A lesão como defeito do negócio jurídico.


Porbarbara_montibeller- Postado em 17 abril 2012

Autores: 
CAVALCANTI, Lívio Coêlho.

INTRODUÇÃO

Dentre as inovações trazidas com a entrada em vigor da Lei nº 10.406/02, destaca-se a inclusão do novo vício do negócio jurídico: a lesão (art. 157).

Ante a inovação no campo do Direito positivo, esse instituto deve ser objeto de estudos para traçar-lhe o conceito, os limites e a aplicabilidade, de modo a ensejar interpretação uniforme em território nacional, o que se enquadra plenamente no princípio da segurança jurídica.

Constituindo exceção ao princípio do “pacta sunt servanda”, que propõe a obrigatoriedade de cumprimento das cláusulas contratuais e que, durante muito tempo norteou o direito civilista brasileiro, notadamente pelo acentuado caráter individualista do Código Civil de 1916, o instituto deverá ser analisados com cautela, já que não se pode tornar a exceção em regra, sem que o próprio legislador tome essa posição.

1 DEFEITOS DO NEGÓCIO JURÍDICO

O negócio jurídico consiste em uma declaração de vontade, emitida com base no princípio da autonomia privada, com liberdade negocial e, por meio do qual, as partes disciplinam os efeitos que pretendem produzir. “O negócio jurídico é a manifestação de vontade tendente a criar, modificar ou extinguir um direito” (MONTEIRO, 2003, p. 219).

Com base no conceito acima, extrai-se facilmente que o principal elemento do negócio jurídico é a manifestação ou declaração de vontade. É o elemento estrutural, requisito de existência de um negócio jurídico.

No entanto, para a perfeita validade de um negócio jurídico, não basta a declaração pura e simples da vontade. É necessário que a mesma tenha sido idônea, consciente, em consonância com o verdadeiro querer do agente. Para Diniz (2004), a validade do negócio jurídico depende da manifestação de vontade e que esta haja funcionado normalmente.

Na lição de Pereira (2004, p. 513), “na verificação do negócio jurídico, cumpre de início apurar se houve uma declaração de vontade. E, depois, indagar se ela foi escorreita”.

Diante da própria inexistência da manifestação da vontade, v.g., quando a mesma é totalmente tolhida, não há que se falar sequer em existência do negócio jurídico.

No entanto, é possível que a manifestação de vontade tenha sido externada com “defeito na sua formação ou na sua declaração, em prejuízo do próprio declarante, de terceiro ou da ordem pública” (GONÇALVES, 2005, p. 359).

Quando o defeito se relaciona à formação ou declaração da vontade, que não corresponde ao querer do agente, seja por uma situação de ignorância, necessidade extrema ou por força de um fator externo, estamos diante de um vício de consentimento ou psíquico. O Código Civil de 1916 elencava como vícios do consentimento o erro, o dolo e a coação.

Quando a declaração de vontade corresponde ao íntimo desejo do agente, mas visa fraudar à lei ou a terceiros, estaremos diante dos vícios sociais. Esses vícios correspondem à fraude contra credores e a simulação.

O novel Código Civil, abandonando a concepção individualista em que foi elaborado o diploma antigo, e lastreando-se no tripé eticidade, sociabilidade e operabilidade, enunciou expressamente, em seu art. 157, novo instituto capaz de fundamentar a anulação do negócio jurídico: a lesão.

A maior parte da doutrina enumera esses dois novos vícios dentre os vícios do consentimento. Consoante Venosa (2003, p. 424), “ao lado dos vícios de consentimento e deles muito se aproximando, coloca-se a lesão junto do estado de perigo, que não estavam no Código de 1916, mas é disciplinada pelo Código novo”. Para Pereira:

Não é a lesão puramente um vício do consentimento (...) Residindo, pois, a lesão na zona limítrofe dos vícios do consentimento, por aproveitar-se o beneficiário da distorção volitiva, para lograr um lucro patrimonial excessivo, é sem dúvida, um defeito do negócio jurídico, embora diferente, na sua estrutura, dos até agora examinados, razão por que é chamado por alguns de vício excepcional (2004, p. 545-546).

Em que pese a lição do doutrinador, é correto elencar o a lesão entre os vícios do consentimento, pois a mesmo atinge a formação ou a declaração de vontade, distorcendo o consentimento que, em situação diversa, não se teria dado. Tal classificação restará melhor evidenciada ao longo do texto.

