O DNA e suas presunções: coisa julgada e vínculo de filiação


Porbarbara_montibeller- Postado em 10 abril 2012

Autores: 
SILVA, Fernanda Tartuce

Sumário: 1. Posicionamento do tema. 2. Investigação de paternidade. 2.1. O direito ao conhecimento da ascendência biológica e a imprescritibilidade das ações de estado. 2.3. Aspectos processuais: instrução probatória. 2.3.1. Evolução do tema: o exame de DNA. 2.3.2. Presunções: art. 230 a 232 do Código Civil. 2.3.3. A Súmula 301 do STJ: presunção relativa de paternidade. 3. Coisa julgada e vínculo de filiação: hipótese de relativização? 4. Conclusão. 5. Referências bibliográficas. 1. Posicionamento do tema.

Com a evolução do reconhecimento da dignidade humana como direito fundamental do indivíduo a partir da Constituição de 1988, passou-se a ampliar cada vez mais a noção de direitos de personalidade e de sua proteção. O direito ao conhecimento do vínculo de filiação passou a ser objeto de uma outra mirada, até em virtude do dispositivo constitucional sobre a impossibilidade de distinção entre filhos de diferentes origens. Assim, segundo uma perspectiva civil-constitucional, o princípio da isonomia entre os filhos é uma diretriz fundamental a ser seguida pelo hermeneuta no estudo da matéria.

Ademais, com o avanço dos estudos tecnológicos e o alcance de uma certeza quase absoluta sobre os vínculos biológicos por meio do exame de DNA, passou a haver uma situação grave no sistema: a existência de ações com trânsito em julgado em confronto com a realidade revelada pela análise clínica. O que há de prevalecer: a verdade processual, já consagrada pelo advento da coisa julgada (também garantida constitucionalmente) ou a realidade biológica verificada anos depois (que afirma o verdadeiro estado do indivíduo)? Tais questões e vários de seus aspectos serão analisados no presente estudo.

2. Investigação de paternidade.

2.1. O direito ao conhecimento da ascendência biológica e a imprescritibilidade das ações de estado.

Exsurge de forma cristalina que, na concepção de dignidade humana, estão incluídas as noções de proteção aos direitos de personalidade e de sua mais ampla tutela. Assim, os direitos à integridade física e psicológica, à intimidade, à vida privada, à imagem e à honra constituem preceitos de relevo fundamental, a tal ponto de constarem no artigo 5o da Constituição da República.

Conhecer sua ascendência é um anseio natural do homem, que busca saber, por suas origens, suas justificativas e seus possíveis destinos. Não há como negar o direito a conhecer a verdade biológica, por sua importância enquanto direito de personsalidade.

Como bem pondera Paulo Luiz Netto Lobo, o objeto da tutela do direito ao conhecimento da origem genética é assegurar o direito da personalidade, na espécie direito à vida, pois os dados da ciência atual apontam para a necessidade de cada indivíduo saber a história de saúde de seus parentes biológicos próximos para prevenção da própria vida1.

Nos termos do artigo 1597, I a V do Código Civil, a paternidade jurídica é imposta por presunção.

Segundo Clovis Bevilacqua2, presunção é a ilação que se tira de um fato certo, para prova de um fato desconhecido.

Para Humberto Theodoro Junior, presunção é a conseqüência que se tira de um fato conhecido – provado – para deduzir a existência de outro – não conhecido, mas que se quer provar3.

Para Caio Mario da Silva Pereira, a presunção, em realidade, não é uma prova, mas um processo lógico por via do qual se alcança uma verdade legal4.

Segundo tal autor, a partir de uma divisão tradicional, podemos nos deparar com uma presunção comum ou com presunções legais.

Quanto à presunção comum (praesumptio hominis), não há previsão legal, mas seu fundamento no que ordinariamente acontece (Regulamento 737/1850, art. 187). Nos termos do art. 230 do Código Civil, só é admitida quando a prova testemunhal é permitida.

