não, assim como a de interesses trans-individuais” JUSTEN FILHO, 2005, p. 478). Desta forma podemos dizer que o serviço privado visa atender a interesses individuais, podendo ou não alcançar interesses coletivos, mas apenas de forma indireta ou transversa, já que o particular tem em mente a satisfação de interesses pessoais. Os serviços públicos, por conseguinte, tanto podem ser “fruíveis individualmente” quanto de fruição coletiva (JUSTEN FILHO, 2005, p. 478).

Assim sendo podemos entender por obra pública, a autorizar a cobrança da contribuição de melhoria, a decorrente de um serviço público que vise “à satisfação da coletividade em geral, mas fruível singularmente pelos administrados” (MELLO, 2004, p. 620).

Neste contexto, obra pública seria o resultado material e perceptível capaz de beneficiar o imóvel particular de tal forma que, caso não lhe seja cobrado a contribuição de melhoria, teríamos um verdadeiro enriquecimento sem causa, gozando o particular dos benefícios custeados por toda a sociedade.

 

 

 

 

 

2. O ESTADO PROVEDOR E A NATUREZA DOS SERVIÇOS OFERECIDOS À POPULAÇÃO

 

2.1.            O princípio da legalidade e o Estado Democrático de direito

Num Estado Democrático de direito o conteúdo das regras, positivos ou negativos, qualquer que seja terá que estar vinculada a lei. Ora, se para o “Estado importa que se faça, ou não se faça alguma coisa, que diga em lei” (MIRANDA, 1960, p. 322). Daí percebe-se que a função do princípio da legalidade, ou legalitariedade como preferia Pontes de Miranda (1960, p. 321), é a de sustentáculo de sua existência, pois a ausência do princípio em foco, de per si, provoca a inexistência do próprio Estado Democrático de direito.

Na idade média, a desvinculação da lei tornava o Estado em um instrumento de satisfação pessoal do governante, que podia tudo. Com o surgimento do Estado Democrático de direito, o soberano passa a subordinar-se aos preceitos estabelecidos na lei. A atividade do governante passa a ser vinculada ao estatuído. previamente e por escrito, na lei. Com o advento do Estado Democrático de direito, acresce-se a participação popular no feitio das normas.

Neste diapasão, Tavares (2002, p. 427) instrui que com a retirada do livre arbítrio do Estado absolutista, passou-se a exigir “que sua conduta esteja amoldada à lei, como expressão da vontade geral”, deixando de lado a vetusta concepção da lei como resultado da vontade do soberano, e inserindo a legitimidade como pressuposto de validade da norma posta.[2]

Conclui-se que o Estado Democrático de direito possui em seu alicerce o princípio da legalidade, expressão maior de sua existência, pois como dissemos alhures, a sua ausência provoca a inexistência do Estado Democrático de direito, transformando-o num Estado autoritário, despótico, absolutista, no qual a vontade do rei será a própria lei, causando uma insegurança jurídica que abalará, inclusive, a estrutura de toda a coletividade, vez que, nos países em que não há vinculação à lei, os investimentos externos são mais escassos, justamente em virtude da ausência de regras pré-estabelecidas capazes de dar a segurança necessária, ao capital estrangeiro, de que seu investimento, em tais países, não será à toa.

 

2.2.            A vinculação das atividades públicas e a margem de liberdade deixada ao administrador público quanto à oportunidade e conveniência do ato público

No Estado Democrático de direito, como vimos antes, há uma vinculação da atuação do Estado à lei, sob pena de sua total invalidação. Medauar (2002, p. 130) adverte que a vinculação da atividade pública ocorre quando o poder de decisão, conferido pelo ordenamento jurídico ao administrador, vem delimitado pelas hipóteses de atuação, deixando-lhe um só caminho a trilhar.

