Direito Intertemporal E Os Contratos: Da (In) Constitucionalidade Do Art. 2.035 Do Código Civil De 2002.


Porbarbara_montibeller- Postado em 03 abril 2012

Autores: 
SOUZA, João Dawson Figueiredo.

1.     NOTAS INTRODUTÓRIAS

 

     A discussão que será proposta neste trabalho é, sem dúvida, de suma importância para a compreensão principiológica do direito intertemporal em matéria de contratos.

     A pretensão das breves considerações que se far-se-ão não é, inquestionavelmente, esgotar o tema, até porque não há qualquer posicionamento do STF acerca da constitucionalidade do artigo que aqui analisaremos.

     O real objetivo da manifestação do entendimento a ser exposto não é outro senão o de lançar um olhar constitucional, porém critico e alargado, sobre um dispositivo que levanta tanta discussão na doutrina nacional.

 

2.     ENTENDENDO O ARTIGO 2.035 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002

 

     Vislumbrado o escopo do presente texto, cumpre agora levar o leitor a compreender o conteúdo do preceito normativo em questão.

     O legislador ao redigir o artigo 2.035 do NCC procurou positivar qual a melhor forma de transição entre normas relacionadas aos âmbitos de validade e eficácia dos negócios e demais atos jurídicos. Contudo, segundo alguns doutrinadores, acabou criando um problema ainda mais grave.

 

     Vejamos a dicção do artigo 2.035 do NCC:

 

 Art. 2.035. A validade dos negócios e demais atos jurídicos, constituídos antes da entrada em vigor deste Código, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045, mas os seus efeitos, produzidos após a vigência deste Código, aos preceitos dele se subordinam, salvo se houver sido prevista pelas partes determinada forma de execução.

 

     Na primeira parte do dispositivo, o legislador parece afirmar o óbvio ao prescrever que a VALIDADE dos negócios e demais atos jurídicos constituídos antes a vigência do NCC, 11 de janeiro de 2003, obedece ao disposto nas leis anteriores, referidas no art. 2.045 – Código Civil de 1916 e Código Comercial.

     Observa-se até aqui que a aplicação dessa regra encontra plena aquiescência perante a Constituição Federal, mas precisamente em seu art. 5º, XXXVI CF que se refere ao ato jurídico perfeito, ou seja, aquele já consumado, segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou ( art. 6º,§1º da LICC), a coisa julgada e ao direito adquirido.

     Já na segunda parte do dispositivo é que surgem discussões de constitucionalidade sobre a flexibilização do tal art. 5º, XXXVI CF. quando a mesma dispõe acerca da possibilidade de retroação no âmbito de EFICÁCIA dos negócios e atos jurídicos.

Sobre o tema sustenta ANTÔNIO JEOVÁ SANTOS:

 

     O legislador tentou resolver um problema óbvio e criou vários outros. A primeira parte do art. 2.035 contém o óbvio. Os atos jurídicos consolidados antes da entrada em vigor do Código Civil de 2002 estarão sob a égide da lei anterior. A segunda parte que tentou resolver problema grava e sério de direito intertemporal, não alcançou o fim desejado. Ao pretender que os efeitos dos negócios jurídicos ocorridos depois da vigência do novel Código a ele se subordinam, vulnerou o legislador o art. 5º XXXVI, da Constituição da República. (JEOVÁ SANTOS, 2003, apud GAGLIANO ; PAMPLONA FILHO, 2006, p. 301).

 

     Contudo, acreditamos não ser prudente julgar qualquer inconstitucionalidade sem entender quais os padrões de constitucionalidade utilizados para tal, e até mesmo por que a própria Lex Legum silencia quanto à possibilidade ou não de retroação da lei posterior, como bem explica MÁRCIO LA-ROCCA SILVEIRA:

 

Atualmente não há na disposição constitucional qualquer referência expressa à retroatividade ou irretroatividade da lei. Esta omissão leva os doutrinadores a discussão de qual seja o princípio atualmente vigente, questão que não se restringe somente ao meio acadêmico, tendo imensos efeitos práticos.

            Com efeito, ao adotar o princípio da retroatividade, qualquer lei, implicitamente ou não, atingiria fatos passados, salvo, é claro, se viesse a prejudicar direito adquirido, ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Assim como, nestes casos, a retroatividade não vingaria somente quando estivesse disposição normativa expressa em contrário. Por outro lado, entendendo como princípio vigente o da irretroatividade, a lei nova somente poderia atingir fatos passados, por disposição expressa neste sentido, ressalvado sempre aqueles três institutos. O que resta indiscutível é que a lei nova é irretroativa quanto a possibilidade de atingir os direitos adquiridos, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada.