Já as presunções legais são as previsões criadas pelo direito positivo para valerem como prova do fato ou da situação assim enunciada. São resultados da experiência e correspondem ao que normalmente acontece, sendo erigidos em técnica legal probatória. Podem ser invocadas sempre que o fato possa ou deva ser provado por via deste processo. Dividem-se em presunções: absolutas (iure et de iure), em que a própria lei a admite como prova absoluta, tendo-a como verdade indiscutível. A lei presume o fato, sem se admitir que se prove em contrário (como exemplos, temos as máximas de que todos conhecem a lei, de que a coisa julgada é tida como verdadeira...); relativas (iures tantum), condicionais. Cabe prova em contrário (é o caso da comoriência)5.

Segundo Maria Helena Diniz, “despreza-se a verdade real para atender a necessidade de estabilização social e de proteção ao direito de filiação. Mas se outorga ao pai o direito de propor a negatória, havendo suspeita de que o filho não é seu, a qualquer tempo (art. 1601 do Código Civil) ou após o exame de DNA, segundo alguns julgados6”.

Nesta medida, nosso sistema permite que a qualquer momento o indivíduo possa buscar descobrir a realidade de sua condição pessoal, consagrando a imprescritibilidade das ações de Estado.

Doutrinariamente sempre houve tal noção. Desde há muito pondera Caio Mario da Silva Pereira que, como ação de estado que é, todo filho, a todo tempo, tem o direito de vindicar in iudicio o status que lhe compete7.

A jurisprudência do STF também proclama há muito tempo tal concepção. Nos termos da Súmula nº 149 daquela Corte, redigida nos idos dos anos 50, “é imprescritível a ação de investigação de paternidade, mas não o e a de petição de herança”.

Também em termos legislativos passou a haver tal reconhecimento. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), no art. 27, dispõe que o "reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível". O Novo Código Civil passou a prever também tal conteúdo, afirmando no art. 1.601 que “cabe ao marido o direito de contestar a paternidade dos filhos nascidos de sua mulher, sendo tal ação imprescritível”.

É fato, porém, que há uma limitação temporal em uma situação peculiar. Segundo o art. 1.614 do mesmo Codex, “o filho maior não pode ser reconhecido sem o seu consentimento, e o menor pode impugnar o reconhecimento, nos quatro anos que se seguirem à maioridade, ou à emancipação”

O Desembargador Rui Portanova, em elucidativo julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, esclarece que a ação é imprescritível quando não há ninguém constando como pai no registro. Todavia, segundo tal jurista, a peculiaridade de cada caso será norteada pela investigação da paternidade sócio-afetiva. Se foi criado por outro pai, de quem recebeu afeto, por que não exerceu o direito de ação logo nos 4 anos que se seguiram à maioridade8?

Revela-se interessante tal posição, já que assim se poderá conciliar a imprescritibilidade prevista no artigo 1.601 com a previsão do artigo 1.614.

2.3. Aspectos processuais: instrução probatória.

2.3.1. Evolução do tema: o exame de DNA.

O desenvolvimento do exame de vínculo genético de filiação por análise de DNA mudou a certeza e a forma de atribuição de filiação. Com base nele, a descoberta pode ser feita com uma probabilidade de acerto de mais de 99,99 por cento. A conclusão se atinge num prazo de 7 (sete) dias úteis.

Segundo dados colhidos em instituições especializadas9, para realizar o exame basta coletar algumas gotas de sangue de cada pessoa. É também possível a utilização de saliva (que contém células epiteliais); porém, exige-se uma rotina especial, já que o controle de qualidade da coleta é mais difícil e deve ser acompanhado pela instituição especializada. Porém, uma vez obtidas células viáveis, o resultado do exame é concludente e tem o mesmo grau de segurança do exame realizado através do sangue. Não é possível fazer o exame com fio de cabelo, já que este não possui DNA (a menos que seja arrancado do couro cabeludo e venha com a raiz - bulbo capilar-, onde existem células que podem ser examinadas). A Sociedade Brasileira de Medicina Legal estabeleceu um conjunto mínimo de requisitos que precisam ser cumpridos por laboratórios de análises clínicas que atuam nesse gênero de investigação. Reunidos na publicação intitulada “Teste de paternidade através de DNA: Recomendações para laboratórios”, tais requisitos têm não só a função de garantir que o exame se realize de acordo com a melhor técnica mas, também, de preservar a cadeia de custódia. São recomendações que incluem diretivas quanto aos procedimentos de análise e apresentação de resultados, de identificação e coleta e de confidencialidade, entre outras.

