JUSTO TÍTULO DE PROPRIEDADE - ESSE DESCONHECIDO


PorEulampio- Postado em 17 setembro 2013

Autores: 
EULÂMPIO RODRIGUES FILHO

 

JUSTO TÍTULO DE PROPRIEDADE – ESSE DESCONHECIDO

 

 

Eulâmpio Rodrigues Filho

Doutor em Direito pela UMSA, de Buenos Aires

Ex-professor da Uniube e da Unirp

Advogado

 

 

Existem casos, em que o demandante busca solução para legitimar ou defender interesses relativos a imóveis, alegando «o justo título», sem oferecer escritura pública ou registro próprio.

 

Isto sói acontecer em procedimentos versantes sobre usucapião ordinário e sobre embargos de terceiro.

 

Amiúde a contraparte oferece resposta solicitando decretamento de inépcia da petição inicial, por tratar de causa via da qual buscam-se direitos sobre bem de raiz sem exibição de certidões de escritura pública de aquisição e do registro imobiliário correspondente.

 

Não raro a matéria contestacional, nesses termos é acolhida, vez que, face à exigência das solenidades de estilo, para a comprovação da titularidade dominial, acaba parecendo absurdo o oferecimento de papéis particulares sem cumprimento de qualquer requisito que não sejam a data, assinatura e indicação do objeto.

 

Equívoco esse que cresce, na sentença judicial que, ao fundamento da contestação (falta de título registrado), adere outras razões, como a de que não há como aferir a data do recibo relativo à compra do imóvel, por falta de reconhecimento de firmas lançadas no instrumento particular e informal de venda. E vai por aí.

 

Evidente que a tese exposta pela parte adversa, se acolhida na sentença, e eventual tese acrescentada através desta por ocasião do julgamento, podem revelar que ao curso do processo houve desprezo ou esquecimento de institutos jurídicos de supina importância.

 

Nota-se que o próprio Magistrado procurou num determinado caso, apurar a «veracidade da afirmação» de embargantes de terceiros, de que haviam adquirido o imóvel, designando para tanto produção de provas oral e documental, mas no julgamento sustentou que o material probatório trazido aos autos não convenceu o douto prolator, da ocorrência do ato/fato. Diz, então, relativamente ao tema, a sentença sugerida:

 

«Foram apresentados pelos embargantes cópia de um documento denominado ‘REBIBO/DECLARAÇAO’ ..., datado de ... de setembro de 1984, do qual consta a informação de que ... e ... teriam realizado a venda aos embargantes do prédio localizado à Avenida ...

«Contudo, de nenhum desses documentos consta reconhecimento de firmas ou registro, o que poderia trazer convencimento de que foram verdadeiramente emitidos nas datas que deles constam. Em outras palavras, não existem prova de que os aludidos documentos foram redigidos nas datas que foram indicadas em seu teor. (...)» (Gr.).(«Sic»).

 

Ao que extrai dessas assertivas, dizemos: constata-se que o papel da sentença não foi o de julgar a causa, mas simplesmente o de rejeitar a causa mediante desprezo à prova pelo próprio douto prolator, vez que o embargado não colocou em dúvida em momento algum a autenticidade material e ideológica da prova. Não opôs qualquer dúvida quanto aos contratos de locação celebrados pela embargante com terceiros, e nem quanto aos documentos autenticados pela Egr. Junta Comercial em 1987, e, no geral, não demonstrou dúvida quanto à autenticidade de qualquer documento, vez que indicou como defesa tão somente falta de título público de propriedade registrado no CRI.

 

Prossegue afirmando a sentença referida:

 

«Também foi produzida prova oral, a qual não se mostra suficiente para convencer acerca da propriedade alegada, pois se mostra isolada, não existindo um razoável início de prova documental acerca do pertencimento do bem aos embargantes.»