Segundo Mello (2004, p. 394) há atividade vinculada sempre que a lei determinar o comportamento do administrador, não deixando margem a ilações subjetivas. Em geral, a nossa doutrina (MELLO, 2004, p. 394; CARVALHO FILHO, 2005, p. 119; MEDAUAR, 2002, p. 130; DI PIETRO, 2002, p. 203; MEIRELLES, 2003, p. 162-163) é harmônica com a de Araújo (2005, p. 450).[3]

Como se ver, a atuação do administrador público é delimitada pelo interesse público expresso na norma legal. Mas casos há em que a própria lei deixa uma margem de liberdade para o administrador público agir. Nestes casos costuma-se dizer que há um juízo discricionário na efetivação do ato praticado. Nesta hipótese a lei deixa a juízo do agente público dois, ou mais caminhos a seguir. A opção por qualquer um deles dependerá da conveniência e oportunidade que dispor o Administrador Público.

 

3.                 DA CONTRIBUIÇÃO DE MELHORIA PROPRIAMENTE DITA

 

3.1.            Do limite à exação legal e sua natureza jurídica em relação às taxas

Segundo ensina Ricardo Alexandre (2008, p. 59-60) a Contribuição de Melhoria tem sua origem na Inglaterra, mais precisamente no ano de 1605, ano em que “a coroa inglesa realizou uma obra de grande porte e com enorme dispêndio de dinheiro para retificar e sanear as margens do Rio Tâmisa, tornando mais navegável e estimulando o incremento da atividade econômica nas áreas ribeirinhas.”. Em virtude desta obra, os imóveis situados nesta região sofreram considerável valorização, já que suas terras eram constantemente alagadas. Diante de tal fato, o enriquecimento sem causa dos proprietários, foi instituído o bettermente tax, pago pelos beneficiários da obra pública, cujo limite era a valorização do imóvel.

Pois bem, a dicção expressa do texto constitucional, afirma que o núcleo da hipótese de incidência da contribuição de melhoria é, a um só tempo, “a) a existência de melhoria em imóvel determinado e b) o nexo causal entre a melhoria havida e a realização de obra pública”. (ALEXANDRINO; PAULO, 2005, p. 17). Assim, a base de cálculo da taxa deve corresponder a exata medida dos serviços prestados pelos órgãos públicos (HORVATH, 2004, p. 308).

As taxas são cobradas em virtude de um serviço impróprio prestado ao administrado. Impróprios ou secundários, são os serviços que “embora úteis à sociedade, não afetam substancialmente as necessidades da comunidade” (COSTA COELHO, 2004, p. 122).

Afirma-se que a distinção entre serviços próprios e impróprios, consiste na essencialidade ou não do objetivo a ser alcançado e o ente que o executa.[4]

Infelizmente esta distinção entre serviços próprios e impróprios não é suficiente para a determinação da contribuição de melhoria. Isso se explica porque a contribuição visa repor aos cofres públicos o quantum gasto em um serviço, que apesar de essencial e beneficiar a população, trará para um ou alguns administrados um plus em seu patrimônio, decorrente de um serviço público bancado por toda à coletividade, inclusive por aqueles que, muito provavelmente nunca fruirão das benesses trazidas pela obra. Ademais é comezinho que nos tribunais superiores há o entendimento de que não se pode substituir a contribuição de melhoria pela cobrança da taxa.

A nota distintiva entre as taxas e a contribuição de melhoria é que a primeira requer a existência, potencial ou efetiva, de serviços ou o exercício regular do poder de polícia, enquanto a segunda exige a realização de obra pública.[5]

Quanto sua natureza a doutrina brasileira (MACHADO, 2004, p. 413; SILVA, 2001, p. 784; NAVARRO COELHO, 2004, p. 644) classifica a contribuição de melhoria como um tributo de natureza fiscal e, por isso, plenamente vinculada a matiz constitucional tributária.  

 

3.2.            Dos elementos essenciais a sua imposição: requisitos e pressupostos legais

A Carta Política de 1998 estabelece em seu art. 145, inciso III[6], que qualquer um dos entes federativos, poderá instituir a cobrança de melhoria, em virtude da realização de obra pública.