Percebe-se, assim, a importância da coleta do material. Para que esta prova seja licita, porém, é necessário que conte com a participação do investigado, o que acaba por gerar alguns possíveis problemas na produção da prova.

2.3.2. Presunções: art. 230 a 232 do Código Civil.

Inova o atual Código Civil ao versar sobre o tema nos seguintes termos:

Art. 231. Aquele que se nega a submeter-se a exame médico necessário não poderá aproveitar-se de sua recusa.

Art. 232. A recusa à perícia médica ordenada pelo juiz poderá suprir a prova que se pretendia obter com o exame.

Os doutrinadores em geral, ao comentarem tais dispositivos, sempre aludem às ações de investigação de paternidade. Por todos, citamos Ricardo Fiúza:

“Quem vier a negar-se a efetuar exame médico, p. ex. DNA, que seja necessário para a comprovação de um fato não poderá aproveitar-se de sua recusa. Assim, se alegar violação à sua privacidade e não se submeter àquele exame, ter-se-á presunção ficta da paternidade, por ser imprescindível para a descoberta da verdadeira filiação, tendo em vista o superior interesse do menor e seu direito à identidade genética10”.

Como bem aponta a magistrada do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Maria Berenice Dias, em artigo sobre o tema, “se é difícil provar a ocorrência da relação sexual, não é mais fácil evidenciar que ela não existiu. Por isso, a prova testemunhal sempre foi usada para apontar ocasiões e identificar situações em que o par foi visto em atitudes que insinuassem a existência de um vínculo afetivo, para concluir-se sobre a possibilidade de ocorrência de um contato sexual. A tese defensiva, de outro lado, muitas vezes centrava-se na argüição da exceptio plurium concubentium, pela qual o demandado, apesar de reconhecer a mantença de relacionamento íntimo com a mãe do investigante, buscava evidenciar a concomitância de contato com outros parceiros, por meio de uma linha argumentativa que sempre restava por denegrir a figura materna, como a apenar o livre exercício da sexualidade11”.

Caio Mario da Silva Pereira também vê como criticável tal postura, afirmando dever ser vista com reserva ou mesmo afastada tal exceptio se o suposto pai se recusa a submeter a exame de DNA12.

Voltando ao posicionamento da desembargadora gaúcha, são valiosas suas ponderações no sentido de que a prova pericial, embora possa apresentar segurança quanto aos resultados, apresenta, contudo, dupla ordem de dificuldade: necessidade de participação do demandado para sua realização13 e elevado valor do exame de DNA14.

A ausência de prova, que no juízo criminal enseja a absolvição, ainda que não tenha correspondência na esfera cível, não pode levar a um juízo de improcedência:

“A omissão do próprio demandado ou do Estado em viabilizar a realização da prova não permite a formação de um juízo de convicção, a ser selado pelo manto da imutabilidade, de não ser o réu o pai do autor. O que houve foi a impossibilidade de identificar a existência ou concluir pela inexistência do direito invocado na inicial, omissão probatória, no entanto, que, não podendo ser imputada ao investigante, não pode apená-lo com uma sentença definitiva. Ainda que o processo não se limite à definição dos direitos dos litigantes, tendo por objetivo, conforme Chiovenda, a atuação da vontade da lei, o interesse público de toda a sociedade na composição dos conflitos não pode suplantar o interesse de um menor em identificar seus vínculos familiares15”.

Conclui então tal jurista que tais interesses se sobrepõem ao instituto da coisa julgada, não se podendo impedir o livre acesso à Justiça para o reconhecimento da filiação face à temporária impossibilidade probatória ou, até, à negligência em subsidiar a formação de um juízo de certeza para o julgamento.

Eis porque se impõe repensar a solução que vem sendo adotada ante a ausência de prova nas ações de investigação de paternidade. Para a autora, descabe um juízo de improcedência do pedido a cristalizar, como coisa julgada, a inexistência do estado de filiação. O que se teria verificado seria a falta de pressuposto ao eficaz desenvolvimento da demanda, ou seja, impossibilidade de formação de um juízo de certeza, o que impõe a extinção do processo nos precisos termos do inc. IV, do art. 267, do CPC. Tal solução, que, tecnicamente, geraria uma sentença terminativa, viabilizaria a possibilidade de qualquer das partes retornar ao Judiciário, munida de melhores e mais seguras provas, para a identificação da verdade no estabelecimento do vínculo mais caro ao ser humano16.