2 DA LESÃO

A análise do instituto deve partir da análise do texto legal e do sistema no qual está inserido. Enuncia o Código Civil:

Art. 157. Ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta.

§ 1o Aprecia-se a desproporção das prestações segundo os valores vigentes ao tempo em que foi celebrado o negócio jurídico.

§ 2o Não se decretará a anulação do negócio, se for oferecido suplemento suficiente, ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito (ANGHER, 2007, p. 206-207).

Em relação ao disposto para o estado de perigo (art. 156), vemos que o legislador conferiu à lesão uma redação mais simples e direta. Para que ocorra, basta a celebração de negócio sob premente necessidade ou por inexperiência, e que as prestações assumidas sejam desproporcionais. Não há que se falar em dolo de aproveitamento como requisito para tanto.

2.1 HISTÓRICO

Em que pese a incerteza doutrinária acerca da origem do instituto, já que alguns apontam a influência dos princípios hinduístas, bem como as regras morais trazidas pelos princípios brâmicos do Código de Manu, não se pode negar a raiz romanista do instituto da lesão.

No período clássico do Direito Romano, o instituto da lesão ainda não tinha grande repercussão, haja vista a cultura eminentemente individualista da época. Com o início da dominação cristã e seus ideais de eqüidade o instituto ganhou força. Como ressalta Lotufo:

Mas, se consultarmos a Bíblia, já no Antigo Testamento iremos nos deparar com um exemplo de venda tipicamente lesiva. Trata-se do episódio de Esaú e Jacó, da compra dos direitos do primogênito por um prato de lentilhas, realizada porque Esaú estava faminto. Tomados pela idéia de lesividade, para muitos doutrinadores, em especial da Igreja Católica, Jacó teria pecado, já que comprou tanta coisa por um preço vil (2003, p. 436).

De fato, esse instituto ganhou guarida no Direito Canônico e seus ideais acerca do justo preço, justo salário e proibição de juros, assegurando-se o equilíbrio entre a prestação e a contraprestação.

O Código Napoleônico, embora individualista, previu a lesão em vários dispositivos, mas com restrição à venda de bens de raiz em favor do vendedor prejudicado, em se tratando de menor ou co-herdeiro na partilha.

O Código Civil alemão também prevê a nulidade para o negócio jurídico fundamentado na lesão, desde que haja o dolo de aproveitamento. Previsão semelhante encontra-se no Código Civil Italiano.

No Direito pátrio, a lesão foi prevista em todas as Ordenações portuguesas que exerceram influência em nosso território. Clóvis Beviláqua, ao elaborar o Código Civil, preferiu abandonar a lesão como vício de consentimento, afastando-se da influência alemã e francesa, afirmando que o lesado teria outros meios de resguardar o seu direito, consubstanciados nos demais defeitos do negócio jurídico.

Contudo, o surgimento da lesão foi previsto, sob o aspecto criminal, na Lei de Economia Popular (Lei nº 1.521/51). “A despeito de se tratar de norma penal, a doutrina firmou entendimento no sentido de que o comportamento ilícito do agente também repercutiria na seara cível, autorizando a invalidação do contrato” (GAGLIANO, PAMPLONA FILHO, 2004, p. 372).

Na década de 90, com a aprovação do Código de Defesa do Consumidor, o instituto passou novamente a ser tutelado em sede de relações privadas, vedando o art. 51, IV as cláusulas que estabeleçam obrigações consideradas iníquas, abusivas, ou que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada.

Embora tenha havido a lacuna desse instituto em grande parte da história brasileira, a doutrina e jurisprudência, cuidou de preenchê-la, até o advento do atual Código Civil.

2.2 CONCEITO

A lesão diferencia-se dos demais defeitos do negócio jurídico por representar uma ruptura do equilíbrio contratual desde a fase de formação do negócio. É um negócio defeituoso em que não se observa o princípio da igualdade, e, no qual, não há a intenção de se fazer uma liberalidade. Não há equivalência entre prestação e contraprestação.

Traduz-se no prejuízo resultante da manifesta desproporção existente entre a prestação e a contraprestação de um negócio jurídico, em face da inexperiência, necessidade econômica ou leviandade de um dos declarantes.

