Demanda Contratada de Potência


Porvinicius.pj- Postado em 22 novembro 2011

Autores: 
MIRANDA, José Benedito

A natureza jurídica da demanda contratada de potência ainda não foi suficientemente apreendida, pois, para muitos, não se legitimaria a incidência do imposto sobre a mera aquisição de energia elétrica para formação de uma reserva, contratada que seria pelo consumidor com o único propósito de prevenir-se do risco de ser surpreendido pela eventual insuficiência de energia, como equivocadamente já se afirmou alhures.

Por isso, para a expressiva maioria dos julgados, o ICMS deve incidir somente sobre o montante referente ao efetivo consumo de energia elétrica, erigindo-se o consumo efetivo – e não o valor da operação -, com essa formulação exegética, como decisivo critério legitimador da base imponível do imposto, repudiando, por outro lado, a inclusão do componente tarifário, representado pela demanda de potência, na base de cálculo do ICMS.

Assentou a jurisprudência, até agora construída em torno do tema, que, em circunstâncias tais, estaria o fisco exigindo imposto tão só pelo fato da celebração do contrato de fornecimento de energia elétrica, para entrega futura] - o que seria inconcebível, pois o ICMS não é um imposto sobre o tráfico jurídico.

Somente a partir do voto proferido pelo Min. Castro Meira, no julgamento do REsp nº 586.120, o Superior Tribunal de Justiça convenceu-se da necessidade de reexaminar sua jurisprudência, com a adequada compressão da estrutura tarifária do setor elétrico e dos reflexos fiscais resultantes. Afetado à 1ª Seção, ainda não foi possível concluir o julgamento, em razão de um pedido de vista que perdura por quase doze meses.

Recentemente, designado relator do REsp nº 960.476/SC, o  Min. Teori Albino Zavascki, tendo em vista a multiplicidade de recursos versando a mesma matéria, decidiu submeter seu julgamento ao regime do art. 543-C, do CPC, afetando-o à 1ª Seção, abrindo-se, com isso, oportunidade para a edição de uma súmula impeditiva de recursos repetitivos.   

O tema, por conseguinte, é bastante atual e sobre a inclusão do valor da demanda de potência contratada na base de cálculo do  ICMS dirá, então, de forma definitiva os ministros integrantes das duas turmas temáticas do órgão jurisdicional a quem a Constituição confiou a integridade do direito federal.

A adequada compreensão da matéria guarda pertinência com  o modelo das condições de fornecimento da energia elétrica e de formação das tarifas, tradicionalmente utilizado, que leva em conta os grupos e classes de consumidores de energia elétrica, divididos conforme a tensão de fornecimento (altas, médias e baixas tensões) e a atividade para qual a energia se destina (industrial, comercial, rural, residencial, serviço público e iluminação pública).

Estudos realizados na década de oitenta revelaram que o perfil de comportamento do consumo ao longo do dia encontra-se vinculado aos hábitos do consumidor e às características próprias do mercado de cada região. Embora o consumo de energia varie ao longo das 24 horas do dia, atingindo valores máximos entre as 17 e 22 horas, em que as redes de distribuição assumem maior carga, o sistema de geração de energia deve ter capacidade para suprir o pico de consumo neste horário, denominado "horário de ponta", gerando para a concessionária maiores custos para atender a crescente demanda dos consumidores.

Segundo a agência reguladora do sistema “cada tipo de consumidor usa a rede de maneira diferente durante as horas do dia. Por exemplo, o perfil de consumo (curva de demanda) de um consumidor residencial é diferente do de um grande consumidor industrial. A forma como os consumidores usam a rede tem impacto direto no dimensionamento da rede a ser disponibilizada e, portanto, na necessidade de novos investimentos necessários para viabilizar o consumo”.

As características de cada unidade consumidora é que determinam o seu enquadramento na estrutura tarifária. Na modalidade denominada tarifa convencional, estão enquadrados os consumidores residenciais e as pequenas instalações industriais e comerciais. São os consumidores atendidos em tensão secundária de distribuição.

Para as instalações consumidoras com potência instalada acima de determinada potência, em que o suprimento de energia é feito em média ou alta tensão, adota-se a tarifa binômia, assim conhecida por ser constituída de duas parcelas distintas, uma vez que estabelece valores para potência contratada e outra para a energia consumida. O sistema contempla ainda o segmento horo-sazonal, que prevê tarifas diferenciadas para os horários de ponta e fora de ponta e ainda fixa valores distintos para os períodos do ano compreendidos entre maio e novembro, definido como período seco e entre dezembro e abril como período úmido.