Embora seja louvável tal tentativa de enquadre, em realidade não há pressuposto processual de desenvolvimento do processo comprometido, como quer fazer crer a autora. Em verdade, não há pressupostos processuais violados, mas sim uma questão técnica relativa à possibilidade de produção da prova. Eventuais limitação e defeitos deverão ser atribuídos à parte, não ao processo.

O que poderia ser feito com alguma pertinência processual seria considerar que, à falta de provas, a demanda seja julgada improcedente por falta de provas e assim se permita a repropositura com novos elementos, tal como ocorre nas ações coletivas. Todavia, tal possibilidade exige previsão legislativa expressa para se configurar, o que não ocorre no caso em espécie.

2.3.3. A Súmula 301 do STJ: presunção relativa de paternidade.

“Em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris tantum de paternidade". Eis a redação da Súmula 301, aprovada no final de 2004 pela Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), composta pela Terceira e pela Quarta Turmas. Após diversos precedentes em que a questão foi discutida (dentre os quais citamos os julgamentos dos recursos especiais 141.689/AM; 256.161/DF; 460.302/PR; 135.361/MG; 55.958/RS e 409.208/PR, além do agravo regimental no agravo de instrumento 498.398/MG), definiu-se por sumular o entendimento, que deverá balizar o entendimento do STJ nos julgamentos futuros.

Analisando o tema antes da redação da súmula, o Centro de Estudos do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul já havia concluído que “caracteriza litigância de má-fé a conduta do réu de ação investigatória de paternidade que, negando-se, injustificadamente, a realizar exame pericial, pugna pela improcedência exclusivamente por insuficiência probatória” (20ª conclusão, por unanimidade). Como justificativa, expôs-se que “a todos impõe o art. 339 do CPC o dever processual de colaborar com o Poder Judiciário para o descobrimento da verdade. Neste contexto, a conduta do investigado que se nega a realizar exame pericial, sabendo da relevância desse meio de prova para o descobrimento da verdade, e que, ao depois, vem invocar em seu favor a deficiência probatória, está a caracterizar deslealdade processual tipificadora de má-fé, eis que a ninguém é lícito beneficiar-se da própria torpeza” São citados ainda precedentes daquela Corte (APC 599250156, da7ª C. Cível; 598 320828, da 7ª C. Cível); 597198746, da 8ª C. Cível).

Doutrinariamente, há quem veja com reservas a presunção de paternidade por recusa. É o caso de Caio Mario da Silva Pereira, para quem, “prejudicada a prova pela recusa do investigado em participar do exame genético poderá o juiz, excepcionalmente, considerar que os demais elementos convencem da certeza da paternidade”. Assim, para o professor a presunção não pode ser o fundamento único da sentença17.

Seja como for, o posicionamento do STJ serve como baliza para os casos futuros e as posições em contrário terão grande dificuldade para se fazer prevalecer contrariamente ao entendimento sumulado – especialmente pela circunstância processual de possível negativa de seguimento a recursos especiais por parte do relator se a tese viola súmula do Tribunal (nos termos do artigo 557 do Código de Processo Civil).

3. Coisa julgada e vínculo de filiação: hipótese de relativização?

Neste ponto visamos a analisar eventual conflito entre uma decisão judicial já acobertada pelos efeitos da coisa julgada e a existência de um exame de DNA em sentido contrário ao que consta na decisão sobre o vínculo de filiação.

Dispõe o artigo 467 do CPC que se denomina coisa julgada material a eficácia que torna imutável e indiscutível a sentença não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário.

Segundo Enrico Túlio Liebman, pode ser identificada como coisa julgada a decisão contida na sentença judicial quando tornada imutável em conseqüência da preclusão das impugnações.

No direito moderno, o enfoque se situa na decisão, na pronúncia do juiz, para assegurar a estabilidade, de modo que seja precluso um novo juízo sobre o mesmo objeto e que o conteúdo da decisão seja respeitado e vinculante, com a conseqüência de que os seus efeitos possam produzir-se livre e plenamente, sem haver contestação ou impedimento.