Há que se ressaltar, também, que seja qual for a regra no direito pátrio, não há como adotar um princípio absoluto de que a lei é totalmente irretroativa ou é completamente retroativa.

            Ante a omissão constitucional quanto ao princípio adotado para a solução dos conflitos intertemporais das normas jurídicas, devemos nos reportar para o que diz a lei infraconstitucional sobre o assunto. Assim, a LICC, no art. 6º, afirma que a lei terá efeito imediato e geral, o que não dispõe no texto constitucional. Ora, se a lei tem efeitos a partir da sua entrada em vigor, isto é, efeito imediato, a conclusão a que se chega é que o princípio adotado no direito brasileiro é o da irretroatividade, o que não impede, excepcionalmente, que o legislador dê a novatio legis efeito retroativo, desde que, é claro, não atinja aqueles três institutos mencionados tanto na norma constitucional como na Lei de Introdução. (SILVEIRA, 2005).

 

 Faz-se mister portanto, uma análise sistêmica que busque equacionar, dentro da teoria contratual, os interesses privados aos princípios fundantes do ordenamento e seu papel enquanto orientadores de uma justiça justa.

 

3.     HERMENEUTICA CONSTITUCIONAL E O ART. 2.035 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002

 

     Entendida a mensagem disposta no artigo 2.035 do NCC, cabe neste tópico lançar um olhar para além do que se vê, ou seja, vislumbrar a norma não pelo seu conteúdo lexical, mas, e sobretudo pelo seu valor real. É preciso pois, extrair dela a hermenêutica que nos leve a compreender sua finalidade e alcance dentro do ordenamento jurídico.

 

3.1.Segurança Jurídica “stritu sensu” versus Segurança Jurídica “lato sensu”

 

     Para os que defendem a inconstitucionalidade do art. 2.035, o princípio da segurança jurídica é o argumento primeiro para tal posicionamento uma vez que, para esses operadores do Direito, a segurança jurídica é atacada ao se flexibilizar na segunda parte do dispositivo legal o ato jurídico perfeito em razão de outro princípio, quer seja o da eficácia imediata e geral da lei civil sobre os atos e negócios jurídicos.

     Entretanto, lançados esses apontamentos, julgamos necessário identificar o que se tem entendido por Segurança Jurídica e ato jurídico perfeito para que enfim se possa discutir o posicionamento a ser tomado no texto.

     Como já colocado linhas atrás, a Lei de Introdução ao Código Civil define o ato jurídico perfeito como aquele já consumado perante a legislação vigente ao seu tempo, sendo este um dos corolários, ao lado da coisa julgada e do direito adquirido, que garantem a segurança dos atos jurídicos.

     Observados esses conceitos, devem nos vir indagações acerca da estaticidade destas definições no dinamismo do mundo social e jurídico, ou seja, o que seria o ato jurídico perfeito no caso concreto? Este é sempre um pressuposto de segurança jurídica?

     Como se vem descortinando no transcorrer do tempo, não há direito absoluto. O que deve haver de absoluto no direito é sua finalidade, sua razão de existir, por isso, essa deve ser a busca incessante de cada um de nós: Qual a finalidade que se deve dar a uma norma jurídica?

     Extraídos os questionamentos necessários ao prosseguimento de nossa analise resta da-lhes respostas, não definitivas ou completas, mas, indicativos de um caminho a seguir para enveredarmos na fidelidade a padrões de constitucionalidade mais alargados e também mais justos.

     Assim, observados atos eivados de inconstitucionalidade, valores e interesses sociais relevantes - sem com isso aniquilar a autonomia privada, que por sinal encontra-se ressalvada na ultima parte do art. 2.035 do NCC-, não há por que se pensar em ato consumado de forma perfeita. De fato a consumação ocorreu, porém, será que foram respeitados à época de constituição os requisitos de existência e validade que caracterizam elementos essências dos contratos? Se não, por dicção do próprio preceito normativo caberá a lei civil ou comercial anteriores, declarar a nulidade ou anulabilidade do ato. Até aqui, visto o vicio (de existência ou de validade) contido no ato, parece o entendimento está decantado na doutrina. Contudo, não estando consumados os efeitos advindos do ato, se os mesmos se protraíram no tempo, e não foi prevista forma determinada de execução pelas partes, não se pode vislumbrar a impossibilidade de o novel Código reger os efeitos do ato que adentrarEm ao seu tempo de vigência. Veja sobre o tema a contribuição de MÁRCIO LA-ROCCA SILVEIRA à luz de doutrinadores de renome:

 

Conforme Pontes de Miranda,

          o ato jurídico perfeito é fato jurídico, que tem o seu momento-ponto, no espaço-tempo: entrou em algum sistema jurídico, em dado lugar e data. O conceito é conceito do plano da existência: se ato jurídico começa de existir, aqui e agora, é porque o ato entrou no mundo jurídico aqui e agora, e a sua, juridicidade é a coloração que lhe deu o sistema jurídico, tal como aqui e agora êle é.(MIRANDA, apud SILVEIRA).

