O ESTATUTO DA CIDADE E O PLANEJAMENTO


Porjulianapr- Postado em 26 março 2012

Autores: 
Washington Peluso Albino de Souza

O ESTATUTO DA CIDADE E O PLANEJAMENTO[1]

 

 

Washington Peluso Albino de Souza

 

Professor Emérito da Universidade Federal de Minas Gerais

Fundador da FBDE

 

1. INTRODUÇÃO

 

A Cidade ganhou novo e destacado tratamento no Direito Brasileiro, a partir da Constituição Federal de 1988. Passou a ser vista sob a ótica da Política Urbana.[2] Não vamos confundi-la com o Município, de sentido mais amplo e que geralmente a envolve, embora tratemos de ambos. Historicamente, este teria as suas raízes no Direito Vigótico, passando ao nosso, pela via do Direito Romano e do Direito Português. Porém, não é este o prisma que estamos seguindo. Incluída no quadro da “Política”, quer propriamente, quer em âmbito especializado, de natureza econômica, cultural, ambiental, paisagística, turística, ou de que outra natureza for, em todos tomaremos a cidade pelo prisma do“Planejamento”. A este, cabe reunir,harmonizar e garantir-lhe o equilíbrio que antes lhe faltou, na visão micro-cósmica liberal. Sua configuração atual é a do coletivo, na qual os diferentes elementos são trazidos para a conjunção, “como um todo” (Estatuto art.40§2º). Em hierarquia constitucional e como “instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana”, o Plano Diretor ali se localiza no primeiro parágrafo do primeiro artigo constitucional sobre Política Urbana. (CF.182 §1º). O Estatuto , em nível infraconstitucional,dedica-lhe todo um Capitulo (Estatuto Cap.III). Não menos importante para o presente trabalho é o disposto para a denominada “Gestão Democrática da Cidade” (Estatuto Cap.IV), onde os planos são tratados de forma participativa e, não, representativa.[3]

Obrigatório para as cidades de mais de 20.000 habitantes, (C.F. Artigo 182§1º, Estatuto Art.41§1º) em verdade esta dimensão se amplia pelo Estatuto, pois envolve os integrantes de regiões metropolitanas e aglomerações urbanas, áreas de interesse turístico, áreas de influência de empreendimentos ou atividades de impacto ambiental de âmbito regional ou nacional.

Além de uma visão exclusivamente urbana, o Estatuto estabelece, na execução da política chamada urbana,“a integração e complementaridade entre as atividades urbanas e rurais, tendo em vista o desenvolvimento econômico do município e do território sob sua área de influência(Art 2.VII).

A lei pretende realizar as “cidades sustentáveis”, entendido como “o direito à terra urbana,à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações.”(Estatuto, art.2º I)

O Estatuto “estabelece normas de ordem pública e de interesse social”, dando este sentido à propriedade urbana, que passa a ter o seu uso “em prol do bem coletivo, da segurança e do bem estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental”. (art.1º, parágrafo único).

 

 

2. PLANEJAMENTO E DIREITO

 

De inicio, é conveniente revisitarmos a diferença e a ligação de significado dos termos “planejamento”, como “ato de planejar”, e “plano”, como a conseqüência desse “ato”. O Estatuto revela este cuidado ao tratar dos “Instrumentos em geral” (Estatuto Cap.II art.4) Fala de “planos” (I e III a) e de Planejamento(II e III). Neste ultimo, situa o Plano Diretor como parte do “Planejamento Municipal Especial”

A técnica do planejamento pela ótica do Direito, desenvolveu-se, nos diversos países, até os anos 70, quando foi menosprezada pela onda neoliberal. No direito europeu, houve o desenvolvimento a partir dos planos qüinqüenais soviéticos. As posteriores discussões lhe foram favoráveis a partir da bem sucedida experiência do governo Roosevelt, já nos anos 30. Passaram a adotá-los os países capitalistas. Com as oposições de parte da inteligência acadêmica representada por Hayek, nos ataques em que insistiu por toda a sua existência nonagenária, ligando planejamento com ditadura, sua tese acabou aceita e defendida nos Estados Unidos e demais paises,a partir da Escola de Chicago, com Friedman e outros. Na mesma área acadêmica, Manheim, ainda nos anos 30, especialmente com seu livro “Planejamento e Liberdade”, demonstrara como não havia qualquer ligação entre planejamento e ditadura, podendo ser perfeitamente conciliável com democracia. Importantes contribuições foram dadas,então, quer por juristas dos paises socialistas, quer dos paises capitalistas democráticos, ou daqueles de regime mal definido, como o Brasil, à época. Sob modelo aparentemente democrático, mantinham aberto o Parlamento e admitidos os Partidos Políticos, mas, em verdade praticavam regime de dominação militar e de repressão ditatorial. Para tal situação, o exemplo de planejamento mais adequado foi o francês. Neste, o Governo era exercido com autoridade, por Degaulle, enquanto no Brasil os Presidentes militares se sucediam com a mesma linha rígida do que denominavam “revolução”, que se reanimava em cada sucessão.[4]