A razão prática que justifica o instituto é a necessidade de pôr fim às lides, de assegurar a certeza dos direitos e a estabilidade dos julgados, contribuindo com a pacificação social. É importante a exigência de que as lides não se prolonguem além de um certo limite, não podendo ser renovada sua discussão após ter havido o regular desenvolvimento do processo e sido alcançada a devida decisão18.

No tema em análise, vale destacar a diferença entre coisa julgada formal e material. Pela coisa julgada formal, temos a preclusão máxima enquanto impossibilidade de rediscussão da matéria dentro do mesmo processo; teria, assim, efeitos endoprocessuais. Já a coisa julgada material diz respeito à total vedação ao reexame da matéria em uma outra relação processual como regra geral (afora os casos de rescisão da sentença, nos termos do artigo 485 do CPC, e da declaração de nulidade da decisão por vício processual, caso da ação denominada querella nullitatis insanabilis, que decorre do artigo 486 do CPC).

Nos termos do art. 471 do CPC, nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas, relativas à mesma lide, salvo: I - se, tratando-se de relação jurídica continuativa, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito; caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença; II - nos demais casos prescritos em lei. Não parece adequado conceber que a decisão de investigação de paternidade, quando julgada procedente ou improcedente de acordo com a prova produzida na época, enquadre-se em qualquer das duas hipóteses.

Passemos a analisar a possibilidade de “relativização” da coisa julgada.

Afirma com muita propriedade Luiz Guilherme Marinoni que de nada adianta falar em direito de acesso à justiça sem dar ao cidadão o direito de ver o seu conflito solucionado definitivamente. Assim, se a definitividade inerente à coisa julgada pode, em certos casos, gerar situações indesejáveis ao próprio sistema, não é correto imaginar que, em razão disso, ela simplesmente possa ser desconsiderada. Nesse sentido, não parece que a simples afirmação de que o Poder Judiciário não pode emitir decisões contrárias à justiça, à realidade dos fatos e à lei, possa ser vista como um adequado fundamento para o que se pretende ver como “relativização” da coisa julgada:

“O que aconteceu, diante da inevitável possibilidade de comportamentos indesejados pelo sistema, foi a expressa definição das hipóteses em que a coisa julgada pode ser rescindida. Com isso, objetivou-se, a um só tempo, dar atenção a certas situações absolutamente discrepantes da tarefa jurisdicional, mas sem eliminar a garantia de indiscutibilidade e imutabilidade, inerentes ao poder estabelecido para dar solução aos conflitos, como também imprescindível à efetividade do direito de acesso aos tribunais e à segurança e à estabilidade da vida das pessoas19”.

Nessa mesma esteira, afirma categoricamente Ovídio Batista da Silva que a simples noção de sentença injusta não é suficiente para comprometer a coisa julgada:

“Pretender que a coisa julgada seja desconsiderada quando a sentença seja ‘injusta’ não é, seguramente, um ideal da modernidade (...). É desnecessário sustentar que a ‘injustiça da sentença’ nunca foi e, a meu ver, jamais poderá ser fundamento para afastar o império da coisa julgada20”.

A função do processo é pacificar socialmente; e se tal pacificação puder ser feita com justiça, tanto melhor. Para os casos em que a injustiça seja configurada, prevê o sistema a possibilidade de desconstituição nos termos do artigo 485 e 486 do CPC.

Como esclarece o professor Barbosa Moreira:

“A segurança das relações sociais exige que a autoridade da coisa julgada, uma vez estabelecida, não fique demoradamente sujeita à possibilidade de remoção. Ainda quanto às sentenças eivadas de vícios muito graves, a subsistência indefinida da impugnabilidade, incompatível com a necessidade da certeza jurídica, não constituiria solução aceitável no plano da política legislativa, por mais que em seu favor se pretendesse argumentar com o mal que decerto representa a eventualidade de um prevalecimento definitivo do erro. O legislador dos tempos modernos, aqui e alhures, tem visto nesse o mal menor. Daí a fixação de prazo para a impugnação; decorrido certo lapso de tempo, a sentença torna-se imune a qualquer ataque. É o que acontece na generalidade dos ordenamentos contemporâneos21”.

Efetivamente parece-nos temerária a idéia de abrir um precedente sobre a possibilidade de revisão do conteúdo da decisão que transitou em julgado fora das hipóteses legais22. De qualquer forma, cumpre analisar sobre o cabimento da ação rescisória no caso em comento.