          Desta forma, o termo consumado deve ser entendido como preenchidos os elementos necessários para o nascimento deste ato, bem como dos requisitos de validade que a norma jurídica, contemporânea a este ato, obriga-lhe.

          Neste mesmo sentido, segundo Celso Ribeiro Bastos:

          O ato jurídico perfeito é imunizado contra as exigências que a lei nova possa fazer quanto à forma. Assim, se alguém praticou um ato de doação, respeitando as previsões legais vigentes à época, este ato ganha condições de perdurabilidade no tempo, ainda que as condições para a sua prática já sejam outras à época em que ele for feito valer. Por tanto, é algo que diz muito mais respeito à forma do que à substância ou conteúdo.. (BASTOS, apud SILVEIRA).

          Assim, considera-se já consumado quando, não obstante tenha ou não gerado efeitos, o ato seja válido, pois ele pode ser válido sem que tenha eficácia, neste caso será ato jurídico perfeito. Se o ato é inválido não há que se cogitar de proteção, com mais razão se ele for inexistente. Se for ato anulável e, portanto, possível de ratificação ou decadência, somente depois da realização destas poder-se-á falar em ato jurídico perfeito, pois é a partir daí que o ato se torna válido.

          Sustentando o acima afirmado, Marcos Bernardes de Mello leciona: validade, no que concerne a ato jurídico, é sinônimo de perfeição, pois significa a sua plena consonância com o ordenamento jurídico.(MELLO, apud SILVEIRA). Em nota a esta afirmação, continua o autor, referente ao conceito dado pela LICC: ao definir ato jurídico perfeito (...) tem como pressuposto da perfeição a sua validade, uma vez que, se inválido, o ato não se poderá considerar consumado segundo a lei (MELLO, apud SILVEIRA).

          Destas afirmativas, têm-se como corolário que os atos condicionais, embora ineficazes, são considerados atos jurídicos perfeitos, como, por exemplo, o testamento feito sob a égide da lei anterior, antes da abertura da sucessão. (SILVEIRA, 2005).

 

     Nesse diapasão, é preciso que se compreendam os requisitos de eficácia dos negócios jurídicos enquanto elementos acidentais dos mesmos, sem é claro ignorar sua presença, como bem preleciona MAURÍCIO GODINHO DELGADO:

 

“Elementos acidentais do contrato são aqueles que, embora circunstanciais e episódicos no contexto dos pactos celebrados, alteram-lhes significativamente a estrutura e efeitos, caso inserido em seu conteúdo.” (DELGADO, 2006, p. 506).

 

     Contudo, pouco importa a classificação dada pela doutrina quanto aos elementos dos contratos, se essenciais ou acidentais. Relevante, no entanto, é o conteúdo de tais elementos e sua repercussão na vida dos contratantes, como bem anota o supracitado autor, uma vez que, extrapolados os limites da autonomia privada, “nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos” (PARÁGRAFO ÚNICO do art. 2.035 do NCC).

     Compreendida a posição firmada acima, questionaria o leitor atento: e quando preceitos de ordem pública são contrariados, não por convenções, mas, pelo novel diploma legal? Nesses casos, valendo-se da máxima defendida no direito constitucional, que afirma segundo a concepção de Robert Alexy, serem os princípios normas amplíssimas que abarcariam o conteúdo descrito nas regras jurídicas, caberá ao interprete do direito civil introduzir tal conceito à problemática aqui enfrentada, o que significaria dá eficácia a segunda parte do art. 2.035 até onde lhe permitisse o conteúdo dos princípios da boa fé, da função social dos contratos entre outros incorporadores da temática ali tratada.

     Cabe-nos, portanto, reconhecer não o erro do preceito legal, mas, a falta de visão daqueles que não acordam para os princípios restringentes à aplicação da regra legal.