Para o setor elétrico, conhecer a demanda de potência de energia elétrica necessária para assegurar o simultâneo funcionamento do conjunto dos aparelhos e equipamentos de uma unidade consumidora intensiva é essencial, uma vez que, como as curvas de carga das plantas industriais podem variar em função do ciclo de operação previsto para os diferentes períodos de funcionamento dos setores de produção e do período de funcionamento diário estipulado, existe a permanente preocupação em manter controlado o valor da demanda em horários de pico, especialmente, pois o dimensionamento do sistema elétrico depende não só da quantidade de energia absorvida, mas também da intensidade em que é consumida, denominada demanda, que é a soma das cargas a serem atendidas.

Com esse propósito e como para atender um intenso consumo de energia, é necessária uma rede de alta potência, com linhas de transmissão que operam em alta tensão e condutores com grandes bitolas, os próprios consumidores, tendo em consideração a soma das potências nominais dos equipamentos elétricos instalados em sua unidade, devem dimensionar e contratar a demanda de potência máxima provável que estimam necessária para que a concessionária possa dimensionar, com segurança, a capacidade da rede de distribuição, para disponibilizá-la (Res. ANEEL nº 456, art. 3º, "c").

É intuitivo, exemplifica a ANEEL, que os circuitos para suprirem uma pequena lâmpada doméstica que consome uma certa quantidade de energia por mês, estando ligada oito horas por noite, não serão iguais àqueles usados para suprir um canhão de luz que consome a mesma quantidade de energia por mês operando apenas alguns minutos durante esse período. A "bitola" em um caso será diferente daquela empregada no outro, mesmo que a quantidade global de energia consumida em um mês seja a mesma. Para atender um intenso consumo de energia, é necessária uma rede ele alta potência, com linhas de transmissão que operam em alta tensão e que têm condutores com grandes bitolas.

Definida pela Agência Reguladora como sendo a "demanda de potência ativa solicitada ao sistema elétrico, que a concessionária se obriga contratualmente a disponibilizar ininterrupta e continuamente para o consumidor, no ponto de entrega, conforme valor e período de vigência ajustados e que deve ser paga, seja ou não utilizada durante o período contratado (Res. ANEEL nº 456, art. 2º, IX), a potência contratada, que deve corresponder à soma das diversas cargas que serão ligadas simultaneamente em uma instalação, de acordo com as particularidades de uso de cada cliente, constitui mecanismo fundamental para administrar a segurança, confiabilidade e estabilidade do sistemas elétrico

Entretanto, advertem as concessionárias, para que sejam respeitados os níveis de segurança de operação do sistema elétrico como um todo, faz-se necessário um cálculo prudente da demanda máxima, pois solicitações muito acima das reais necessidades dos equipamentos instalados levam ao desperdício, onerando desnecessariamente a conta de energia; estimá-la muito abaixo, por outro lado, pode ensejar a aplicação da tarifa de ultrapassagem da demanda contratada, além de riscos de incêndio e quedas de fornecimento, que o subdimensionamento do porte das instalações às suas reais necessidades pode acarretar.

A demanda faturável será o valor máximo de demanda dentre todos os valores registrados em intervalos de 15 minutos durante o período existente entre as coletas de medição, ou seja, o valor de demanda que aparecerá no corpo da conta de energia elétrica será o valor máximo obtido nas demandas registradas entre as medições realizadas.

É certo, por outro lado, que, ao contratar a disponibilização de uma determinada potência, o grande consumidor tem como contrapartida a garantia de que poderá consumir energia elétrica até a potência máxima contratada, sem risco de quedas de tensão ou danos aos equipamentos e à rede.

Como se sabe, ao receber a energia elétrica, os equipamentos transformam-na em outra forma de energia. Quanto mais energia é transformada em um menor intervalo de tempo, mais intensa é a potência contratada utilizada e é aí que a demanda, se não estiver adequadamente dimensionada, pode gerar riscos para o sistema. Portanto, a potência elétrica é uma grandeza que mede a rapidez com que a energia elétrica é transformada em outra forma de energia.

Embora reconhecida a distinção entre os conceitos de "potência" e "energia", há entre eles uma íntima relação, pois potência é a energia dividida pelo tempo; reciprocamente, energia é a potência multiplicada pelo tempo. Por isso, quanto mais intenso é o consumo da energia em dado espaço de tempo, maior é a potência utilizada, pois o consumo de energia depende da potência do aparelho em funcionamento e do tempo em que permanece ligado. A intensidade do consumo é ditada, por conseguinte, pela potência do equipamento em uso.