Nos termos do artigo 485 do Código de Processo Civil, cabe ação rescisória se, depois da sentença, a parte obtiver documento novo, “cuja existência ignorava, ou de que não pôde fazer uso, capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável” (art. 485, VII, CPC).

Segundo Marinoni, nos casos em que a investigação de paternidade ocorreu na época em que o exame de DNA ainda não existia, não há dúvida que o laudo de DNA pode ser equiparado a um “documento novo”. Mas alerta tal jurista que ainda haveria um problema: a decisão poderia ter transitado em julgado antes que fosse possível a realização da prova técnica de DNA. Como ficaria então a contagem do prazo decadencial de propositura da rescisória? Vejamos sua posição:

“... se o prazo não pode ser contado a partir do trânsito em julgado da sentença que se quer impugnar, porque não se trata de algo que já existia na época do processo extinto, mas de um meio que passou a existir não se sabe quanto tempo após o trânsito em julgado, aparece uma nova questão: é certo deixar que o vencido na ação de investigação de paternidade, seja autor ou réu, possa rever a sentença a qualquer tempo, sem subordiná-lo a qualquer prazo? Será que a biologia não estaria se sobrepondo à própria necessidade da definição da relação de filiação, a qual é imprescindível para o surgimento do afeto necessário para a vida entre pai e filho, ou mesmo tornando indefinida a vida das pessoas? Perceba-se que a eterna abertura à discussão da relação de filiação consistiria algo que sempre estaria a estimular a desconfiança dos envolvidos. Porém, é claro que, mesmo em relação à investigação de paternidade, o estabelecimento de prazo para a rescisão da sentença é um imperativo da natureza do ser humano e da vida em sociedade e, assim, da própria necessidade da jurisdição.

Como é óbvio, não se pretende afirmar que a evolução tecnológica não possui importância para a descoberta da relação de filiação. O que se deseja evidenciar é que a eternização da possibilidade da revisão da coisa julgada pode estimular a dúvida e, desse modo, dificultar a estabilização das relações.

Seria correto concluir que a sentença da ação de investigação de paternidade somente pode ser rescindida a partir de prazo contado da ciência da parte vencida sobre a existência do exame de DNA. Não obstante, a dificuldade de identificação dessa ciência, que certamente seria levantada, é somente mais uma razão a recomendar a imediata intervenção legislativa.

Como essa ação possui relação com a evolução da tecnologia, ou melhor, com uma forma de produção de prova impensável na época em que o artigo 485 do CPC passou a reger a ação rescisória, é imprescindível que esse artigo seja alterado para deixar clara a possibilidade do uso da ação rescisória com base em laudo de DNA, bem como o seu prazo23(grifos do autor).

Todavia, há outros doutrinadores que concebem a questão de forma mais aberta. Esta, aliás, tem sido a tendência atual. Candido Rangel Dinamarco é um dos grandes expoentes de tal posicionamento:

“Onde quer que se tenha uma decisão aberrante de valores, princípios, garantias ou normas superiores, ali ter-se-ão efeitos juridicamente impossíveis e, portanto, não incidirá a autoridade da coisa julgada material – porque, como sempre, não se concebe imunizar efeitos cuja efetivação agrida a ordem jurídico-constitucional (...) Não me impresssiona o argumento de que, sem a rigorosa estabilidade da coisa julgada a vida dos direitos seria incerta e insegura, a dano da tranqüilidade social. Toda flexibilização de regras jurídicas traz consigo esse risco, como já venho reconhecendo há mais de uma década; mas a ordem processual dispõe de meios para a eventual correção de eventuais desvios ou exageros, inclusive mediante a técnica de recursos, da ação rescisória, da reclamação aos tribunais superiores etc24”.

Também Humberto Theodoro Junior, em ensaio com Juliana Cordeiro de Faria sobre a coisa julgada inconstitucional, revela ser possível rever a decisão transitada em julgado. Segundo seu entendimento, nos casos em que se manifestar relevante o interesse na preservação da segurança, bastará recorrer-se ao salutar princípio constitucional da razoabilidade e proporcionalidade25. Percebe-se ainda maior abertura em tal posição.