A técnica desse tratamento jurídico do Planejamento “soi-disant” democrático, foi adotada no Brasil, com elementos especialmente quanto ao sistema de aprovação de “ressalvas”, em lugar de “emendas”, registradas para aplicação posterior, quando quase sempre já tivessem perdido o seu objetivo.

Entretanto,muitos ensinamentos, positivos ou negativos, foram tirados dessa experiência para o que chamamos Direito do Planejamento, quando se pretende aplicá-lo sem as mazelas da politiquice e a brutalidade ditatorial. Dentre outros dados nesse sentido, havemos de destacar a natureza da lei do plano, sua duração e abrangência, a continuidade administrativa para empreendimentos cuja execução requer prazo superior a um único mandato executivo, mais curto do que a duração do Plano, o acompanhamento e a fiscalização permanente de sua execução. Nem se pode deixar de considerar a elaboração do “projeto”, ainda em forma de “peça técnica”, o sistema de sua discussão pela opinião pública, sua aprovação e a avaliação permanente dos seus resultados. Resta destacar a falta de força cogente de sua lei, pela qual a mesma deixasse de ser apenas “programática”, em vez de vinculante, agora adotada pelo Estatuto. Este aperfeiçoamento é capaz de expelir boa parte das restrições ao Planejamento, situando-o na correta posição que inevitavelmente deverá ocupar,quanto mais autêntica se mostre a forma democrática de governo em questão.

O Estatuto oferece-nos a oportunidade de rever todas as teses acima expostas. Por correta posição crítica poderemos indicar os perigos daqueles desmandos e mostrar o modo pelo qual o planejamento possa seguir caminho autenticamente democrático, se praticado de modo eficiente e, sobretudo, respeitoso aos princípios fundamentais da ordem pública.

 

 

3. ESTATUTO DA CIDADE E PLANEJAMENTO

 

Trazido o Planejamento para análise no Estatuto da Cidade, estes e outros elementos nesse mesmo sentido, devem ser aprofundados.

A Constituição Federal define inicialmente os “objetivos da política de desenvolvimento urbano” e atribui ao Plano Diretor a responsabilidade de “instrumento básico” dessa política consistente no ordenamento das “funções sociais da cidade e garantir o bem-estar dos seus cidadãos”. Em concordância, o Estatuto da Cidade afirma que esta função social se realiza quando “expressa no seu Plano Diretor” no que tange à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, de acordo com as diretrizes da respectiva lei.(Art.39).

Por este enunciado vê-se que não se trata de um planejamento apenas urbanístico, com vistas ao traçado da cidade ou à edificação, mas amplia-se abrangendo gama muito maior, na qual menciona as “necessidades econômicas”, onde podemos encontrar a interface com o Direito Econômico, o mesmo se dando com os demais ramos do Direito tais como o Constitucional,o Administrativo, o Civil, o Penal, o Ambiental e outros, buscando o ajustamento à chamada “qualidade de vida” e à própria “justiça social”.

Esta é a dimensão do Estatuto da Cidade, definida pelo seu “instrumento básico”, o Plano Diretor.

 

 

4. DO PLANEJAMENTO NO ESTATUTO DA CIDADE

 

Examinemos algumas das características do planejamento no Estatuto da Cidade.

Inicialmente, deparamos com a exigência de ser aprovado por lei municipal.

Salientemos as peculiaridades da “lei do plano”, ao nível do município, uma vez consideradas as dificuldades decorrentes de o território municipal, enquanto “chão geográfico”, também ser tratado, legal e administrativamente, pelo Estado e pela União.

 

Na experiência brasileira decorria de um “projeto” originário do Poder Executivo, por ser aquele que dispunha das informações quanto a necessidades e a recursos a serem discutidos e aprovados pelos representantes do povo, sediados no Congresso, enquanto Poder Legislativo.