 

Todavia, sem um mínimo de oposição mesmo do Magistrado, as testemunhas afirmam:

 

«M (...) :

«Compromissado e advertido da forma da lei, às perguntas respondeu:‘Que conhece os embargantes há 30 anos, que a embargante ... iniciou o comércio no endereço do prédio localizado na Avenida ... em 1984 mais ou menos; que não sabe dizer o nome do antigo proprietário, mas ele era conhecido como J.; que a depoente não sabe dizer por que a compra não foi registrada em cartório; que segundo informações do ... e da ..., que a depoente não chegou a ver a escritura; que não viu contrato particular de compra e venda’.

«Dada a palavra ao procurador dos embargantes, assim respondeu:

«Que pelo que sabe os embargantes nunca sofreram ação judicial em que buscassem a posse do imóvel; que atualmente o imóvel é alugado, que ... era quem fazia a manutenção no prédio quando precisava de reparos; que ... é considerado pessoa idônea na comunidade de ...»

 

«J (...):

«Compromissado e advertido na forma da lei, às perguntas respondeu: ‘Que conhece os embargantes da cidade de ..., não reside próximo à casa dos embargantes; que os autores residem no imóvel da Rua ... há mais de 30 anos; que segundo comentário o ... teria vendido esse imóvel aos embargantes; que a compra e venda foi contrato de ‘gaveta’ e os embargantes tomaram posse logo em seguida; perguntado ao depoente porque a compra e venda não foi registrada em cartório ou se sabia se havia uma penhora da ..., respondeu: ‘isso não sei’.»

«Dada a palavra ao procurador dos embargantes, assim respondeu:

«Que o contrato de gaveta seria sistema para oficializar a compra e comprovar a transação;que o imóvel a que fez referência é comercial; que ... após a posse do imóvel passou a comercializar plantas, arranjos e móveis usados no local; que atualmente ... alugou o imóvel; que a posse e propriedade do imóvel em relação aos embargantes é questão pacífica na cidade de ...; que ... o a que fez referência é conhecido como ..., não sabe dizer se o primeiro nome é ...; que ..., pessoa cumpridora de seus deveres; que ... nunca reclamou a posse do imóvel aos embargantes; que os embargantes sempre cuidaram do prédio e mantiveram com boa aparência por ser prédio comercial e bem localizado;» (...).

 

Observe que o embargado sequer compareceu à audiência em que foi produzida a prova oral.

 

Em nenhum momento o embargado contraditou as testemunhas ouvidas e nem apontou um vício sequer eventualmente existente no contexto de suas declarações, aparecendo só a sentença afirmando ser insuficiente a prova por falta de «razoável» começo de prova documental acerca da aquisição do bem em evidência.

 

Fundamentos da tese jurídica

 

Conforme demonstrado, não padece dúvida de que o embargado, ao sustentar toda sua defesa em ausência de título registrado no CRI na comprovação do direito junto à petição inicial, e a legitimar a propositura, relegou aspecto jurídico de inescondível relevância, tendo a sentença, todavia, dado como procedente a tese inopiosa do embargado mediante acréscimos como será analisado infra.

 

Inicia-se afirmando que não há contestação e nem prova que desmereçam a autenticidade do «documento» singelo, comprobativo da transmissão do imóvel aos embargantes.

 

Não houve, por outro lado, qualquer impugnação à prova oral (testemunhal) sem mácula aceita pelo Juízo e que confirma o conteúdo do documento.

 

De ser lembrada a asserção da sentença, de que a prova oral não teve o condão de convencer, face a ausência de começo de prova por escrito. Questão não ventilada (CPC, arts. 402 e 128 e 2º).

 

Todavia, no caso em evidência o regime probatório é outro, relegado ao esquecimento, conforme indicado claramente na petição inicial.

 

Realmente, o embargado, ao reclamar prova através de título registrado no CRI deslembrou-se de que, quanto ao exercício possessório para efeito de oposição de embargos, ou para outros fins, é irrecusável o valor que a Lei atribuiu ao «justo título», o que em verdade foi invocado «expressamente» na Petição Inicial.