Finalmente merece destaque um dos primeiros julgados do Superior Tribunal de Justiça tratando do tema:

Processo civil. Investigação de paternidade. Repetição de ação anteriormente ajuizada, que teve seu pedido julgado improcedente por falta de provas. Coisa julgada. Mitigação. Doutrina. Precedentes. Direito de família. Evolução. Recurso acolhido.

I – Não excluída expressamente a paternidade do investigado na primitiva ação de investigação de paternidade, diante da precariedade da prova e da ausência de indícios suficientes a caracterizar tanto a paternidade como a sua negativa, e considerando que, quando do ajuizamento da primeira ação, o exame pelo DNA ainda não era disponível e nem havia notoriedade a seu respeito, admite-se o ajuizamento de ação investigatória, ainda que tenha sido aforada uma anterior com sentença julgando improcedente o pedido.

II – Nos termos da orientação da Turma, "sempre recomendável a Realização de perícia para investigação genética (HLA e DNA), porque permite ao julgador um juízo de fortíssima probabilidade, senão de certeza" na composição do conflito. Ademais, o progresso da ciência jurídica, em matéria de prova, está na substituição da verdade ficta pela verdade real.

III – A coisa julgada, em se tratando de ações de estado, como no Caso de investigação de paternidade, deve ser interpretada modus in rebus. Nas palavras de respeitável e avançada doutrina, quando estudiosos hoje se aprofundam no re-estudo do instituto, na busca sobretudo da realização do processo justo, "a coisa julgada existe como criação necessária à segurança prática das relações jurídicas e as dificuldades que se opõem à sua ruptura se explicam pela mesmíssima razão. Não se pode olvidar, todavia, que numa sociedade de homens livres, a Justiça tem de estar acima da segurança, porque sem Justiça não há liberdade".

IV – Este Tribunal tem buscado, em sua jurisprudência, firmar posições que atendam aos fins sociais do processo e às exigências do bem comum” (STJ – 4a Turma, Rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, RESP 226436 / PR ; DJ: 04/02/2002 PG:00370, RSTJ VOL.:00154 PG:00403 j. 28/06/2001).

4. Conclusão.

Embora reconheçamos o mérito das posições contrárias, entendemos merecer mais crédito a primeira posição, de não se admitir a revisão do julgado e a “relativização da coisa julgada”. Afinal, o comando daquela decisão era plenamente válido segundo as regras de sua época; se esta tinha limitações, trata-se de contingências naturais na vida dos direitos.

Abrir o precedente de se relativizar a importância da segurança jurídica pode ser um perigoso instrumento de manipulação e desrespeito a garantias individuais. Sendo a função do processo a pacificação social, por certo que a alteração da resposta jurisdicional tempos depois, em sentido contrário, pode vir a gerar mais conflitos do que propriamente benefícios para as partes que já estavam acomodadas com a realidade que lhes proporcionava a decisão judicial. Ademais, as evoluções tecnológicas não param de suceder-se, de forma que a prova técnica tende a possibilitar novos entendimentos a todo instante. A prestação jurisdicional não pode ficar na dependência de tais contingências para que se estabilize.

Entendemos, assim, que para se conceber a possível revisão da decisao de mérito com transito em julgado deve ser alterado o artigo 485 do CPC, incluindo-se um dispositivo que preveja a peculiar situação da impossibilidade de acesso à prova técnica, contando-se o prazo decadencial de dois anos a partir do possível acesso da parte à produção da prova (o que pode ser objeto de prova em cada caso).

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1 LOBO, Paulo Luiz Netto. Direito ao estado de filiação e direito à origem genética: uma distinção necessária. Artigo disponível na internet, no site www.ibdfam.com.br; consulta em 18/11/2004.

2 Citado por PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil, vol. I e V. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 605.

3 Curso de Direito Processual Civil vol. 1. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 390.

4 Instituições de Direito Civil, vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 605.

5 Idem, p. 605-606.

6 Diniz, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro, vol. 1 e 5. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 411.

7 Instituições de Direito Civil, vol. V. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 605

8 Julgado compilado na obra de Francisco José Cahali. Família e Sucessões no Código Civil de 2002. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 82 e ss.