 

Pelo Estatuto, seguindo modelo participativo para o planejamento, os Poderes Legislativo e Executivo atuarão no processo da elaboração e da fiscalização de implementação do Plano Diretor, garantirão a promoção de audiências públicas e debates com a participação da população e das associações representativas dos vários segmentos da comunidade.

 

 

5. DEMOCRACIA PARTICIPATIVA

 

Com tais dispositivos, havemos de concordar que nos encontramos ante afirmativas de Democracia Participativa e não de pura Democracia Representativa (Estatuto Art.2 II.XIII e art.40 I). Maior rigor ainda se revela na Gestão Democrática da Cidade (Estatuto Capitulo IV), pela qual “a iniciativa popular de projetos de lei e de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano” (Estatuto Art.43IV), são definidos como “instrumentos”. (Estatuto Art.43). Neste mesmo Capítulo, e ainda como “instrumentos”, são mencionados “órgãos colegiados de política urbana, nos níveis nacional, estadual e municipal”,(I), “debates,audiências e consultas públicas”(II).

 

Retomando o disposto na alínea f do inciso III do artigo 4ºdo Estatuto, o artigo 44 refere-se literalmente a “gestão orçamentária participativa”, mandando que se inclua a “realização de debates, audiências e consultas públicas sobre as propostas do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e do orçamento anual”, e acrescenta, “como condição obrigatória para sua aprovação pela Câmara Municipal”. Ora, é de se indagar como serão apresentadas estas propostas sem esboço, ao prévio debate sobre o próprio Plano Diretor? Tudo gira em torno deste Plano que é o elemento fundamental da política. Ou se adota método indutivo, com a consulta e o debate antecipados em discussão preliminar aberta, da qual saia um, conjunto de reivindicações referenciais, para se chegar posteriormente aos montantes dos recursos orçamentários disponíveis e capazes de satisfazê-los, ou se perpetua prática dedutiva de oferecer à discussão um plano previamente elaborado pelo Poder Executivo,sob forma de projeto de lei, para debate e aprovação, nos termos dos projetos de lei do modelo representativo. A única modificação estaria no debate duvidosamente “público”, sem efeitos reais, pois as prioridades e a alocação dos recursos já teriam sido estabelecidas. A definição clara do modo de criação e conduta dos “órgãos colegiados de política urbana”, (Estatuto art.43 I), assim como o direcionamento imparcial ou equilibrado dos programas de debates,audiências e consultas públicas (idem II),bem como de conferências (idem III), constituem peças de importância fundamental para que o Estatuto e as medidas de política participativa não se transformem apenas em mais um disfarce da demagogia, no delicado campo da política.

 

Esta verticalidade abrangendo os três níveis de Poder da República convida à reflexão sobre sua legitimidade constitucional.Talvez se pretenda encontrar base, para a democracia direta, na Constituição Federal, enquadrando-a no seu parágrafo único do artigo 1º , onde se admite “diretamente” o exercício do poder, conjugando-o com o disposto no artigo 29 XII, pelo qual a lei orgânica municipal pode admitir a “cooperação das associações representativas no planejamento municipal”. A partir destas bases constitucionais já se produz importante literatura que vem corroborar a democracia participava por meio do Estatuto.[5] Cogita-se mesmo de uma “nova ordem legal”, da qual o Estatuto é documento paradigmático, coroando significativa obra acadêmica sobre a viabilidade jurídica do planejamento municipal.

 

Ainda no pensamento acadêmico, por outro lado, vem sendo construída a tese da admissão do planejamento municipal, mesmo no modelo político representativo.[6]

 

O tema já se manifesta também no Poder Judiciário.[7] Algumas decisões pioneiras já aceitam a participação como elemento fundamental dos respectivos processos, dando-lhe a condição de cidadania na prática jurídica do País. Assim, na ação direta de inconstitucionalidade sobre o Plano Diretor manifestaram-se o Tribunal de Justiça de São Paulo em 21 de setembro de 1994 e o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em 03 de dezembro de 2001.

 

No âmbito federal, o Ministro Garcia Vieira, relatando eficácia de decisão proferida pela presidência do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, em medida cautelar, manifestou-se sobre o orçamento participativo. Em parte desta manifestação assim se expressou: “Aspiração de grande parte do eleitorado gaúcho, havendo milhares de pessoas envolvidas no processo”.