São exemplos, apontados por Diniz (2004, p.428): a situação de alguém que na iminência de ter sua falência decretada, vende seu imóvel por preço bem inferior ao de mercado, em razão da falta de liquidez de recursos para saldar a dívida; daquele que, diante da necessidade de continuar a atividade, paga preço exorbitante pelo fornecimento de água, numa época de seca.

A anulabilidade do negócio jurídico em razão da lesão encontra fundamento na deformação da manifestação de vontade por fatores pessoais do contratante. Não tem relação direta com a intenção do agente em tirar proveito da necessidade do outro, o que pode ou não ocorrer no caso concreto.

Como salienta Lotufo: “os fundamentos do instituto da lesão encontram-se em valores éticos” (2003, p. 440).

Em outras palavras, a intenção do agente não é punir aquele que se beneficiou, mas tutelar o interesse do lesado, ante a manifesta desproporção da obrigação assumida, o que se coaduna ao princípio da equivalência das prestações, da boa-fé objetiva e da eticidade.

2.3 ELEMENTOS

Para que ocorra a lesão é necessária a ocorrência de dois elementos, um de ordem subjetiva e outro de ordem objetiva.

O elemento objetivo consiste na prestação manifestamente proporcional a que a parte se obriga em relação à contraprestação. Como vimos, essa desproporção tem origem na própria formação do negócio jurídico e, é nisso que se diferencia da chamada onerosidade excessiva, ensejadora da cláusula rebus sic stantibus, decorrente de eventos imprevisíveis ou inevitáveis que oneram o contrato de prestação continuada.

O primeiro problema é saber em que consiste a manifesta desproporção. Em alguns sistemas, como o italiano, a técnica consiste em tarifar a desproporção. A citada Lei de Economia Popular exigia a desproporção superior a um quinto do valor recebido em troca. No entanto, à luz de nosso sistema jurídico, a tarifação criaria uma regra inflexível, bastante inconveniente à realidade dos negócios jurídicos. A solução adotada pelo nosso Código Civil é a averiguação, caso a caso, pelo juiz, da ocorrência ou não de manifesta desproporção, ao momento da celebração do negócio jurídico (§2º do art. 157), “pois o contrato é prejudicial e lesivo no seu nascedouro” (GONÇALVES, 2005, p. 406).

O outro elemento é o subjetivo, consistente na falta de paridade entre as partes. Um dos declarantes, ao obrigar-se, encontra-se mentalmente tolhido por uma situação de inexperiência ou premente necessidade. Não basta a ocorrência da desproporção, mas é necessário o nexo de causalidade entre a situação subjetiva (motivo determinante) e a assunção do negócio manifestamente desvantajoso (elemento objetivo).

A premente necessidade a que alude a lei, não é a situação de miséria, nem aquela dependente da capacidade econômica do indivíduo. A necessidade tem base econômica e reflexo contratual. Consiste numa situação extrema que impõe ao necessitado uma rápida solução e que consiste na inevitável celebração do negócio jurídico. É a necessidade contratual, ou seja, relacionada à impossibilidade de evitar o contrato.

“A inexperiência também deve ser relacionada ao contrato, consistindo na falta de conhecimentos técnicos ou habilidades relativos à natureza da transação” (GONÇALVES, 2005, p. 407). É a falta de habilidade para o trato nos negócios, o que não quer dizer falta de instrução ou de cultura em geral.

Para que se configure a lesão, não há a necessidade do chamado dolo de aproveitamento, que é aquele intuito da parte de aproveitar-se da necessidade ou falta de experiência do declarante na celebração do negócio manifestamente vantajoso. Diante disso, diz-se que a lesão é objetiva. Tal é o entendimento do Conselho da Justiça Federal, expresso em seu enunciado nº 150: “A lesão de que trata o art. 157 do Código Civil não exige dolo de aproveitamento”.

Com efeito, entende-se que o objetivo da norma não é punir aquele que maliciosamente se aproveita de outrem, mas sim, proteger o lesado, que tem o seu consentimento turbado por situação peculiar que lhe afeta, qual seja, a premente necessidade ou a inexperiência.

Assevere-se que o magistrado deve se atentar às condições pessoais do declarante, ao momento da celebração do negócio, para aferir a premente necessidade ou inexperiência. Se a “desvantagem contratual decorre exclusivamente da desídia de quem contratou, inserindo-se na própria álea contratual, não há falar-se em invalidação do negócio, em respeito ao princípio da segurança jurídica” (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2004, p. 377).

