SUSPENSÃO DA «CNH» E DO PASSAPORTE PELO JUÍZO DA EXECUÇÃO «BARBEIRAGEM JURÍDICA»


PorEulampio- Postado em 03 maio 2017

Autores: 
EULÂMPIO RODRIGUES FILHO

SUSPENSÃO DA «CNH» E DO PASSAPORTE

PELO JUÍZO DA EXECUÇÃO

«BARBEIRAGEM JURÍDICA»

 

 

Eulâmpio Rodrigues Filho

Graduado pela Universidade Federal de Uberlândia

Doutor em Direito pela UMSA de Buenos Aires

Pós-Doutor em Direito, Universidade de Messina - Itália

Membro da Sociedade Brasileira de Estudos Clássicos

Advogado

 

 

A Prof.ª Bárbara Mengardo apresentou a seguinte reportagem «in» Jusbrasil:

 

«Discutido e rediscutido, o novo Código de Processo Civil (CPC) continua sendo alvo de interpretações divergentes. São muitas as polêmicas surgidas com a edição da norma que rege o processo civil no Brasil, dentre elas a possibilidade de magistrados determinarem a suspensão da carteira de motorista e do passaporte de devedores

«A discussão, que decorre de um artigo que permite ao juiz aplicar ‘todas as medidas’ que assegurem o cumprimento da ordem judicial, começou a chegar agora aos tribunais de justiça. Um levantamento feito pelo JOTA encontrou diversas decisões desfavoráveis aos credores, e pelo menos duas em que os desembargadores aceitaram o pedido de suspensão.

«O assunto, de acordo com juízes e advogados, só deve ser resolvido com o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou do Supremo Tribunal Federal (STF), o que ainda não tem data para acontecer. As Cortes deverão definir se a metodologia é válida por coagir o devedor a pagar o que deve ou se a suspensão fere direitos fundamentais, como o direito de ir e vir.

«Devedores profissionais

«A polêmica a ser resolvida pelo Judiciário envolve o artigo 139 do CPC, que confere ao juiz a possibilidade de ‘determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial’. Com base no dispositivo, credores passaram a requerer a suspensão de Carteiras Nacionais de Habilitação (CNHs), passaportes e até créditos de programas como o Nota Fiscal Paulista de devedores. (...)

«No caso do artigo 139, alguns advogados consideram que o dispositivo possibilitaria o emprego de mecanismos ‘atípicos’ de cobrança. (...)

«As decisões favoráveis, porém, não são unanimidade em todos os Estados brasileiros. Uma pesquisa de jurisprudência revela que, em alguns tribunais de justiça, os desembargadores têm entendido que a suspensão fere direitos fundamentais e pode não ser efetiva. (...)

«[Decisões favoráveis ao bloqueio] misturam liberdade com patrimônio, e usam o cerceamento de liberdade como uma forma de ameaça’, diz.»

 

O art. 139 do novo CPC determina:

 

«O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe (...)

«IV – determinar todas as medidas indutivas, coecitivas, mandamentais, ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária.»

 

Salta aos olhos que a disposição transcrita localiza-se no art. 139, título IV, do livro III da Parte Geral do CPC de 2015, que regula os poderes e os deveres do juiz, seguindo o art. 143, do mesmo Título regulando suas responsabilidade (do juiz).

 

Antes viera, no mesmo Livro III, Título I, Capítulo II, Seções I e II, art. 77, as disposições relativas aos deveres e responsabilidades das partes e dos seus procuradores.

 

Com efeito, a indicação de sanções pelo descumprimento dos deveres pelas partes e ou procuradores vem nos §§ 2º e 7º do inciso VI, do art. 77 do CPC.

 

Demonstrado assim, através de uma pretensa organização tópica, como as regras se integram na elaboração do texto a reproduzir as determinações da processualística civil quanto aos deveres do juiz que preside ao processo, e as suas responsabilidades.