 

No caso em espécie, havia ação cautelar quanto ao orçamento, que, por sua vez, deveria atender ao prazo legal de entrega do respectivo projeto, enquanto a consulta pública requerida se prolongaria naturalmente além daquele prazo. Ora, o impedimento da aprovação do orçamento anual, de acordo com a legislação correspondente, importaria em conseqüências facilmente previsíveis para as autoridades, que passariam a efetuar despesas sem a devida autorização. Não é difícil prever que casos como esse surjam na ausência de uma estrutura administrativa capaz de conciliar os diversos elementos, especialmente orçamentários, com a satisfação das pretensões populares, advindas das respectivas consultas. A introdução pura e simples das medidas de democracia participativa em estrutura montada para a democracia representativa deverá causar empecilhos desta ordem.

 

O Estatuto da Cidade já trazendo elementos de democracia participativa a serem cumpridos sob a condição de comprometimento com o próprio andamento da administração, deve ser tomado como imposição para a pronta montagem da estrutura correta, sob pena de se pretender mais uma vez a construção pretoriana, não recomendável como a melhor para medidas de efeito rápido, capaz de substituir as delongas da legislação vigente.

 

Na proporção em que o Estatuto da Cidade apresenta prazos peremptórios para a sua implantação, dúvidas desnecessárias irão abarrotar o Poder Judiciário. Não havendo a infra-estrutura bastante para atender aos casos duvidosos, corre o risco de se perder em discussões doutrinárias quanto à própria constitucionalidade do Plano Diretor, como tem sido debatido na área acadêmica.

 

 

6. VIGÊNCIA DA LEI DO PLANO

 

A “lei do plano” contém a particularidade de oferecer as datas do inicio e do término de sua vigência. Por dedicar-se à administração por objetivos, não admite extinção antes destes serem atingidos. Por outro lado, a variedade destes objetivos incluídos em lei de abrangência capaz de envolver toda a vida municipal, quer nos 10 anos referidos no Estatuto, quer antes ou depois deste período, conduz o raciocínio a detectar a flexibilidade nas relações da lei do plano em relação às outras leis específicas para cada um daqueles objetivos. A lei do plano figura,´em tal hipótese, como o garante de que todas as demais enquadram-se no mesmo discurso ideológico de que é portadora. Este parece-nos ser o sentido da lei do Plano Diretor no Estatuto da Cidade.

 

Consideradas a multiplicidade dos temas abrangidos pelo Plano Diretor e a continuidade natural da administração, independente do mandato do prefeito e dos vereadores eleitos, o Estatuto da Cidade confere-lhe o prazo de 10 anos, ao fim dos quais deve haver a sua revisão (Art.40.3). Ora, se o mandato atual do prefeito e dos vereadores é de 4 anos, este prazo não coincide com o do Plano Diretor. Também, pela diversificação do seu objetivo, desborda quanto à duração de algumas das suas incumbências. Uma espécie de “ordem jurídica municipal” em consonância com a “ordem jurídica federal” define como “objetivo ordenar o pleno desenvolvimento da cidade e garantir o bem-estar dos seus habitantes por política executada pelo Poder Público Municipal”. Esclarece quando a propriedade urbana cumpre a sua função social e obriga Plano Diretor, instrumento básico dessa política. (C.F.art.182 §§1ºe 2º) O Estatuto,ao regulamentar o comando constitucional, incumbiu-se de instrumentalizá-lo. Porém, neste ponto reside a sua principal dificuldade.

 

Tomando como exemplo a revisão do próprio Plano Diretor ao cabo de 10 anos,dir-se-á que o essencial é a manifestação da população no sistema participativo. Esta independe do mandato do prefeito que deverá realizá-la. Este mandato da autoridade que fará a “revisão”, estará em desencontro, com o prazo. Diante do impasse, talvez se devesse entender a idéia do planejamento como atividade puramente “técnica”, a ser entregue a um órgão acima da autonomia da administração, idéia naturalmente repudiada para a ideologia republicana e democrática: um Conselho Permanente de Planejamento,por exemplo, daria aos seus membros poderes superiores aos do prefeito e dos vereadores.