O consumo medido refere-se ao registro do quanto da energia elétrica, expresso em KWh, foi consumida durante o período de um mês. O consumo nada mais é do que a quantidade de energia elétrica absorvida por uma instalação, enquanto que a demanda de potência elétrica representa a relação entre energia e tempo, vale dizer, é a medida do fluxo da energia consumida na instalação no período considerado.

Em se tratando de um pequeno consumidor, a quantidade de energia consumida é apurada em kWh, pois essa é a unidade de medida adotada pela tarifa monômia, em que o valor faturado compreende a demanda de potência estimada e o consumo medido, tal como se passa com a fatura de energia fornecida a uma unidade residencial, em que as variações no perfil de consumo não são de modo a exigir alterações substantivas no dimensionamento do sistema elétrico. Adota-se, no caso, a chamada tarifa convencional ou monômia.

Por outro lado, como o sistema elétrico tem de ser dimensionado para entregar energia com as características de demandas específicas, previstas em contrato, que variam de consumidor para consumidor, é natural que a conta de energia elétrica leve em consideração as duas grandezas que concorrem para a formação da tarifa, que se diz binômia, pois uma reflete a quantidade de energia elétrica consumida (KWh) e a outra, sua intensidade (ou potência), determinada pela demanda (KW), rateando-se, com isso, os custos de forma proporcional ao impacto que cada grande consumidor causa ao sistema elétrico.

Veja-se o seguinte exemplo fornecido pela Eletropaulo, em seu sítio na internet:

“Em uma instalação existem 3 lâmpadas coloridas de iluminação de potência de 100 W cada uma. Às 18 horas da tarde você liga a lâmpada vermelha e a deixa ligada. Às 19 horas você liga a lâmpada amarela e mantém a lâmpada vermelha acesa. A partir das 20 horas você mantém as 3 lâmpadas acesas.

Cada uma destas lâmpadas representa uma carga (de uma potência especifica de 100 W) que fica solicitando energia do sistema de fornecimento elétrico.

Neste exemplo sua demanda a cada período seria a seguinte:

Às 18 horas: 100 W;

Às 19 horas: 200 W (2X100);

Às 20 horas: 300 w (3X100).”

Portanto, no caso, a demanda máxima provável seria de 300 KW; diferentemente, o consumo, a seu turno, importaria 600 KWh (100+200+300).

O exemplo revela que o consumo medido da energia elétrica não coincide com a demanda de potência elétrica utilizada no mesmo período.

Guardadas as devidas proporções, é o que se passa quando se trata de uma demanda por energia elétrica formulada para atender uma planta industrial equipada com um expressivo número de diferentes aparelhos e equipamentos elétricos.

Veja-se outro exemplo:

“Vamos supor dois consumidores com o mesmo consumo mensal médio, com os seguintes perfis de consumo ao longo do dia:

Consumidor 1: 10 MW x 1 hora = 10 MWh;

Consumidor 2: 1 MW x 10 horas = 10 MWh.

Do ponto de vista de consumo de energia os dois consumidores produzem o mesmo efeito ao final do dia (10 MWh = 36.000 milhões de Joules). Porém, em termos de reflexo no sistema elétrico, o Consumidor 1, por apresentar um baixo fator de carga - ou seja uma baixa relação entre o consumo médio e o consumo máximo, provoca um enorme impacto, exigindo investimentos nas instalações compatíveis para atender a sua demanda, de 10 MW por uma hora - que são muito maiores que os necessários para atender uma demanda de 1 MW, e que devem ser devidamente remunerados.”

No caso, como a intensidade do consumo é ditada pela potência dos aparelhos elétricos, a medição da demanda dos dois consumidores acusará valores distintos, implicando uma tarifação também distinta, pois, como o consumo intensivo implica em demanda maior - requisitando do sistema distinta capacidade de geração, transmissão e distribuição -, a tarifa de demanda deverá ser superior à daquele que apresentou consumo regular no período. Por conseguinte, natural que uma parcela da conta de energia elétrica reflita os custos da infra-estrutura posta à disposição do consumidor e a outra corresponda à quantidade consumida em um período de tempo.

Essa segregação dos custos possibilita também reconhecer o preço da energia consumida em grande intensidade (alta potência) daquela consumida em pequena intensidade (baixa potência), devendo ambos ser discriminados na fatura de energia elétrica, segundo prevê o Decreto nº 62.724, de 17 de maio de 1968, que, ao estabelecer normas gerais de tarifação para as empresas concessionárias de serviços públicos de energia elétrica, assim dispõe:

"Art. 11. As tarifas a serem aplicadas aos consumidores do Grupo A serão estruturadas sob forma binômia, com uma componente de demanda de potência e outra de consumo de energia.