2.4 EFEITOS

Consoante dispõe o art. 178, II do Código Civil, é anulável, no prazo de quatro anos, o negócio jurídico celebrado em situação de lesão, contados a partir de sua celebração. Trata-se de prazo decadencial, como prevê o texto legal.

Embora preveja a anulação, o diploma legal prevê a hipótese de preservação do contrato em seu parágrafo segundo, acaso seja oferecido suplemento suficiente ou se a parte favorecida concordar com a redução do proveito.

Portanto, ao lesado, caberá a opção de requerer judicialmente a anulação do contrato ou a sua revisão. No entanto, como a própria lei assevera, é facultado ao beneficiado a possibilidade de preservar o negócio jurídico, mediante a suplementação ou a concordância em reduzir o proveito, elidindo, assim, o pleito anulatório.

Assevere-se que assim entende o Conselho da Justiça Federal, cujo enunciado nº 149 assim dispõe:

Em atenção ao princípio da conservação dos contratos, a verificação da lesão deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial do negócio jurídico e não à sua anulação, sendo dever do magistrado incitar os contratantes a seguir as regras do art. 157, § 2º, do Código Civil de 2002.

De tal sorte, deve prevalecer a segurança jurídica. Ora, a lesão prevista no Código Civil tem como base a objetividade, ou seja, prescinde do dolo de aproveitamento, o que, para alguns era o óbice para a convalidação do negócio mediante a aplicação do §2º do art. 157 em relação ao estado de perigo. Com muito mais razão, dada a presunção de boa-fé do favorecido  - que pensa estar fazendo um excelente negócio -, o negócio só deve ser anulado em última hipótese. Se o defeito do negócio era basicamente a manifesta desproporção entre as prestações, convém conferir-lhe validade mediante o ajustamento das mesmas, de modo que o negócio deixe de ser iníquo.

2.5 JURISPRUDÊNCIA SOBRE A LESÃO

Abaixo, elencamos algumas ementas de decisões judiciais que versam sobre a lesão do art. 157 do Código Civil:

PROCESSUAL CIVIL, CIVIL E CONSUMIDOR. FUNDAMENTO DO ACÓRDÃO NÃO IMPUGNADO. SÚMULA 283/STF. HARMONIA ENTRE O ACÓRDÃO RECORRIDO E A JURISPRUDÊNCIA DO STJ. SÚMULA 83/STJ. FUNDAMENTAÇÃO. DEFICIENTE. SÚMULA 284/STF. CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS ADVOCATÍCIOS. CDC. INAPLICABILIDADE. LESÃO. ART. 157 DO CC/02. REQUISITOS. NECESSIDADE PREMENTE OU INEXPERIÊNCIA.

- No particular, inexistindo circunstância geradora de onerosidade excessiva, o equilíbrio entre os encargos assumidos pelas partes deve ser analisado à luz da situação existente no momento da celebração do acordo e não a posteriori. É evidente que, depois de confirmada a improcedência dos pedidos formulados nas reclamações trabalhistas objeto da ação de cobrança ajuizada pela sociedade de advogados, pode considerar-se elevado o valor dos honorários, correspondente a um quarto da pretensão dos reclamantes. Todavia, deve-se ter em mente que, no ato da contratação, existia o risco de a recorrente ser condenada ao pagamento de todas as verbas pleiteadas, de sorte que a atuação da recorrida resultou, na realidade, numa economia para a recorrente de 75% do valor dessas verbas.

- A existência de fundamento do acórdão recorrido não impugnado – quando suficiente para a manutenção de suas conclusões – impede a apreciação do recurso especial.

- O acórdão recorrido que adota a orientação firmada pela jurisprudência do STJ não merece reforma.

- A ausente ou deficiente fundamentação do recurso importa em seu não conhecimento.

- O CDC não incide nos contratos de prestação de serviços advocatícios. Precedentes.

- O art. 157 do CC/02 contempla a lesão, que se caracteriza quando uma pessoa, sob premente necessidade ou por inexperiência, obriga-se à prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta. O referido instituto não se aplica à hipótese dos autos, de celebração de contrato de prestação de serviços advocatícios por sociedade anônima de grande porte. Além de não ter ficado configurada a urgência da contratação, não há de se cogitar da inexperiência dos representantes da empresa. Ademais, a fixação dos honorários foi estipulada de maneira clara e precisa, exigindo tão somente a realização de cálculos aritméticos, atividade corriqueira para empresários.