De acordo com o art. 81[7]do CTN[8]a contribuição de melhoria imposta pela União, Estados, Distrito Federal ou Municípios, dentro de suas esferas de competência, só poderá ser instituída para fazer face ao custo de obras públicas, das quais resulte valorização imobiliária. O citado dispositivo impõe dois parâmetros como limite para a cobrança da exação. O primeiro serve de limite geral, não podendo em hipótese alguma ser superado, e consiste na despesa efetivamente realizada, ou seja, o quantum a ser cobrado pelo ente público não poderá ultrapassar o valor efetivamente gasto na realização da referida obra pública. O segundo é o responsável pela individualização do valor a ser cobrado de cada contribuinte. Na dicção da lei é o próprio incremento ocorrido no patrimônio do contribuinte.

A jurisprudência do STJ solidificou o entendimento, segundo o qual, os requisitos mínimos para a imposição da contribuição de melhoria são: a realização de obra pública e o nexo de causalidade entre esta obra e a correspondente valorização do imóvel por ela beneficiado.

A Ministra Eliana Calmon, com a lucidez que lhe é peculiar, consignou no seu voto condutor, ao julgar o RESP 362788/RS, que esta exação tem como limite geral o custo da obra, e como limite individual a valorização do imóvel beneficiado, considerando ilegal a fixação da contribuição de melhoria sem observância do limite individual de cada contribuinte. Pedimos vênia para transcrever a ementa do referido decisum, verbis:

 

TRIBUTÁRIO – CONTRIBUIÇÃO DE MELHORIA – CTN ARTS. 81 E 82 – 1. A contribuição de melhoria tem como limite geral o custo da obra, e como limite individual a valorização do imóvel beneficiado. 2. Prevalece o entendimento no STF e no STJ de que não houve alteração do CTN pelo DL 195/67. 3. É ilegal a contribuição de melhoria instituída sem observância do limite individual de cada contribuinte. 4. Recurso Especial conhecido e provido. (STJ, 2002, DJU 05.08.2002)

 

Há também os critérios estabelecidos nos incisos do art. 82[9], também de observância obrigatória, sob pena de nulidade absoluta do seu lançamento, como ficou assente no RESP 160030/SP, da lavra do Min. Milton Luiz Pereira, cuja ementa foi assim consignada:

TRIBUTÁRIO – CONTRIBUIÇÃO DE MELHORIA – FATO GERADOR – REQUISITOS DE VALORIZAÇÃO OU DE BENEFÍCIO – ARTIGOS 18, II, CF/67 EC 23/83, 145, II, CF/88, 81 E 82, DO CTN – FALTA DE PREQUESTIONAMENTO – QUESTÃO SURGIDA NO ACÓRDÃO RECORRIDO – 1. Ilegalidade no lançamento de Contribuição de Melhoria sem a demonstração dos pressupostos de valorização ou específico benefício, apropriados à obra pública realizada no local da situação do imóvel. 2. Precedentes jurisprudenciais. 3. Assentou a Corte Especial entendimento no sentido de ser necessário o prequestionamento, ainda que se cuide de violação surgida na própria decisão recorrida. EREsp 8.285/RJ, Rel. Min. Garcia Vieira, in DJU 09.11.1998. 4. Recurso parcialmente conhecido e provido. (STJ, 2001, p. 00233)

 

No referido julgado, o Ministro Milton Luiz Pereira entendeu, acertadamente, que o lançamento da contribuição de melhoria efetuado sem observância dos critérios estabelecidos nos arts. 81 e 82 do CTN é, além de nulo, ilegal, pois sem estes requisitos não há a demonstração da valorização do imóvel, nem sequer que houve benefício, decorrente da obra pública, no local em que o imóvel se situa.

 

3.3.            A contribuição de melhoria vista pelo STF e inexistência de fato gerador nas obras de manutenção de bens públicos

A obra pública, como dito alhures, é realizada face às necessidades da coletividade, beneficiando, em regra, um número indeterminado de pessoas, sendo justo portanto que todos contribuíssem para a sua realização. No entanto casos há em que a realização da obra pública acaba por beneficiar certos e determinados indivíduos da sociedade, em detrimento de outros. Nestas situações é justo que se cobre destes beneficiados a parcela correspondente a seu acréscimo patrimonial decorrente da realização da obra pública.