Art. 12. A demanda de potência faturável para as unidades consumidoras do Grupo A será a maior dentre as seguintes:

I - a maior demanda medida, integralizada no intervalo de quinze minutos durante o período de faturamento;

II - a demanda contratada, observado o disposto no art. 18 deste Decreto e no art. 3º do Decreto nº 86.463, de 13 de outubro de 1981.

§ 1º A demanda de potência, bem como o consumo de energia de cada usuário desse grupo, deverão ser verificados, sempre por medição".

A medição da demanda de potência de energia elétrica utilizada, além de possibilitar a identificação do grau de regularidade com que a energia é consumida, permite que se impute àquele que exige dimensionamento maior do sistema elétrico uma tarifa diferenciada, fixada em função das características técnicas e dos custos específicos, provenientes do atendimento aos distintos segmentos de usuários (Lei nº 8.987, de 13.02.95, art. 13). Legítimo esse tratamento diferenciado, segundo se decidiu, em hipótese de todo idêntica, no REsp 873.647, Relator Min. Humberto Martins.

De resto, parece não existir dúvida quanto à legitimidade da cobrança desse componente tarifário, mesmo porque já reconhecida pela jurisprudência, segundo o acórdão da lavra da eminente Ministra Eliana Calmon (REsp nº 609.332), assim ementado, em sua parte útil:

"ADMINISTRATIVO - SERVIÇO PÚBLICO - ENERGIA ELÉTRICA - TARIFAÇÃO - COBRANÇA POR FATOR DE DEMANDA DE POTÊNCIA - LEGITIMIDADE.

(...)

             2. A prestação de serviço de energia elétrica é tarifada a partir de um binômio entre a demanda de potência disponibilizada e a energia efetivamente medida e consumida, conforme o Decreto 62.724/68 e Portaria DNAAE 466, de 12/11/1997

3. A continuidade do serviço fornecido ou colocado à disposição do consumidor mediante altos custos e investimentos e, ainda, a responsabilidade objetiva por parte do concessionário, sem a efetiva contraposição do consumidor, quebra o princípio da igualdade das partes e ocasiona o enriquecimento sem causa, repudiado pelo Direito".

Em seu voto, deixou consignado:

"Assim como não pode a concessionária deixar de fornecer o serviço, também não pode o usuário negar-se a pagar o que consumiu ou o que lhe foi disponibilizado pelo concessionário, sob pena de se admitir o enriquecimento sem causa, com a quebra do princípio da igualdade de tratamento das partes.

(...)

             Afinal, para prestar com eficiência o serviço, o concessionário é obrigado a disponibilizar um potencial de energia em seus sistemas para que o consumidor, necessitando, possa usufruí-lo de forma imediata e automática, segundo os critérios fornecidos pela legislação específica.

A aceitação da tese trazida pela recorrente levaria à idéia de se ter um serviço gratuito ou a baixíssimo custo, o que não pode ser suportado por quem fez enormes investimentos e conta com uma receita compatível com o oferecimento desses serviços, o que representaria, ao contrário do que prega a recorrente, uma desvantagem exagerada para ela, consumidora, em detrimento do concessionário, com ônus excessivo para este".

E, realmente, diversa não poderia ser a solução ofertada, pois, se a tarifa deve assegurar justa remuneração do capital, os investimentos feitos para atender a demanda de potência contratada computam-se no valor da tarifa, uma vez que as despesas pertinentes, incorridas com a boa prestação do serviço, necessitam abrigar-se na tarifa, pois, a ser de outro modo, a tarifa não estaria incorporando todos os componentes que devam concorrer para sua formação. Como é de todos sabido, assim se compõe normalmente o regime tarifário, segundo o magistério de Celso Antônio Bandeira de Mello ("Taxa de Serviço", in RDT 9/10)

Simples componente da tarifa e só dela dissociável na medida estrita em que seja havida como unidade segregada, conquanto co-participante da natureza do principal, "o componente tarifário de potência é parcela dos custos de fornecimento da energia elétrica", assegura Ricardo Lobo Torres, em parecer sobre o tema.