Recurso especial a que se nega provimento.

(REsp 1117137/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 17/06/2010, DJe 30/06/2010)

AÇÃO REVISIONAL DE CONTRATO. LIMITES À TAXA DE JUROS. TEORIA DA LESÃO. SUCUMBÊNCIA MÍNIMA DA RÉ.
1. As instituições financeiras não estão limitadas à cobrança de juros de 12% ao ano.

2. O instituto da lesão, tratado no art. 157 do Código Civil, não se presta a limitar a taxa de juros bancários livremente contratada se não demonstra a inexperiência do contratante, a sua premente necessidade do empréstimo e a abusividade da taxa pactuada.

3. Configurada a sucumbência mínima de uma parte os encargos processuais devem ser suportados integralmente pela outra, nos termos do parágrafo único do art. 21 do CPC.

 4. Recurso não provido.(Acórdão n. 565551, 20030110429258APC, Relator ANTONINHO LOPES, 4ª Turma Cível, julgado em 06/04/2011, DJ 23/02/2012 p. 831)

APELAÇÃO CÍVEL. ENSINO PARTICULAR. EMBARGOS A EXECUÇÃO. TÍTULO EXECUTIVO EXTRAJUDICIAL. CRÉDITO EDUCATIVO. BOLSA DE ESTUDOS. LESÃO NÃO CONFIGURADA. CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. INAPLICABILIDADE. INEXISTÊNCIA DE ABUSIVIDADE NAS DISPOSIÇÕES CONTRATUAIS. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. 1.Preambularmente, é preciso consignar que os serviços educacionais estão submetidos às disposições do Código de Defesa do Consumidor. 2.Contudo, na hipótese específica de crédito educativo, programa governamental instituído em benefício do estudante, sem característica de serviço bancário, é inaplicável o diploma consumerista. Precedentes do STJ. 3.Inexiste desproporção nas prestações, a gerar lucro demasiado a exeqüente, nem qualquer indício de que o embargante fosse inexperiente ou estivesse em estado de premente necessidade e, menos ainda, de que a exeqüente teria pretendido beneficiar-se destas situações. Lesão não configurada. Inteligência do artigo 157 do Código Civil. 4.A correção monetária é calculada mediante a devolução pelo bolsista do custo atual das horas-aula desfrutadas, a fim de que a instituição de ensino cubra o valor do contrato de outro beneficiário que também necessite deste tipo de crédito. Método de atualização monetária que possibilita a continuidade de concessão de novos mútuos e, conseqüentemente, a rotatividade do crédito. 5.Portanto, sob este viés não há ganho com a atualização definida neste mútuo, mas simplesmente reposição de valores para que outro estudante possa ser beneficiado com este sistema, de sorte que há a mais pura aplicação da eqüidade com o pleno atendimento aos fins sociais que se destina este tipo de contrato, o qual está consagrada no artigo 5º da LICC. 6.Não há previsão de cobrança de juros remuneratórios nos contratos em tela e, consequentemente, da capitalização destes. Ressalte-se que inexiste no feito qualquer adminículo de prova neste sentido, ônus que se impunha a parte embargante demonstrar e do qual não se desincumbiu, a teor do que estabelece o artigo 333, inciso I, do Código de Processo Civil. 7.As taxas de administração estão previstas contratualmente e não se mostram abusivas. Tal rubrica pretende resguardar a manutenção do crédito educativo. 8. A previsão de incidência sobre o montante do débito de juros à taxa de 1% ao mês e a multa moratória de 2% não são abusivas. 9.Os instrumentos particulares de concessão de bolsa rotativa de estudos, em exame, não apresentam qualquer irregularidade ou ilegalidade passível de ser corrigida pelo Poder Judiciário, ao contrário, trata-se de contratos de financiamento que tem permitido a inclusão social e o acesso de brasileiros com menor poder aquisitivo ao ensino superior, não sendo crível que alguém que se beneficiou deste sistema venha agora tentar impedir o ingresso de outro estudante nele ao inadimplir a prestação que se obrigou. 10.Verba honorária reduzida, tendo em vista a natureza da causa e o trabalho desenvolvido pelo procurador que atuou no feito, nos termos do art. 20, § 4º, do CPC. Dado parcial provimento ao apelo. (Apelação Cível Nº 70043802875, Quinta Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Jorge Luiz Lopes do Canto, Julgado em 31/08/2011)