É neste momento que surge a figura impar do Supremo Tribunal Federal, intérprete maior da nossa Constituição, determinando os contornos em que o direito deve ser aplicado em face da Carta Magna.

Com relação à contribuição de melhoria o STF já decidiu, reiteradamente, que inexiste a contribuição de melhoria sem a correspondente valorização imobiliária, sendo a sua base de cálculo a diferença entre o status quo ante e a situação do imóvel após a conclusão da obra pública.

Paulsen (2006, p. 69-71) traz a colação, em sua obra, o aresto proferido pelo Min. Carlos Velloso, no qual ficou assente que: “sem a valorização imobiliária decorrente de obra pública, não há contribuição de melhoria, porque a hipótese desta é a valorização e a sua base é a diferença entre os dois momentos: o anterior e o posterior à obra pública”. Vale ressaltar, ainda, que o Ministro Carlos Velloso, ao fundamentar o RE 114.069/SP, citou como precedente os RREE 115.863/SP e 116.147/SP.

A falta da valorização do imóvel, ou mesmo a realização de obra pública que vise a manutenção de obra já realizada, desautoriza a cobrança da contribuição de melhoria. Desta forma: “A ausência de valorização do imóvel decorrente de obra pública ou mesmo a realização de obras públicas de manutenção e conservação que não acarrete sua valorização tornam impossível a exigência dessa espécie de tributo”. (MORAES, 2002, p. 1.666)

O Supremo Tribunal Federal[10]já decidiu, que não é cabível a cobrança da Contribuição de Melhoria em virtude de obra de recapeamento asfáltico. Por oportuno, trazemos a colação julgado daquele Sodalício, constante da obra de Alexandre de Moraes (2002, p. 1.666), pacificadores deste entendimento.

‘Contribuição de melhoria. art. 18, II, da CF/67, com redação dada pela EC nº 23/83. Recapeamento asfáltico. Não obstante alterada a redação do inciso II do art. 18 pela Emenda Constitucional nº 23/83, a valorização imobiliária decorrente de obra pública – requisito ínsito à contribuição de melhoria – persiste como fato gerador dessa espécie tributária’ (STF – 2ª T. – RExtr. nº 115.863/SP – Rel. Min. Célio Borja, Diário da Justiça, Seção I, 8 de maio de 1992, p. 6.268) No mesmo sentido: STF – ‘Contribuição de melhoria. Fato Gerador. Recapeamento Asfáltico. Recapeamento de via pública já asfaltada sem configurar a valorização do imóvel que continua a ser requisito para a instituição do tributo, mesmo sob a égide da redação dada pela emenda 23, do artigo 18, II, da CF/67’ (STF – 1ª T. – RExtr. nº 116.418 – Rel. Min. Octávio Gallotti, Diário da Justiça, seção I, 21 de maio de 1993, p. 9.768. Conferir ainda: RTJ 89/598; RTJ 105/434; RTJ 138/600; STF – 2ª T. – Ainº 204.827-1/PR – Rel. Min. Marco Aurélio, diário da Justiça, SeçãoI, 3 fev. 1998, p. 24.

 

 Vale ressaltar que restou consignado no RExtr. 115.863/SP, reproduzido por Alexandre de Moraes (2002, p. 1.667), que é impossível a cobrança da contribuição de melhoria em virtude de obras que visem a manutenção e/ou conservação de obras públicas. De acordo com este decisum  a “hipótese de recapeamento de via pública já asfaltada: simples serviço de manutenção e conservação que não acarreta valorização do imóvel, não rendendo ensejo a imposição desse tributo”.

Por demais salutar, a observação feita por Ricardo Alexandre (2008, p. 61), para quem o entendimento do Supremo consolida sua posição quanto à questão da pavimentação de vias públicas, afirmando que: “O Tribunal considera que a ‘realização de pavimentação nova, suscetível de vir a caracterizar benefício direto a imóvel determinado’ com incremento de seu valor pode justificar a cobrança de contribuição de melhoria, o que não acontece com o mero ‘recapeamento de via pública já asfaltada’, que constitui simples serviço de manutenção e conservação, não ensejando a cobrança do tributo.”