Sabendo-se que a tarifa, devida ao prestador do serviço, é meio pelo qual se remunera a pres­tação de determinados serviços públicos concedidos, na medida em que repre­senta a contrapartida de seu desempenho, o componente tarifário está vocacionado a garantir a cobertura das despesas realizadas para atender as necessidades de um específico segmento de consumidores, pelo que a "demanda contratada" nada mais é que um componente da tarifa de energia elétrica.

Ainda que se veja nesse componente a natureza de um acréscimo, um quantum suplementar, agregado à tarifa, como incremento de seu valor, co-participante da natureza do principal, ainda assim dela seria dissociável na medida em que havida como unidade suplementar, alojando-se no gênero tarifa exigida como contraprestação do fornecimento da energia elétrica e cobrada dos consumidores eletro-intensivos.

Há que se reconhecer, então, o reflexo fiscal resultante dessa realidade tarifária.

Entretanto, algumas decisões judiciais, pouco preocupadas em sindicar a natureza jurídica da demanda de potência, optaram por dirimir a controvérsia em face da própria hipótese de incidência do ICMS, de que, entretanto, tanto ela como o consumo da energia são ambos meras medidas de sua expressão financeira, integrando, portanto, sua base de cálculo e não o núcleo da materialidade de sua hipótese descritiva.

O fato gerador do imposto

Prescreve o art. 155, II, da CF, reproduzido pelo art. 1º da LC 87/96, competir aos Estados e ao Distrito Federal instituir imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias (veja-se, operações e não o consumo), o que significa dizer que a incidência do ICMS pressupõe uma operação que promova a mudança de titularidade da mercadoria, nisso se esgotando, não perquirindo, tanto a Constituição como a lei complementar, aditada para disciplinar sua instituição e cobrança, sobre a destinação a ela dada por seu adquirente ou qualquer outra circunstância alheia à materialidade de sua hipótese de incidência.

Exatamente porque os contornos relativos à hipótese de incidência do ICMS já se acham estabelecidos na Constituição, não é dado ao intérprete ou ao aplicador da lei nela inserir elemento estranho à descrição do núcleo de sua materialidade da incidência, ou condicionar sua incidência a qualquer circunstância superveniente.

Precisamente por isso é que Alcides Jorge Costa, ao se referir à afirmativa de Berliri de que o imposto sobre o valor acrescido é um imposto sobre o consumo e que a conseqüência é a de tornar-se devido apenas quando ocorre o consumo, diz que esse essa conclusão "resulta da aplicação de um dado econômico a um fato jurídico", e que, por isso mesmo, "é inaceitável" (ICM na Constituição e na Lei Complementar. Editora Resenha Tributária. SP, 1978, pág. 77). A essa crítica adere Paulo de Barros Carvalho, para quem "Antônio Berliri edifica suas ponderações utilizando-se de conceitos nitidamente econômicos, inaplicáveis, sem laivos de heresia, à descrição do fenômeno jurídico" (Hipótese de Incidência do ICM, RDT, nº 11/12, p. 261).

Sendo assim, não é lícito ao intérprete ou ao aplicador da lei introduzir na hipótese descritiva do fato gerador do imposto um elemento exógeno, de natureza econômica, que só se transformaria em jurídico se o legislador complementar estabelecesse - ele próprio - que o fato gerador é o consumo ou que a incidência do ICMS sobre as operações relativas à circulação de mercadorias somente se aperfeiçoa com seu consumo - no que, evidentemente, estaria se distanciando de sua regra-matriz constitucional, estabelecendo uma antinomia insuperável. Não obstante as acerbas críticas a ela dirigidas pela doutrina da melhor expressão, a tese do insigne jurista italiano ainda contaria, ao que consta, com fervorosos adeptos.

Nesse contexto, as decisões que afirmam que ocorrência do fato gerador do ICMS pressupõe o consumo da energia elétrica - tão difundidas e divulgadas - são juridicamente equivocadas, porque divorciadas da sua precisa hipótese de incidência, tal como delineada pelo texto constitucional, quando alude às “operações relativas à circulação de mercadorias”, pelo que concorreriam apenas para multiplicar perplexidades e dificultar a fixação dos estritos termos normativos do tributo.

Assim, os arraigados precon­ceitos econômico-financeiros prevalecentes nesta matéria chegaram então a produzir a desastrosa inteligência - infelizmente hoje generalizada - no sentido de que o ICMS só deve incidir sobre o valor da energia elétrica efetivamente consumida. Ora, diriam, isso é um monstruoso despropósito, considerada, ademais, a peculiar estrutura tarifária do setor elétrico.