 

Em primeira plana tem-se que a aventura de se determinar suspensão e cassação de Carteiras Nacionais de Habilitação (CNH) e de Passaportes de executados persistentemente em mora ao curso do processo, sobretudo mediante invocação de motivo tolo, como o de que o executado em mora não pode viajar, a sugerir, daqui a pouco, a suspensão do plano de saúde com fundamento em que o executado não deve gozar de saúde, ou mesmo determinar proibição de abertura de campa para sua sepultura com substrato na idéia de que o devedor, ainda que falecido, não merece sepultamento.

 

Em segundo lugar tem-se que o art. 139 do novo CPC regula deveres do juiz, e não da parte, não valendo inverter a ordem da sua aplicação com relação ao art. 77 do mesmoCodex, que disciplina os deveres da parte.

 

Ferrarajá dizia, em clássica lição, que o sistema jurídico não é um aglomerado caótico de regras, e acrescenta-se aqui, à tão lapidar parêmia, a de que a exegese judicial, conforme explicação do extraordinário Roberto Lyra (Guia de Ensino e do Estudo de Direito Penal, Rio, Forense, 1956, págs. 43 e segs.), é um dos indispensáveis sustentáculos da ciência jurídica, incapaz, dizemos, por vocação, de revogar a ordem natural das coisas e mesmo de atentar contra o equilíbrio social através de atentados à Lei.» (Eulâmpio Rodrigues Filho, Website, Buscalegis, UFSC).

 

Ao fixar os «requisitos» necessários à execução, o art. 783 do CPC indica a representação do débito por título correspondente a obrigação certa, líquida e exigível, não se referindo à possibilidade de ser criada ou modificada através da imaginação do julgador, ainda que mediante provocação.

 

E esses títulos são judiciais ou extrajudiciais, mas legais.

 

Além da exigência do título no aspecto material, há a considerar que, quanto à expressão da obrigação correspondente, a Lei formula exigências para os casos em particular.

 

De fato, o Prof. Nelson R. Mora G., por exemplo, em sua clássica obra Procesos de Ejecución, Bogotá, Temis, 1973, 2ª ed., vol. I, págs. 89-90 explicita:

 

«Claridad en la obligación

«Concepto general. - La claridad, dei latín claritas, hace relación especialmente al aspecto noseológico y consiste em que la obligación sea fácilmente inteligible, que no sea equivoca, ni confusa, y que únicamente pueda entenderse en um solo sentido.

«Los escolásticos distinguían entre ideas claras e ideas oscuras. Para ellos, idea clara era la que distinguía o discernía un objeto de otro, individualizándolo e idea oscura la que no efectuaba ese discernimiento (...)

«II. Características. - Las características de la claridad Son las siguientes, respecto de la obligación: la intelegibilidad, es decir, que la redacción esté estructurada en forma lógica y racional; la explicitacción, o sea que lo expresado por cada uno de los términos consignados en el documento indiquen en forma evidente el contenido y alcance de la obligación.

«La precisión o exactitud, para significar que tanto el objeto de la obligación (en cuanto a su número, cantidad, calidad, etc,) como las personas que intervienen, estén determinados en forma exacta y precisa.

«Conforme a lo anterior, el objeto de la obligación debe estar expresado en forma exacta y precisa, las partes vinculadas por la obligación han de estar claramente determinadas e identificadas, debe existir certidumbre respecto del plazo y, finalmente, estar determinada la cuantía o monto de la obligación o que esta sea claramente deducible.

«Por consiguiente, la obligación no será clara cuando los términos sean confusos o equívocos; cuando exista incertidumbre respecto del plazo o de la cuantía, y cuando la relación lógica sea contradictoria o ambigua; en estos casos, el título no presta mérito ejecutivo.

«III – Conclusión. Conforme a las categorías antes enunciadas, la claridad debe emerger del título ejecutivo, sin que se requiera acudir a razonamientos u otras circunstancias aclaratorias que no estén consignadas en el título o que no se desprendan de él; es decir, que el título sea inteligible, explícito, preciso y exacto, y que, aparentemente, su contenido sea cierto, sin que sea necesario recurrir a otros medios de prueba.»