Ementa: AÇÃO DE ANULAÇÃO DE ARREMATAÇÃO EXTRAJUDICIAL EM ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA DE BEM IMÓVEL. ALEGAÇÃO DE PREÇO VIL. CARACTERIZAÇÃO DO INSTITUTO DA LESÃO (Código Civil, 157). Alegação do preço vil não é senão o instituto da lesão, aplicável aos negócios jurídicos em geral, projetado nas disposições do Código de Processo Civil para as alienações judiciais destinadas ao pagamento do valor devido, em que o valor da alienação não pode ser sensivelmente inferior ao valor do imóvel em si. Desde que a petição inicial tenha exposto os fatos e fundamentos do pedido, propiciando a defesa, não importa a classificação que tenha dado ao pedido. Nas circunstâncias do caso, as partes demandantes, para concluir edificação de valor vultoso, tomaram emprestado valor muito menor, negócio jurídico expresso em alienação fiduciária em garantia. Com o inadimplemento das mensalidades, o imóvel foi alienado em arrematação extrajudicial pelo preço de R$ 200.000,00, servindo ao pagamento da dívida de R$ 96.000,00 e sendo posto à venda pelo arrematante por R$ 690.000,00. O instituto da lesão enorme é um instrumento de tutela do equilíbrio contratual e configura-se na desproporção dos valores negociados, desproporcionais deste a celebração do negócio jurídico, aliada à premente necessidade do devedor, que necessitava de dinheiro para concluir a construção, formalizando o imóvel como garantia por dívida muito inferior, em situação lesionária, que se concretizou com a arrematação extrajudicial. Caracterizada a situação da lesão, justifica-se a anulação da arrematação extrajudicial, que poderá se repetir em situação que não seja lesiva ao devedor. APELAÇÃO PROVIDA. (Apelação Cível Nº 70034693317, Vigésima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Carlos Cini Marchionatti, Julgado em 12/05/2010)

Percebe-se da seleção acima, que os Tribunais pátrios comportam-se de forma bastante rigorosa ao analisar a efetiva ocorrência dos requisitos que configuram a lesão, os quais dependem de robusta comprovação da urgência da contratação ou inexperiência do contratante, e da assunção de prestação manifestamente desproporcional ao valo da prestação oposta.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O direito, baseado no princípio da autonomia da vontade, valoriza a celebração de negócios jurídicos livres, condenando qualquer interferência na formação do consentimento dos contratantes, razão pela qual possibilita o reconhecimento de nulidade em contratos, decorrentes de vícios da vontade.

Dessa sorte, busca o legislador preservar os interesses daqueles que, sob premente necessidade, ou por inexperiência, obrigam-se a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta, prescrevendo a anulabilidade do negócio jurídico no prazo de quatro anos contados de sua celebração.

Na lesão, o dolo de aproveitamento não se configura como elemento essencial à configuração do tipo, ou seja, a premente necessidade ou inexperiência pode não ser conhecida da outra parte.

Resta claro que a norma visa tutelar o livre consentimento do lesado, o qual, por situação que lhe é peculiar, celebra negócio jurídico manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta, motivo pelo qual a lei permite expressamente a manutenção da validade do negócio jurídico, desde que haja suplementação suficiente ou redução do proveito da parte beneficiada.

Diante disso, não se pode negar a afronta à segurança jurídica e a boa-fé de terceiros que causaria a eventual anulação do negócio, sem a possibilidade de suplementação ou de redução do proveito. Ainda, não se pode olvidar que, a depender da situação, a anulação poderia resultar em enriquecimento sem causa, o que é rechaçado, de um modo geral, pelo ordenamento jurídico.

Trata-se indubitavelmente da aplicação do tripé principiológico sobre o qual se assenta o novel diploma civil: eticidade, sociabilidade e operabilidade.

REFERÊNCIAS

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DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. 21. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. (v. 1).

GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de Direito Civil. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. (v. 1).

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. (v. 1).

LOTUFO, Renan. Código civil comentado: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2003. (v. 1).

MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. 39. ed. São Paulo: Saraiva, 2003. (v. 1).

PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004. (v. 1).

VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito civil: parte geral. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003. (v. 1).