 

Uma aproximação de tratamento aceitável aparentemente seria encontrada na prática brasileira do Primeiro,Segundo e Terceiro Planos Nacionais de Desenvolvimento (1ºPND 1972-74;2ºPND 1975-82;3º PND aprovado pelo Senado). O candidato eleito elaborava o Plano no primeiro ano de seu mandato. Governava com os recursos orçamentários e com o ultimo ano do Plano do Governo anterior. O mesmo acontecia na continuidade dos Governos. A experiência revelou a possibilidade de todos as formas de desvio apresentadas anteriormente, inclusive à da pessoalidade do plano,que leva a mudanças da política econômica e social, ainda que dentro de um mesmo conteúdo ideológico.

 

Quais seriam, as medidas no sentido de corrigir estes desvios,além daquelas relativas à da criação de órgãos chamados “técnicos”, para garantir a perfeita continuidade de eventos planejados, sem ferir a autonomia das autoridades sucessoras?

 

Uma das principais, seria a de exigir dos Tribunais de Contas a clara e indiscutível obrigação de conjugar, além da verificação contábil, também a da objetiva realização do dado para o qual o recurso fora destinado.

 

Outra sugestão, seria o acompanhamento da execução, junto aos órgãos correspondentes, por elementos indicados pela população interessada, em caráter democrático-participativo, satisfazendo a dinâmica do Plano, inclusive quanto às mudanças que se façam necessárias. Tais órgãos deveriam ser colegiados e compostos de representantes das diversas correntes de opinião.

 

Talvez, estas e outras medidas evitem vícios da administração, como o costume de substituir por “placas de realização” do governo que entra, pelas placas do governo que sai, sem que o aquele tenha qualquer participação efetiva na obra em andamento. Fora desta hipótese,encontramos o abandono da obra inacabada, em centenas de casos, com a perda dos investimentos feitos. Ou a inauguração precipitada em fim de mandato, com falsos acabamentos ou lastimáveis desastres, envolvendo operários ou futuros usuários. Ou o registro estatístico da realização apenas pelos dados da prestação de contas,visto como a não exigência da verificação objetiva de aplicação das verbas consignadas e registradas por estes Tribunais satisfaz-se com a prestação apenas contábil.

 

 

7. PROCESSO DE PLANEJAMENTO MUNICIPAL

 

O “Estatuto” estabelece um “processo de planejamento municipal”, pelo qual o Plano Diretor é apenas “parte integrante”, devendo o “plano plurianual, as diretrizes orçamentárias e o orçamento anual incorporarem as diretrizes e as prioridades nele contidas” (Estatuto Art.39§1º).

 

Nas “Diretrizes Gerais da Política Urbana” (Estatuto Art.2º e incisos) vários outros planejamentos são nomeados, como “o desenvolvimento das cidades, a distribuição espacial da população e as atividades econômicas do Município e do território sob sua influência, de modo a evitar e a corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente” (Estatuto Art.2º, IV); a integração e uso do solo (Art.2º VI); a integração e complementaridade entre atividades urbanas e rurais (Estatuto Art.2º,VII); a adoção de padrões de proteção e consumo compatíveis com os limites de sustentabilidade ambiental, social e econômica do Município e do território de sua influência (Estatuto Art.2º VIII); a proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico (Estatuto Artigo 2º XII); a regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por populações de baixa renda (Estatuto Art.2º XIV) e outros.

 

Planos diversos são indicados além do Plano Diretor, nos “instrumentos em geral” (Estatuto,art.4º), tais sejam:

 

I- os planos nacionais, regionais e estaduais de ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social;

 

II- planejamento das regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões;

 

III- planejamento municipal, em especial.

 

Este último desdobra-se em :

 

a) plano diretor;

b) plano plurianual;

c) planos, programas e projetos setoriais;

d) planos de desenvolvimento econômico e social.

 

 

8. PLANO DIRETOR

 

O Plano Diretor, assim colocado como um dos “instrumentos da Política Urbana” (Estatuto, Cap.II), tem a função de “instrumento básico” dessa política (CF art.182 §1º e Estatuto art.40 caput). Encontra-se em todo o decorrer da lei, envolvendo as suas diferentes disposições, até constar de Capitulo especial.

 

Assim: a) está ao lado do plano plurianual (Estatuto Art. 4º. VIII, d); encontra-se na Gestão Democrática Participativa (id.7f); junto aos planos, programas e projetos setoriais (g); aos planos de desenvolvimento econômico e social (h); ao referendo e ao plebiscito (V).

 

A partir destas referências,o Plano Diretor passa a ser consignado no “parcelamento, edificação e utilização compulsório (Estatuto, art.5º, §1); no direito de preempção (idem, art.25 § 1º; na outorga onerosa do direito de construir (idem,art.28-29); nas operações urbanas consorciadas (idem art.32); e na transferência do direito de construir (idem,art.35).

