PRISÃO POR DÍVIDA NO NOVO CÓDIGO CIVIL


PorEulampio- Postado em 09 outubro 2013

Autores: 
EULÂMPIO RODRIGUES FILHO

PRISÃO POR DÍVIDA NO NOVO CÓDIGO CIVIL

 

 

Eulâmpio Rodrigues Filho

Graduado pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU)

Doutor em Direito pela UMSA, de Buenos Aires

Ex-professor da Uniube e da Unirp

Advogado

 

 

Ao longo dos anos os juristas vêm criando toda sorte de argumentos com o objetivo de esclarecer que a figura do depósito entronizada na Lei da Alienação Fiduciária (D. L. 911/69) não tem lugar no sistema jurídico, fazendo-o mediante respeito à Constituição Federal e aplicação de Tratados internacionais, sobretudo o conhecido «Tratado da Costa Rica».

 

Visando a fazer parecer que tais ginásticas intelectuais são dispensáveis, há tempo escrevemos um pequeno artigo (Prisão civil sem Lei. Um equívoco), publicado na Revista Jurídica, de Porto Alegre,vol. 286, págs. 49 e segs., e pela Internet, onde propusemos que, por falta de previsão legal para o regime do «depósito» simplesmente referido no D. L. 911/69, não tem o contrato atinente como ser executado nos moldes estabelecidos pelo Código Civil de 1916, então em vigor, principalmente quanto à aplicação de pena de prisão.

 

Realmente, enquanto manteve-se vigente o Código Civil de 1916, qualquer decreto de prisão por infidelidade de depositário, decorrente de descumprimento de contrato com pacto de alienação fiduciária nos moldes estabelecidos pelo referido Decreto-Lei, mostrou-se arbitrário e ilegal.

 

Todavia, quando nos debruçávamos sobre o tema, já estava em formação o novo Código Civil, que no Projeto então aprovado pelo Senado já delineava a matéria em Capítulo específico – Propriedade Fiduciária – consolidando a matéria, de modo a que não houvesse chance mínima para se insurgir contra o despropósito que do caso advém.

 

Daí que, em tendo sido aprovada e sancionada a Lei relativa ao Novo Código Civil, o cidadão brasileiro passou a ter sobre si o império das XII Tábuas, sujeito, portanto, à prisão por dívida.

 

Consabido que tal espécie de constrição pessoal foi banida do sistema jurídico romano 4 (quatro) séculos antes de Cristo, através da conhecida Lex Poetelia Papiria, que nem Nero e nem Calígula ousaram revogar ou desconhecer, mas que, num país nascido 2.000 anos após, deixou de refletir a extraordinária conquista social alcançada pela humanidade.

 

Inescondível que a introdução do termo «depósito», nas disposições sobre a propriedade fiduciária, a despeito do atentado às raízes históricas do instituto, cujo conhecimento não exige sequer domínio da ciência jurídica, mas sensibilidade natural, apareceu no texto do Código de forma excrescente, aberrante, e de maneira a insurgir-se contra as mais elementares noções de Direito.

 

As obras jurídicas que apontam a impropriedade da inclusão da figura do depósito na relação com pacto de alienação fiduciária pululam por aí, demonstrando passo a passo, e sabiamente, a sua estranheza.

 

Todavia, um ponto que nos parece da maior relevância, a exsurgir de tal demasia, está no fato de o novo Código atribuir ao devedor fiduciante a condição de possuidor direto da coisa dada em garantia ao credor fiduciário, e ao mesmo tempo fixar-lhe as obrigações, num inocente após virgula, caracterizando-o «como depositário».

 

Ora, à luz da sedimentação jurídica, as figuras são absolutamente incompossíveis, pois, historicamente não há relação de posse entre o depositante e o depositário, já que num depósito sadio, aquele pode reclamar a coisa a qualquer tempo (art. 633 do Código Civil), através de ação de depósito, que não é possessória.

 

Pelo menos frente ao depositante, o depositário é mero detentor, pela «custodia rei» (v. Wandick Londres da Nóbrega, «in» Sistema do Direito Romano Privado, Rio, Freitas Bastos, 1955, pág. 385).

 

O novo Código reza, portanto:

 

«Com a constituição da propriedade fiduciária, dá-se o desdobramento da posse, tornando-se o devedor possuidor direto da coisa». [art. 1.361, § 2º, do Código Civil]

 

Empós, determina:

 

«... Antes de vencida a dívida, o devedor, a suas expensas, pode servir-se da coisa segundo a sua destinação, sendo obrigado, como depositário:

«I

«II – a entregá-la ao credor, se a dívida não for paga no vencimento» [art. 1.362 do mesmo Código].

 

Disto resulta que, se a lei outorga posse direta ao devedor, que já a exercia, convenhamos, essa posse prevalece «erga omnes» e interpartes, parecendo a figura do depósito, superveniente, neutralizadora da posse, um inescondível dislate legal, porque o devedor fiduciante não pode ser alçado a um só tempo à condição de possuidor e de detentor por força de depósito (v. a respeito, Ac. 1º TACSP, n. 428701-0/00).

 

Sente-se, no caso, contemplação evidente de prisão por dívida, pois, este último artigo de lei transcrito, e seu inciso, regram que a obrigação relativa à entrega da coisa no caso de falta de pagamento da «DÍVIDA» (está expresso) se faz sob regime de «depósito», que o novo Código, no Capítulo IX, do Título VI, do Livro I, regula com cominação de prisão (art. 652 do Cód. Civil).

 

Na forma tal como estabelecida no Código novo, o depósito não resulta da entrega da coisa sob esse regime, que aliás não ocorre, mas da falta de pagamento do débito.

 

Aliás, encabula como vem a regra jurídica regulando um instituto, e, ao fixar o tratamento das obrigações, transfigura aquele em outro, com duas palavras desnaturando por completo a relação que disciplina.

 

Claro que o comprador, o locatário, o comodatário, o fiador, nessas condições se obrigam como tais, e não, como se tivessem celebrado outra forma de contrato.

 

Isto faz pensar que o novo Código Civil brasileiro está sendo indiferente à evolução da raça humana, buscando firmar suas regras na gênese do direito, como no caso, inspirando-se na Lei das XII Tábuas, especificamente na Tábua III, 6 a 8.

 

Realmente, pelo novo Código Civil, pode o devedor moroso cair, por isso, prisioneiro através da mais clara «additio».

 

Daí por que não se tem dado atenção, e nem cumprimento a determinação legal de tal modo criada e elaborada, sendo omissão indescritível a falta de sua revogação formal.

 

Conclui-se dizendo que, nesta exposição, longe de oferecer ao debate tese em favor de quem não paga, como pode parecer aos demagogos não ligados ao Direito, estamos bradando em defesa de toda a sistemática jurídica pátria, que, com a manutenção do quadro em particular, aparece para o mundo como produto do arbítrio, e em desalinho com a evolução científica, de que não se deve afastar o homem civilizado, pois, como lembra Niceto Alcala Zamora y Castillo, «in» Estudios Procesales, Madrid, Editorial Tecnos, 1974, pág. 116,

 

 «la sustitución de un código por otro, pone sobre el tapete el conjunto institucional de un país».