9 Disponíveis na internet no site www.genomic.com.br.

10 Novo Código Civil Comentado. São Paulo, Ed. Saraiva, p. 450.

11 Dias, Maria Berenice. Investigação de paternidade e a questão da prova. Artigo publicado na Revista de Processo nº 95, jul-set/99, p. 97.

12 Ob. cit., 607.

13 Já foi alvo de acirradas discussões a possibilidade de se impor que alguém se submeta coactamente à produção probatória. Embora se tenha ponderado com o dever de todos de colaborar com a justiça, predomina o entendimento de que o princípio do respeito à integridade física do cidadão, que tem resguardo constitucional, sobreleva o dever de ambas as partes de colaborar com o Poder Judiciário (art. 339 do CPC) e de proceder com lealdade e boa-fé (inc. II do art. 14 do CPC). Em artigo publicado no site do Conselho da Justiça Federal, o Ministro MOREIRA ALVES ponderou: “No Supremo Tribunal Federal, não há muito, tivemos uma vasta discussão em habeas-corpus, em que uma juíza havia determinado, debaixo de vara, a condução de um investigando de paternidade que se recusava a extrair sangue para efeito do exame de DNA. A juíza não teve dúvida e disse: conduza-se, ainda que à força. Ele alegava: tenho terror e pânico até de injeção, quanto mais de tirar sangue. Depois de uma vasta discussão no Plenário do Supremo Tribunal Federal, por 6 votos a 5, considerou-se que isso atingia um direito de personalidade dele de não querer tirar sangue, mas corria contra ele, obviamente, a presunção de que realmente fosse o pai”. Pesquisado no site do Conselho da Justiça Federal - http://www.cjf.gov.br, -em setembro de 2004.

14Pelo fato de não disporem as partes de recursos para arcar com o pagamento dos testes, tem-se dispensado a perícia, fato que resta por fragilizar o contexto probatório, que, muitas vezes, deságua no desacolhimento da ação. Tem sido comum a edição de leis estaduais determinando que o Estado arque com os custos da produção da prova, mas na prática as dificuldades de tal implementação têm sido severas.

15 Ob. cit., p. 98.

16 Idem, p. 99.

17 Ob. cit., p. 607.

18 Eficácia e autoridade da sentença. Forense: Rio de Janeiro, 1981, p. 142.

19 Marinoni, Luiz Guilherme. Sobre a chamada “relativização” da coisa julgada material.Disponível na Internet: <http://www.mundojuridico.adv.br>. Acesso em 10 de setembro de 2005.

20 Coisa julgada relativa? Revista Jurídica v. 316, fev/2004, p. 11.

 

21 José Carlos Barbosa Moreira. Comentários ao Código de Processo Civil, v. 5, Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 214.

 

22 Como bem pondera Luiz Guilherme Marinoni no artigo referido anteriormente, a coisa julgada pôde sempre ser relativizada nos casos expressos em lei, como, por exemplo, na hipótese de documento novo de que a parte não pôde fazer uso, mas que seja capaz, por si só, de lhe assegurar pronunciamento favorável (art. 485, VII do CPC). E tal sempre se admitiu em virtude de certas circunstâncias, que não são relativas apenas a um direito em especial, mas sim a situações que podem marcar qualquer direito. “Os casos de ação rescisória não abrem margem para a desconstituição da coisa julgada em razão da especial natureza de determinado direito, mas sim em virtude de motivos excepcionais capazes de macular a própria razão de ser da jurisdição. Isso quer dizer que não é um direito em específico, mas sim uma dada situação excepcional, que pode exigir que se dê maior atenção ao tema da coisa julgada. Nesse caso, entretanto, como se não se tratará de considerar o direito material objeto da decisão acobertada pela coisa julgada material, mas sim uma circunstância que impede a idoneidade da decisão jurisdicional acerca do direito, não existirá como pensar em contrapesar esse direito com a coisa julgada, mas sim em uma interpretação da regra processual capaz de atender as situações que pulsam da realidade e não podem deixar de ser impostas às categorias jurídicas”.

 

 

23 Ob. cit.

24 Dinamarco, Cândido Rangel. Nova era do Processo Civil. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 257.

25 Theodoro Jr, Humberto. A Coisa julgada inconstitucional e os instrumentos para seu controle. In Nascimento, Carlos Valder (org.). Coisa julgada inconstitucional. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2002, p. 161.