 

8.1. O Plano Diretor só recebe tratamento específico no Capítulo III, artigos 39 a 42, do Estatuto, apesar de permear todo o corpo da lei. Esta particularidade explica-se pela função de atribuir as condições de ordem publica e de interesse social a diversos institutos ou princípios habitualmente tratados pela “ordem privada”. Agora trazidos para a “ordem pública”, dá-se uma espécie de “transmutação” daqueles institutos, do individual para o coletivo(Estatuto Art.1º parágrafo único) em virtude da política urbana adotada pelo Estatuto ter “por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana”(Estatuto art.2º, caput)

 

Ressalta-se, pois, a importância do Plano Diretor pela sua própria abrangência de “instrumento básico”, em relação a toda a poítica urbana.

 

No Capítulo que lhe é especialmente dedicado vemos que a propriedade urbana cumpre a sua finalidade “quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”, envolvendo as próprias Diretrizes Gerais catalogadas no Artigo 2º do Estatuto.

 

8.2 Passa a ser aprovado,então,por lei municipal,na condição de “instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana”(Art.40 caput). Mas, como vimos anteriormente, é parte integrante do processo de planejamento municipal que, por isto, nele não se encerra. Suas diretrizes, ainda se incorporam no plano plurianual, nas diretrizes orçamentárias e no orçamento anual, para compor o planejamento municipal . Se aqueles têm outros objetivos próprios, ainda com o caráter de planejamento, ou de natureza financeira, é pela sua incorporação às diretrizes do Plano Diretor, diretamente relacionadas com as diretrizes gerais do Estatuto, que passam a fazer parte da política urbana de ordem publica e interesse social (Art.40 §1º).

8.3 Torna-se necessária, então, a delimitação de sentido entre “cidade” e “município”.[8] Quando o Estatuto fala que o plano diretor engloba o território do “município como um todo”, por certo quis abranger a “cidade” e outros elementos que a ela estejam ligados como as regiões metropolitanas, as aglomerações urbanas de pequeno porte e situadas além das fronteiras da cidade, a própria zona rural ligada à cidade, zonas de influencia desta, e assim por diante.

 

Estes elementos dão ao Estatuto o sentido da expressão “o município como um todo”. Este detalhe vai definir a extensão e a eficácia da lei municipal do Plano Diretor, no espaço (Art.40 § 2º).

 

8.4 Falamos, anteriormente, sobre a duração do plano e sobre a vigência da lei que o institui. O disposto no Estatuto deverá ser melhor regulamentado, em se tratando da lei do Plano Diretor. Sendo o “instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana”, envolverá outras tantas leis ou expedientes administrativos que se completam dentro do prazo de dez anos, estabelecido pelo estatuto, porém outros ultrapassarão este limite, e outros,ainda se farão necessários no próprio decorrer desse prazo.

 

É da natureza da política, o dinamismo. Este se expande para as diversas formas especiais de política, seja social,econômica, ambiental, ou praticamente de todas. Na própria medida em que é atingida a meta e satisfeito o objetivo, nova meta, com novo objetivo já se enunciam em decorrência daquela satisfação. O Plano pode ser tomado como satisfeito, porém restará estático ante o planejamento, que é eminentemente dinâmico, e sem o qual o plano deixa de ter sentido, ou retorna à condição de projeto, na seqüência dos acontecimentos.

 

Uma vez atingidos os pontos claramente apresentados para o Plano Diretor,estará encerrada a política pretendida pelo Estatuto da Cidade? Certamente, não. Como lidar juridicamente com este dinamismo?

 

Quando ainda eram obscuros os caminhos do planejamento democrático com os planos instituídos por leis, as reflexões recaíram sobre a natureza da lei do plano,[9] O jurista checo Konstantin Katzorov, dentre outros, pertencentes aos paises então socialistas,diziam que a lei do Plano é super-lei porque se impõe a todos e às demais leis. Argumentava-se, em sentido diverso, que nos paises democratas ocidentais só a Constituição tem esta característica. Não obstante, vimos nos Planos de Desenvolvimento Econômico entre nós, que a lei do Plano poderia sugerir a revogação ou a adoção de outra lei, como aconteceu com os textos sobre Sociedades Anônimas, motivado pela dinamização do mercado de capitais: foi revogado o decreto-lei 2.627,1940, e promulgada a Lei 6.404,1976 por sugestão do 2º PND. Se a lei do plano não for cogente, o próprio direito brasileiro terá evoluído a respeito pelo uso normal da revogação e da legislação. Por outro lado merece registro o artigo 174 da CF, em que o planejamento tornou-se “determinante para o poder público”, embora “indicativo para o setor privado”. Com o Estatuto, que “obriga” o Plano Diretor nas circunstâncias ali estipuladas, ainda mais se avança no sentido do efeito cogente da sua lei. (Estatuto Art.41).