Por outro lado, embora prepondere a eleição da "saída" como forma mais corrente do momento em que se considera ocorrido o fato gerador do ICMS, a Lei Complementar nº 87, de 1996, consigna, nos diversos incisos do art. 12, diferentes marcos temporais de sua exteriorização.

Por isso, à falta de uma explicitação – notadamente em virtude da reestruturação do setor elétrico em que cada segmento desenvolve atividade distinta - a genérica alusão feita à saída da mercadoria do estabelecimento, como elemento determinante do momento em que se realiza o fato gerador do imposto (inc. I), não encontra adequado campo para aplicação quando se trata de operação de circulação de energia elétrica, uma vez que, por ocasião de sua saída do estabelecimento gerador, seu usuário é indeterminado, pois, fluindo a corrente pelas linhas de transmissão e de distribuição, poderá ser consumida por quem quer que seja que a elas tenha acesso, não havendo, então, como identificá-lo, como, em outro contexto, observou Gilberto de Ulhôa Canto.

A essa dificuldade, alia-se o fato de que, como o sistema elétrico é hoje totalmente interligado, integrado que é pelas diversas usinas que estão a ele conectadas, não haveria, também, como identificar qual é o estabelecimento produtor que deu saída à energia elétrica entregue a determinado consumidor.

Nessas circunstâncias, mostra-se aplicável o que dispõe art. 116, II, do CTN, ao teor do qual, quando a previsão hipotética referir-se à situação jurídica, ter-se-á por ocorrida no instante em que, na forma do direito aplicável, esteja definitivamente configurada, pois, muitas vezes, na idealização das conseqüências tributárias, o legislador complementar lança mão de figuras de outros ramos do direito, sem explicitar tratamento jurídico-tributário diverso.

Nessa hipótese, como não existe um legislador tributário distinto e contraponível a um legislador civil ou comercial - uma vez que os vários ramos do direito são partes de um único sistema jurídico - qualquer regra jurídica exprimirá, então, salvo disposição em contrário, uma única regra (conceito ou categoria ou instituto jurídico), válida para a totalidade daquele único sistema jurídico.

Dessa homogeneidade sistemática (homogeneidade essencial para a certeza do direito que deve derivar do organismo jurídico) decorre a conseqüência de que a norma legal, ao fazer referência a conceito ou instituto de um determinado ramo de direito, assim o faz aceitando o mesmo significado jurídico que emergiu daquela expressão, quando ela entrou para o mundo jurídico naquele outro ramo do direito, segundo o precioso magistério de Alfredo Augusto Becker (Teoria Geral do Direito Tributário, Saraiva, 3ª edição, p. 122/123).

No caso, o fato gerador do imposto da operação relativa à circulação de energia elétrica tem-se então por aperfeiçoado, por força de atração do que dispõe o art. 116, do CTN, no momento em que ela é entregue no ponto de conexão do sistema elétrico com as instalações da unidade consumidora, tal como dispõe o art. 135, do Decreto nº 41.019/57, com a redação que lhe deu o art. 1º, do Decreto nº 86.463/81, que a agência reguladora do sistema elétrico, por sua vez, estabelece deva situar-se no limite da via pública com o imóvel em que se achar localizada (Art. 9º, da Resolução nº 456/2000, da ANEEL) .

Com a entrega da energia no ponto de conexão pode-se, ademais, identificar, com a precisão necessária, o consumidor da energia elétrica, com o que estaria atendida a capitulação constitucional, que é a realização de operação de circulação de mercadoria, considerando-se, a partir de então, satisfeita a prestação a cargo da distribuidora e cessando, a partir daí, sua responsabilidade pela prestação do serviço (Res. ANEEL nº 456, art. 2º, XXVI), mesmo porque, segundo o art. 481 do Código Civil, embora o primeiro efeito da compra e venda seja a transferência do domínio, este não se opera pelo contrato, mas pela tradição da coisa.

E não é por outra razão que, para Ives Gandra da Silva Martins, a geradora e o comprador "devem considerar como fato gerador do ICMS o local da disponibilidade de energia, de acordo com o ajustado nos contratos" (RDA nº 225) que, de resto, simplesmente se contentam por reproduzir o que dispõe a norma editada pela ANEEL.

Visto o tema sob esse ângulo de análise, tão só a colocação da energia elétrica à disposição do consumidor no ponto de entrega já é suficiente para aperfeiçoar-se o fato gerador do imposto, visto que, segundo o autorizado magistério de Geraldo Ataliba e Cléber Giardino, a circulação a que se refere o texto constitucional implica a transmissão de um conjunto de direitos que, no mínimo, dê ao transmitido poderes de disposição sobre a coisa, pois "convenciona-se designar por titularidade de uma mercadoria a circunstância de alguém deter poderes jurídicos de disposição sobre a mesma, sendo ou não seu proprietário (disponibilidade jurídica). Esse fenômeno é que importa, no plano do ICM" (Núcleo da Definição Constitucional do ICM, RDT 25/26).