 

Todavia, o mero exercício possessório por 10 (dez) anos a qualquer título, autoriza a oposição de embargos de terceiro viáveis, e no caso, ainda que não houvesse documento algum, demonstrado o exercício da posse, que só se prova terminantemente por testemunhas (Cfr. Prof. Dr. José Augusto César, da USP, em suas «Preleções»), o direito de ação relativa aos Embargos de Terceiro seria irrecusável.

 

Isto, por força da disposição do art. 1.048 do CPC, que a contestação e a sentença relegaram.

 

A seu turno, o art. 1.201, par. ún. do Código Civil determina:

 

«Art. 1.201 (...)

«Par. ún. O possuidor com justo título tem por si a boa-fé, salvo prova em contrário, ou quando a lei expressamente não admite essa presunção.»

 

«Ut» se vê dos autos, não há qualquer prova carreada aos mesmos, que traga desvalia à higidez do direito dos embargantes, que pelo tempo decorrido são amparados inclusive pela prescrição aquisitiva, indestrutível quando ocorrida.

 

Mas o que vem a ser esse justo título desenganadamente ignorado nos autos?

 

A doutrina esclarece de maneira exaustiva e indesmentível:

 

«Justo título ‘A justiça do título é, portanto, a adequação do ato inválido ao tipo de negócio hábil para dar ensejo à transferência do domínio (ou do direito real suscetível de se adquirir por usucapião). Constituem, assim, títulos justos a compra e venda, a doação, a troca, o apoderamento de coisa móvel (ocupação), a constituição de enfiteuse, de usufruto ou de servidão aparente, a dação em pagamento, a procuração em causa própria que contiver os elementos da compra e venda, o contrato de sociedade relativamente à constituição do sócio para o patrimônio da sociedade, as sentenças que adjudicam bens – desnecessário dizer, sempre inquinados, estes atos, de ilegitimidade. A sucessão, que é modo de transferência da propriedade, é, pois, justo título, obviamente a sucessão oriunda de testamento inválido, assim a sucessão a título universal como a sucessão a título singular. (...) Não se faz mister repetir que é indispensável seja ilegítimo o título justo: se legítimo fosse, a propriedade já se teria transferido em virtude dele; o conceito de justo título não teria o menor relevo, assim como nenhum relevo teria o usucapião, que passaria a ter por objeto a aquisição de um direito real já adquirido. A ilegitimidade do título é, portanto, requisito essencial do justo título.A prescrição extintiva aparece, aliás, associada a uma ilegitimidade, à lesão de um direito subjetivo; a uma aquisição a non domino, a um ato jurídico inválido, à prescrição aquisitiva (no caso do usucapião ordinário). O usucapião (ordinário), acarretando a aquisição do domínio, mediante a posse ininterrupta e o fluxo do tempo, saneia tal ilegitimidade. Esse o efeito das prescrições em geral: a aparência prolongada de uma situação jurídica ilícita acaba por torná-la legítima, ou suscetível de ser legítima. A ilegitimidade convalesce com a passagem do tempo.’ (Ebert Chamoun, Enciclopédia Saraiva do Direito, vol. 47, pp. 381 e segs., «apud» Eulâmpio Rodrigues Filho, Código Civil Anotado, Porto Alegre, Síntese, 2001, 3ª ed., pág. 637).

 

Conforme Prof. Nelson Nery e Profª Rosa Nery, CPC Coms., 8ª ed., pág. 994,

 

«Justo título. Conceito. Jornada I STJ 86:‘A expressão, justo título; contida no CC 1.242 e 1.260, abrange todo e qualquer ato jurídico hábil, em tese, a transferir a propriedade, independentemente de registro.»

 

Situação semelhante à ora comentada vem também nos ensinamentos proferidos pelos tribunais, i. e., carregando o mesmo equívoco.

 

«Assim, ainda que desprovido do registro imobiliário, há de ser o contrato feito por escritura pública para que possa ensejar a procedência dos embargos de terceiro. Os contratos juntados pelo apelante não podem ser tidos como escritura pública, pois são documentos particulares, não dados a qualquer tipo de conhecimento pelo registro público, de modo que não satisfazem os requisitos para que se seja o imóvel liberado da constrição. (TJMG, Ac de 27/10/2009, publ. em 20/11/2009, Apel. 1.0433.08.242874-2/001).