 

8.5 Quanto ao conteúdo mínimo do Plano Diretor, temos a parte de urbanismo, com os parcelamentos, edificação ou utilização compulsórios, institutos habitualmente regidos pelo interesse individual, agora trazidos para o interesse coletivo, tais sejam a preempção, a outorga onerosa ao direito de construir, a autorização para alteração do uso do solo, a delimitação de áreas para operações urbanas consorciadas e a transferência do direito de construir.

 

 

9. OBRIGATORIEDADE DO PLANO

 

O Estatuto estabelece obrigatoriedade do Plano Diretor, introduzindo princípio que o retira da condição de simples norma programática. Esta peculiaridade traz como decorrência todos os efeitos da lei comum, especialmente as penalidades correspondentes à responsabilidade da sua elaboração, aprovação como lei, execução e avaliação.

 

Trata-se de inovação que contribui para a adoção do planejamento.

 

A definição de responsabilidades atinge os Poderes Executivo, representado pelos prefeitos, e o Legislativo, pelos vereadores. Medidas legais no sentido dessa obediência vão desde a inconstitucionalidade por omissão, improbidade administrativa e todos o outros modos de se furtar à pratica do ato imposto pela lei.

 

Dada a complexidade do procedimento, entretanto, ainda resta muito a experimentar para evitar os desvios. Assim, para a elaboração da “peça técnica”, como chamamos o projeto do plano a ser discutido, cuidadoso trabalho de sua divulgação deverá ser efetuado para que a população esteja devidamente inteirada, tanto da situação atual com referencia ao item a ser discutido e aceito, adiado ou reprovado, no tocante às possibilidades técnicas e orçamentárias. A participação popular traz novas exigências administrativas que os municípios tradicionalmente não possuem. A atuação das oposições exige dispositivos que evitem bloqueios ou impossibilidade de satisfação em tempo legal para os passos da sua efetivação. A colheita direta da opinião pública sobre cada problema deve garantir o verdadeiro objetivo por ela expedido, livre de manipulações e de efeitos artificiais decorrentes de propaganda enganosa, influências demagógicas e assim por diante, tão presentes na cultura política nacional

 

 

10. RESPONSABILIDADES E INFRAÇÕES

 

Justamente pela obrigatoriedade do Plano Diretor, que lhe confere efeito vinculante, o Estatuto também cuida das infrações aos seus dispositivos. Estão expostas no Cap.V - Disposições Gerais.

Inicialmente, quanto ao prefeito, caracteriza-se improbidade administrativa[10] (art.52) ao deixar de proceder, no prazo de cinco anos, a partir da data do Estatuto (10 de julho de 2001) o adequado aproveitamento do imóvel incorporado ao patrimônio público, por desapropriação; utilizar de modo inadequado as áreas obtidas por meio de preempção, mencionadas com referência ao interesse coletivo (Estatuto,art.26 e incisos); aplicar recursos auferidos com a outorga onerosa, a não ser com a regularização fundiária e a proteção de áreas de interesse histórico, cultural ou paisagístico (art.26,I e IX); aplicar recursos auferidos em ações consorciadas[11] fora do plano de ação consorciada (Estatuto art. 52 V e 33§1º ); impedir ou deixar de garantir os requisitos dos planos nacionais e planejamento municipal, em especial, onde se insere o Plano Diretor, (art.40§4º I a III); deixar de tomar providências para garantir a revisão do Plano Diretor cada vez que este complete 10 anos; adquirir imóvel objeto de preempção pelo valor de proposta apresentada, se esta for, comprovadamente, superior ao de mercado.

A mesma improbidade administrativa atinge os Poderes Legislativo e Executivo municipais pela garantia das medidas referentes à elaboração do Plano Diretor e à sua fiscalização e implementação; à promoção de audiências públicas e debates com a participação da população e de associações representativas dos segmentos da comunidade, a publicidade de documentos e informações produzidos, o acesso a qualquer interessado nos documentos e informações produzidos.