Por isso, asseguram, o conceito constitucional de circulação jurídica é mais amplo do que a simples transferência de domínio, tal como compreendida pelo Direito Privado. Segundo eles, há circulação, aperfeiçoando-se o fato gerador do imposto, também quando alguém recebe direitos de disponibilidade (poder de dispor) sobre uma mercadoria, situação essa, no caso, perfeitamente caracterizada, a partir do momento em que a energia elétrica, na potência contratada, é entregue no ponto de conexão, ficando, a partir daí, à disposição do adquirente, a quem cabe retirá-la, pois, nos termos da lei civil, em princípio é o destinatário que tem o ônus de buscar a coisa transportada após desembarcada no local de destino, segundo ensina Caio Mário da Silva Pereira (Instituições de Direito Civil. Forense, 11ª edição, vol. III, pág. 335).

Por conseguinte, como se trata de um bem móvel por ficção legal, essas considerações levam a compreender o fato da entrega da energia elétrica no ponto de conexão como decisivo critério de imputação temporal da operação tributável que, assim, ter-se-á por acontecida nesse instante, considerando-se, desde então, ocorrido o fato gerador do imposto e existentes seus efeitos, dando origem à obrigação tributária correspondente.

Base de cálculo do imposto

Por outro lado, a correta determinação da base impositiva do imposto incidente sobre a energia elétrica pressupõe o exame da compatibilidade dos elementos considerados (demanda contratada e energia consumida) com a hipótese de incidência do ICMS, uma vez que se trata de inclusão, naquela, de um elemento utilizado para a formação do preço da tarifa cobrado do consumidor de energia elétrica.

Por outro lado, em tema de determinação da base de cálculo do ICMS sobre o fornecimento de energia elétrica, existe manifesta impossibilidade de pretender-se excluir um dos componentes da tarifa binômia, para fins de determinação do valor devido, uma vez que o imposto incide é sobre o valor da operação e não apenas sobre o valor da quantidade de energia absorvida pelo estabelecimento consumidor.

Nesse sentido, dispõe o art. 13, da Lei Complementar 87/96, que a base de cálculo do imposto é, na saída de mercadoria prevista no inciso I, do artigo 12, o valor da operação (inc. I), isto é, o valor do negócio jurídico de que resulta a venda da energia elétrica, que, desde o tempo em que gerou eficácia o art. 34, § 9º, do ADCT, corresponde ao preço praticado na operação final, por compreender todos os custos incorridos desde sua produção, pela empresa geradora, até sua entrega ao consumidor, e não apenas o valor da quantidade de energia elétrica consumida, isoladamente considerado, como muitas vezes se afirma, uma vez que o valor da operação pode e deve  comportar, como no caso, a inclusão de todos os demais custos incorridos. Por isso, dispõe seu § 1º, II, "a", do art. 13, da LC nº 87/96, que integra a base de cálculo do imposto o valor correspondente a seguros, juros e demais importâncias pagas, recebidas ou debitadas, o que dá uma exata idéia do campo residual de abrangência da base impositiva do imposto.

Aliás, o art. 9º, da LC nº 87/96, contém idêntica previsão, quando autoriza a atribuição da responsabilidade pelo recolhimento do imposto à empresa geradora ou distribuidora de energia elétrica, hipótese em que o cálculo do imposto deverá também ser efetuado sobre o preço praticado na operação final, que compreende os custos antecedentes com a geração, transmissão e distribuição. O tributo estadual não recai, assim, apenas sobre o valor adicionado na última etapa, como querem alguns, mas sobre o valor agregado em todas as etapas anteriores.

Por conseguinte, diante do cuidado do legislador em estabelecer a grandeza econômica do fato gerador do ICMS, sua base de cálculo não pode, por construção jurisprudencial, sofrer limitações que a restrinjam ao mero valor da energia elétrica consumida, como se o fornecimento do insumo não implicasse custos outros que se incorporam naturalmente ao preço da tarifa cobrada pela concessionária, de que constitui exemplo típico o valor da demanda contratada, mesmo porque o "valor da operação" é bem mais amplo que o valor da quantidade de energia elétrica consumida, a revelar, portanto, a existência de uma relação entre o continente e seu conteúdo.