 

O mesmo acórdão prossegue na sua sustentação:

 

«Observo que o contrato em que se fundamenta a pretensão do apelado tem data de 1986, de modo que o apelado teve mais de 15 anos para levá-lo a registro e não o fez, não podendo se beneficiar de sua desídia para impedir a satisfação do crédito do apelante. Observo ainda que não haverá enriquecimento indevido da promitente-vendedora, executada pelo apelante, pois o apelado poderá pleitear contra ela perdas e danos decorrentes da evicção do bem.»

 

Ao que se vê, o fundamento tribunalício não tem aplicação ao caso, porque, cabendo em verdade a entronização do «justo título» na questão, a exigência do documento público solenizado desaparece, e a advertência levantada, de que o embargante, no caso, deixou escoar tempo superior a 15 (quinze) anos sem proceder ao registro, não podendo beneficiar-se de sua desídia para impedir a satisfação do crédito do exeqüente não prospera, pois, havendo prova do exercício da posse pelo promitente comprador ou pelo comprador com título não registrado; esse tempo, juntamente com o «justo título» dava, e dá hoje, ensanchas à busca do reconhecimento da usucapião (Código Civil, art. 1.242), cuja postergação de busca jamais leva à perda do direito, vez que a usucapião decorre do tempo transcorrido, havendo a ação declaratória pertinente apenas para titulação.

 

Para a prescrição aquisitiva a desídia é elemento favorável.

 

E, decorrido o prazo da prescrição aquisitiva não incide caducidade na ação declaratória para os fins supra mencionados.

 

Doutro lado, consigne-se que, só há ausência do direito aos embargos, se a execução em que foi realizada a penhora, for hipotecária, com garantia real registrada.

 

Finalmente, instalando debate direto entre o Mmo. Juiz e a parte, diante da falta de levantamento da questão pela contraparte, a douta sentença referida proclama:

 

«Contudo, de nenhum desses documentos consta reconhecimento de firmas ou registro, o que poderia trazer convencimento de que foram verdadeiramente emitidos nas datas que nelas constam. Em outras palavras, não existem provas de que os aludidos documentos foram redigidos nas datas indicadas em seu teor.»

 

Ao que se vê dessa exposição trazida na sentença, o Juízo encarregou-se de colocar em dúvida a data do documento, quando o embargado não se arriscou a fazê-lo, diante da clareza dos fatos e dos atos demonstrados pelas vias legais pretendidas e autorizadas pelo Mmo. Juiz, que sequer recebeu qualquer memorial, porque não fornecido, pondo em incerteza a formação do documento (justo título) que afinal veio com seu contexto corroborado por testemunhos não impugnados.

 

E esse fundamento é de crucial relevância, vez que a Lei apropositada determina o seguinte:

 

«CPC (...)

«Art. 370. A data do documento particular, quando a seu respeito surgir dúvida ou impugnação entre os litigantes, provar-se-á por todos os meios de direito. Mas, em relação a terceiros, considerar-se-á datado o documento particular:

«I - no dia em que foi registrado;

« - (...)

« - (...)

«IV - da sua apresentação em repartição pública ou em juízo;

«V - (...).»

 

Ao que se extrai do art. 370, «caput», do CPC, admite-se prova por todos os meios de direito, quando a «data do documento particular» tornar-se duvidosa ou é impugnada «entre os litigantes», e não entre uma das partes e o Juiz, ainda que através de trabalho de cerebração intensa.

 

Observe-se que no caso em referência não houve alegação de qualquer dúvida pelo embargado, quanto à data do instrumento particular de contrato celebrado entre embargantes e vendedores do imóvel, tendo surgido a tese somente na sentença que decidiu à margem dos debates, mediante violação do art. 128 do CPC, contra o «justo título», que é documento pouco conhecido, mas que goza de validez tal qual a escritura pública obediente às formalidades de estilo e levada à aquisição de solenidade.