Estas referências às infrações acometidas ao estudo do Estatuto da Cidade remetem aos comentários anteriores com os quais assumimos posição aparentemente pessimista para com os objetivos nele identificados. O tom realista e não pessimista, porém, decorre da vivência com as tristes condições em que subsistem as populações de nossas cidades. Erros sobre erros, abandonos e desperdícios, demagogia e corrupção tornam a nossa realidade municipal o epicentro de todas as mazelas que o país enfrenta historicamente. Impossível esboçar quadro mais belo do que o que se vislumbra ao fechar os olhos, após a leitura do Estatuto da Cidade. Impossível tristeza maior do que a que se depara ao abrir os olhos logo em seguida. Sempre a corrupção, os descaminhos dos resultados dos impostos, a impostura dos prefeitos e vereadores inchando as cidades, pequenas e grandes, com medidas eleitoreiras e promessas enganadoras, que acabaram por desestruturar a economia nacional com o êxodo pelo abandono do meio rural sem a contrapartida das condições econômicas e sociais das populações migradas, ante o desemprego,nas cidades.

O Estatuto, com o planejamento vinculante, busca transformar a tradicional norma programática dos planos tradicionais, em lei viculante, pelo direito posto. Chega muito tarde, porém chega. Indagamos,apenas, se temos cultura popular e elitista para absorvê-lo. Corremos o risco de repetir acontecimentos anteriores, com “fabricantes” de Planos “fabricados” e vendidos por atacado, para serem comprados sem o menor intuito de atender à realidade. Submetidos a apreciação posterior, levavam a promessas políticas não cumpridas. Observados e aprovados pelos conhecidos processos de falsa consulta e não menos viciada resposta, não passavam de plataforma de candidatos a postos de mando.

O Estatuto da Cidade é, sem duvida, uma bela lei. Resta um profundo e certamente demorado trabalho de educação do povo, dos candidatos a postos de governo, para que o seu poder vinculante não se perca. Sendo lei vigente é necessário que se não busque a sua burla, como no velho adágio. Aos que o estudam e operam com crença e sinceridade, sempre ocorre aceitar e lutar pelos seus resultados. Esta é a legião dos idealistas, sem a qual, em lugar do direito só resta a barbárie, mais ou menos ilustrada.

 


[1] O presente artigo oferece leiturado “Estatuto da Cidade” sob o prisma do planejamento

[2] Doravante, a Constituição da República Federativa do Brasilde 1988 será citada pelas letras CF e a Lei 10.257, de 10 de julho de 2.001, denominada Estatuto da Cidade, será referida por Estatuto

[3] Paulo Bonavides, Teoria Constitucional da Democracia Participativa. Malheiros Editores, SP 2001.

[4] Washington Peluso Albino de Souza, “Lições de Direito Econômico”, Sergio Antônio Fabris Editor, Porto Alegre, RS, 2002

[5]Nelson Saule Junior, “Estatuto da cidade e o Plano Diretor - Possibilidades de uma nova ordem legal urbana justa e democrática”, in Estatuto da Cidade e Reforma Urbana: Novas Perspectivas para as Cidades Brasileiras, (Coletânea) LetíciaMarques Osório, organizadora, Sergio Antônio Fabris Editor, Porto Alegre, RS, pp.77 ss.

[6] Giovani Clark, O Município em Face do o Direito Econômico, Del Rey Editora, Belo Horizonte, 2.001 p.189 ss

[7] Camargo, Ricardo Antonio Lucas. A gestão democrática no Estatuto da Cidade: Generalidades, disponível em: http://www.fbde.org.br/gestao.html, acessado em 23/06/2005.

[8] Brasil Bandecchi, O Município E Sua Função Política , Editora Pannartz, S.P, 1983.

[9] Washington Peluso Albino de Souza, “Lições de Direito Econômico”, Sergio Antonio Fabris Editor,Porto Alegre, RS, 2002, p.203 ss..

[10]Lei 8.429, de 2 de junho de 1992

[11] Estatuto : considera-se operação consorciada o conjunto de operações e medidas coordenadas pelo Poder Público Municipal, com a participação de proprietários, moradores,usuários permanentes e investidores privados com o objetivo de alcançar em uma área transformações urbanísticas estruturais, melhorias sociais e a valorização ambiental (art.32 §1º).