Aliás, em hipótese assemelhada, o Supremo Tribunal Federal reputou ilegítima a exclusão do encargo financeiro incorporado ao valor de venda mercadoria da base de cálculo do imposto, pois, para a Suprema Corte, sendo único o negócio jurídico, o valor da operação, para o propósito da determinação da obrigação de pagamento, haverá de considerar o encargo financeiro compreendido no preço da mercadoria (ADI 84/MG, Relator MIn. Ilmar Galvão). A jurisprudência do STJ, no particular, não discrepa (AgRg no AG 862.500; AgRg no REsp nº 818.173, entre inúmeros outros).

Ora, se a base de cálculo do imposto é o valor da operação, o valor da energia consumida, isoladamente considerado, revelar-se-ia então insuficiente para traduzir o valor real do negócio jurídico subjacente, que pressupõe a incorporação de todos os elementos que são adicionados ao custo da mercadoria, para formação do preço final.

Assim, somente a inclusão de ambos os custos do fornecimento da energia elétrica na base de cálculo do imposto atende a correlação lógica que deve existir entre o fato gerador e o montante sobre o qual deve incidir o imposto, o que permite possa a base imponível resultar de ambos os elementos que integram o mesmo e único elemento material, de modo a afirmar, com isso, a objetividade do critério adotado.

Sendo assim e como a base de cálculo lógica e típica no ICMS, na hipótese de energia elétrica, é o valor de que decorrer sua entrega ao consumidor, este valor outro não poderá ser, por conseguinte, senão aquele que constituir objeto da fatura emitida pela concessionária, por abrigar naturalmente todos os custos incorridos desde a geração até a entrega do produto, residindo aí o motivo pelo qual a base de cálculo deve ser o quantum destacado na nota fiscal/fatura, eis que "O ICMS deve incidir sobre o valor real da operação, descrito na nota fiscal de venda do produto ao consumidor" (AgRg/REsp nº 625.001, Relator Min. Castro Meira).

No caso, a expressão financeira da base impositiva do ICMS, dimensão da materialidade da sua hipótese de incidência, é naturalmente revelada na fatura de venda do produto, documento representativo da mudança da titularidade da energia elétrica e versão documental, que a operação subjacente tem por forma de materialização, onde são discriminados os valores das tarifas aplicadas sobre os componentes do consumo e do fluxo da potência utilizada, elementos quantificadores da operação relativa à circulação da energia elétrica.

Por outro lado, há que se afastar, insista-se, o entendimento de que a hipótese comportaria a incidência do imposto sobre a mera aquisição de energia elétrica para formação de uma reserva, contratada que seria pelo consumidor com o único propósito de prevenir-se do risco de ser surpreendido pela eventual insuficiência de energia, como equivocadamente já se afirmou alhures, deixando entender, com isso, que a energia elétrica poderia ser adquirida para ser armazenada, o que, para Ricardo Lobo Torres, constitui um nonsense, pois a energia não se estoca.

Como a tarifa binômia adotada para fins de determinação da remuneração devida à concessionária comporta dois componentes distintos, conclui-se pelo desacerto do entendimento que procura excluir o componente de demanda de potência de energia da base de cálculo do imposto, embora considere legítima sua inclusão no preço da tarifa, como se a demanda de potência contratada não integrasse o valor da operação, como custo que é do fornecimento da energia elétrica consumida e ao próprio consumo não estivesse ela umbilicalmente associada.

Por conseguinte, a exclusão desse componente tarifário não se afeiçoa também à previsão inscrita no art. 13, I e § 1º, II, da LC nº 87, de 1996, devendo então o valor total do fornecimento de energia elétrica compor a base de cálculo do ICMS que, na hipótese, compreende o valor da potência contratada e o valor da quantidade de energia consumida, ambos cobrados na nota-fiscal/fatura, documento onde se demonstra a ocorrência da operação de compra e venda, expressando o valor para fins de incidência do ICMS (REsp 137.783, Relator Min. Milton Luiz Pereira), eis que, somente assim, estará traduzindo o real o valor do negócio jurídico subjacente.

Estima-se então que, com o julgamento do REsp 960.476, o Superior Tribunal de Justiça certamente deverá alterar sua jurisprudência, para assentar que a base de cálculo do ICMS, consoante aliás, dispõe o art. 13, I, da Lei Complementar nº 87/96, é, efetivamente, o valor da operação, compreensivo que é de todos os custos incorridos com o fornecimento da energia elétrica, objeto da fatura emitida pela concessionária da energia elétrica fornecida.