Vê-se que, com acerto, o STF vem entendendo que nas hipóteses de recapeamento asfáltico, ou de qualquer outra obra pública que vise a manutenção, preservação ou a conservação de bem público, que não dê ensejo a valorização dos imóveis circunvizinhos, não autoriza a instituição da exação, já que não ocorre o fato gerador da Contribuição de Melhoria.

Como bem salienta Paulo de Barros Carvalho (1998, p. 52-53), as perinormas só podem ser aplicadas diante da violação das respectivas endonormas, pois nas endonormas se encontram as hipóteses de incidência, ou no campo tributário o fato gerador do tributo, enquanto as perinormas trazem as conseqüências pelo descumprimento da endonorma.[11]

Aplicando a lição acima à Contribuição de Melhoria, teremos que a perinorma determina que havendo a realização de obra pública, que resultar valorização imobiliária, desencadeará a conseqüente contribuição de melhoria, ou seja, o conteúdo da endonorma.

No caso da obra pública de manutenção ou conservação, como o recapeamento asfáltico, apenas parte da perinorma se consuma, faltando justamente a valorização imobiliária, impedindo a conseqüência ou endonorma.

 

CONCLUSÃO:da inexistência de fato gerador da contribuição de melhoria nas obras públicas de manutenção ou conservação de bens públicos

 

Como bem visto, podemos concluir que a contribuição de melhoria não é devida em virtude da realização de obra pública que não resulte valorização dos imóveis circunvizinhos. Isto porque nestes casos a Constituição Federal foi expressa ao dizer que a contribuição de melhoria será instituída em virtude da realização de obra pública, exigindo o CTN e o DL 195/97 que como conseqüência haja o incremento no patrimônio dos particulares situados na proximidade da obra realizada.

O STF, cumprindo seu papel constitucional, vem, com acerto, determinando a inexistência de fato gerador da exação em comento nos casos em que não há valorização imobiliária, não obstante tenha havido obra pública.

Em tais casos o que há é um serviço de manutenção de um bem público em virtude do desgaste pelo uso ou pelo tempo, sendo necessária a sua manutenção. Não se afigura viável, legal ou lógica a instituição da contribuição de melhoria em virtude da realização de obras em que seu objeto é conservar uma via pública, por exemplo. Nesta situação, da via pública, a mesma já fora construída, e em virtude disto poderia ter sido cobrada a contribuição de melhoria, se não o foi. O que não poderá mais é ser cobrado uma exação sem a realização de seu fato gerador. Ora se assim não fosse chegaríamos a absurda situação, na qual todas as vezes em que a Administração Pública fosse realizar uma obra de conservação fosse instituída a contribuição de melhoria. Imaginemos os proprietários dos prédios da Av Boa Viagem, entre outros, terem que pagar a contribuição de melhoria, todas as vezes que houvesse o conserto da via pública, em virtude do desgaste natural a que estão exposto os seus componentes (cimento, pedras, ferro, asfalto e etc).

Por esta série de razões entendemos não ser justo, nem legal. a instituição da contribuição de melhoria em virtude de serviços de recapemanto asfáltico, exemplo de obra pública reparadora de bem público.

 

REFERÊNCIAS

 

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[1]Afirma o autor: “atividade administrativa, assegurada ou assumida pelo Estado, que se dirige à satisfação de interesses coletivos secundários, de fruição individual, e considerados, por lei, como de interesse público.”

[2]Não é à toa que se diz: “Estado de direito é a situação dos sistemas jurídicos em que a Administração está vinculada à regra jurídica, resumida no adágio ‘suporta a lei que fizestes” (CRETELLA JUNIOR, 1988, p. 135).

[3]“os limites da ação voluntária do agente são, portanto, o ordenamento jurídico (limites traçados pela lei para o caso concreto), a competência (do agente e do órgão), a finalidade (do interesse público concreto) e a forma (prescrita ou permitida pela lei)”. Todas as vezes que este limite é ultrapassado, chega-se a arbitrariedade (ARAÚJO, 2005, p. 450).