     Nessa perspectiva, devemos ser fieis ao principio da segurança jurídica em seu sentido amplo, ou seja, aquele que esteja em sintonia com o caso concreto e não com fórmulas preestabelecidas e imutáveis, que possa garantir a boa-fé e a função social do contrato como bem preleciona o PARÁGRAFO ÚNICO do art. 2.035 e que acima de tudo estabeleça no contrato das partes uma relação jurídica justa para ambas, pois este é e sempre será a finalidade do bom direito.

     Se desgrudarmos os olhos da norma e lança-los ao ordenamento jurídico, veremos que a consumação perfeita de um ato jurídico, especialmente em matéria contratual, será aquela definida pela autonomia privada em obediência aos princípios da boa-fé e da função social dos contratos, que embora exaltados somente no Código Civil de 2002 nunca deixaram de equacionados refletirem, para interpretes de senso apurado, um bom direito e por conseguinte uma relação mais justa para cada caso.

     No entanto é bom que se compreenda que não se quer com tal posicionamento construir regras, para atos por vezes excepcionais. O que se busca é simplesmente um afastamento de interpretações restritivas e uniformes a fim de que passemos - e exaustivamente repito em outros termos, o já indicado neste texto – a enxergar em cada caso suas peculiaridades. Sobre o tema preleciona PABLO STOLZE E RODOLFO PAMPLONA:

 

(...), a jurisprudência, pondo de lado a pureza técnica, mas escudando-se na equidade, cuida de admitir a retroatividade dos efeitos de uma lei civil, tendo em vista a relevância dos interesses em jogo ou da proporia hipossuficiência econômica da parte. Em tais casos, a retroatividade se justificaria, em atenção ao principio da proporcionalidade. Como exemplos de tais situações, de constitucionalidade duvidosa, mas de inegável justiça, citem-se: a Súmula 205 do STJ, que admitiu a aplicação da Lei n. 8.009/90 (Bem de Família) às penhoras efetivadas antes mesmo de sua vigência, e, bem assim, recente decisão do mesmo tribunal que admitiu o reconhecimento de união estável antes da vigência da Lei n. 8.971/94, com a possibilidade de fixação de alimentos à companheira necessitada. (GAGLIANO;PAMPLONA FILHO, 2006, p. 299).

 

     Assim, mesmo que retroativos os efeitos de um contrato, esses deverão se coadunar com sua função social e por obvio com a boa-fé das partes, que inegavelmente têm que estar intimamente relacionadas com o respeito a uma segurança jurídica compreendida “lato sensu”.

     Vale, nessa altura de nossa reflexão assinalar, em resumo, os caminhos trilhados por nós até aqui: salientamos peremptoriamente a extrema necessidade de, na sociedade massificada e desigual em que vivemos, dinamizar os conceitos jurídicos existentes com o intuito de abarcar a maior parcela possível dos casos concretos e garantir assim a estabilidade das relações jurídicas nessa sociedade, estabilidade essa que se refletiria, não na utilização cega de fórmulas imutáveis – que ademais mostramos não estarem sendo feridas pela interpretação aqui proposta -, e sim, na confiança dos membros do Estado em um Direito que encontra no primado da Justiça o seu verdadeiro ponto de equilíbrio.

 

4.     CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

     Em face do exposto, concluímos por reafirmar a importância da hermenêutica jurídica na definição concreta do que é ou não é justo.

     Nesse diapasão, o interprete da norma tem duas formas de agir: ou opta, em ralação a segunda parte do art. 2.035, por uma avaliação restrita do conceito de constitucionalidade e assim declara-a inconstitucional em razão do art. 5º, XXXVI CF; ou prefere equacionar princípios e ponderar interesses nos casos concretos, acreditando estarem suas ações em sintonia com uma interpretação constitucional socializante, imprescindível ao enfrentamento das querelas impostas por uma sociedade de massas repleta de desigualdades e que exige do direito a resolução satisfatória e justa dessas questões. Posicionamento este ao qual me filio.

 

 

5.     REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 5. ed. São Paulo: LTr, 2006.

 

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil, Vol IV: Contratos, Tomo I: Teoria Geral. 2. ed. rev., atual. e reform. São Paulo: Saraiva, 2006.

 

MACHADO, Carlos Augusto Alcântara. Direito Constitucional. São Paulo: RT, 2005.

 

SILVEIRA, Márcio La-Rocca. A Constitucionalidade do art. 2.035 do Código Civil à luz do Direito Intertemporal e da Teoria dos Fatos Jurídicos. Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=6843. Acesso em 02. mai. 2007.

 

VADE MERCUM SARAIVA: obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração do Antonio Luiz de Toledo Pinto, Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt e Lívia Céspedes. São Paulo: Saraiva, 2006.