[4]Na primeira hipótese, os serviços são essenciais para a sobrevivência da sociedade e prestados diretamente pelo Estado. Os segundos não são essenciais, embora relevantes, e podem ser prestados diretamente ou mediante delegação. (COSTA COELHO, 2004, p. 122).

[5]Neste sentido: “Convém esclarecer que, se as taxas pressupõem serviços públicos ou o exercício do poder de polícia, as contribuições de melhoria levam em conta a realização de obra pública que, uma vez concretizada, determine a valorização dos imóveis circunvizinhos”. (CARVALHO, 2005. p. 41-42).

[6]O art. 145, III, da CF/88 possui a seguinte redação, verbis: Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão instituir os seguintes tributos: (...); III - contribuição de melhoria, decorrente de obras públicas.

[7]Diz o art. 81 do CTN: “A contribuição de melhoria cobrada pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal ou pelos Municípios, no âmbito de suas respectivas atribuições, é instituída para fazer face ao custo de obras públicas de que decorra valorização imobiliária, tendo como limite total a despesa realizada e como limite individual o acréscimo de valor que da obra resultar para cada imóvel beneficiado”. (destacamos)

[8]Há quem advogue que os art.s 81 e 82 do CTN tenham sido revogados pelo Dec. Lei nº 195/67. Vide a propósito Leandro Paulsen. Direito Tributário: Constituição e Código Tributário à luz da Doutrina e da Jurisprudência. 8 ed. rev. e atual. Porto Alegre: Livraria do Advogado;ESMAFE, 2006. p. 915.

[9]Assim dispõe o art. 82. “A lei relativa à contribuição de melhoria observará os seguintes requisitos mínimos: I - publicação prévia dos seguintes elementos: a) memorial descritivo do projeto; b) orçamento do custo da obra; c) determinação da parcela do custo da obra a ser financiada pela contribuição; d) delimitação da zona beneficiada; e) determinação do fator de absorção do benefício da valorização para toda a zona ou para cada uma das áreas diferenciadas, nela contidas; II - fixação de prazo não inferior a 30(trinta) dias, para impugnação, pelos interessados, de qualquer dos elementos referidos no inciso anterior; III - regulamentação do processo administrativo de instrução e julgamento da impugnação a que se refere o inciso anterior, sem prejuízo da sua apreciação judicial. § 1º A contribuição relativa a cada imóvel será determinada pelo rateio da parcela do custo da obra a que se refere a alínea c, do inciso I, pelos imóveis situados na zona beneficiada em função dos respectivos fatores individuais de valorização. § 2º Por ocasião do respectivo lançamento, cada contribuinte deverá ser notificado do montante da contribuição, da forma e dos prazos de seu pagamento e dos elementos que integraram o respectivo cálculo”.

[10]Conferir também: 1º TACSP – AP 0913031-8 – (42772) – São João da Boa Vista – 2ª C.Fér. – Rel. Juiz Amado de Faria – J. 03.04.2002; STJ – RESP 280248 – SP – 2ª T. – Rel. Min. Francisco Peçanha Martins – DJU 28.10.2002; STJ – RESP 160030 – SP – 1ª T. – Rel. Min. Milton Luiz Pereira – DJU 19.11.2001 – p. 00233; 1º TACSP – AP 0829959-6 – (41825) – Avaré – 11ª C. – Rel. Juiz Heraldo de Oliveira – J. 06.12.2001.

[11]Diz o autor: “Em suma, tanto as perinormas (normas primárias) quanto as endonormas (normas secundárias) têm a mesma estrutura estática: hipótese ou suposto e conseqüência. Nas endonormas, o suposto é a descrição de um evento que, uma vez ocorrido concretamente, fez desencadear a conseqüência que lhe foi imputada. Nas perinormas, o suposto é justamente a previsão do não cumprimento da prestação estipulada como conteúdo da conseqüência de alguma endonorma, enquanto sua conseqüência será o estabelecimento de relação jurídica de índole sancionatória”. (CARVALHO, 1998, p. 52-53)