        

De sorte que a determinação legal da completude do título exeqüendo logo na oportunidade da propositura não atribui qualquer espécie de discricionariedade ao juiz, sobretudo a de criar novas obrigações, ainda que pessoais ao curso do processo, desbordando a ordenança e a natureza das medidas punitivas e indenizatórias dos arts. 77, 80 e 81 do CPC.

 

Outrossim, quando a Lei autoriza o magistrado a determinar à parte algum comportamento nessa seara, o faz com relação ao «objeto da execução», e não indistintamente, ao ponto de o decreto judicial implicar cerceamento de direito, como o de impedir à parte de se locomover nas ocasiões em que para tanto dependa de habilitação e/ou de passaporte.

 

O art. 772 do CPC reza:

 

«Art. 772. O juiz pode, em qualquer momento do processo (...):

«III – determinar que os sujeitos indicados pelo exeqüente forneçam informações em geral relacionadas ao objeto da execução, tais como documentos e dados que tenham em seu poder, assinando-lhes prazo razoável.»

 

Ademais, impõe-se observar que o Direito brasileiro contempla o princípio da responsabilidade pessoal ou da intransferência de penas desse naipe, impondo-se observar para o caso de o executado ser processualmente sucedido por força de cessão de crédito ou de sub-rogação, em que a suspensão ou apreensão da CNH ou do passaporte, com alteração da parte no procedimento conduziria a questão a uma situação de tal modo esdrúxula, a provocar desconcerto e convencer da ausência de habilidade na sua condução, como se pode extrair dos contextos expressivos dos arts. 109 e 778, § 1º-IV do CPC.

 

Esses, então, os motivos que repugnam a novel prática de se impedir efeitos à CNH e ao passaporte à guisa de cumprimento do art. 139 do CPC, como forma de se coagir o executado a cumprir a execução pendente de futuro julgamento.

 

Colocando em paralelo a pena de suspensão ou de cassação de direitos no caso, com a pena pecuniária, lembra-se do extraordinário Luigi Ferrajoli, que a classifica como pena aberrante sob vários pontos de vista; porque é impessoal, ou seja, duplamente injusta, «ao réu que não a quita e se subtrai» e qualquer um pode saldar, em relação a um terceiro (amigo ou parente) (Cfr. Sheila Maria da Graça Coitinho das Neves, «in» Âmbito Jurídico).

 

Doutro lado, parece interessante levar este debate para a área da ciência da interpretação, a fim de se propor que, relativamente a tal aspecto, as medidas punitivas utilizadas de tal modo descabido, com esteio naquelas autorizadas no inciso IV do art. 139 do CPC, fere também a ordem jurídica do país, não obstante a atecnia que envolve a norma, que aliás, ao ser utilizada serve para tudo que se possa imaginar ao curso de qualquer processo, tendo em vista a ausência de taxatividade de indicação de reprimendas e a sua condição de cláusula aberta, não extensível ao controle do comportamento da parte.

O ilustre professor de S. Paulo, Dr. Rubens Limongi França, «in» Formas e Aplicação do Direito Positivo, S. Paulo, RT, 1969, págs. 48 e segs. lembra:

 

«No primeiro caso, releva considerar o caráter geral da lei; o livro, título ou parágrafo onde o preceito se encontra; o sentido tecnológico-jurídico com que certas palavras são empregadas no diploma, etc. No segundo caso, importa atender à própria índole do direito nacional com relação a matérias semelhantes à da lei interpretada; ao regime político do país; às últimas tendências do costume, da jurisprudência e da doutrina, no que concerne ao assunto do preceito, etc. (...)

b) Regras do Direito anterior. As regras de interpretação segundo o Direito Positivo do regime anterior ao Código, encontram-se consolidadas por Carlos de Carvalho, especialmente no art. 62 de sua clássica obra Nova Consolidaçáo das Leis Civis, nestes termos: (...)

«§15. Violentas interpretações constituem fraude da lei. (...)

«a) Na interpretação deve sempre preferir-se a inteligência que faz sentido à que não faz.

«b) Deve preferir-se a inteligência que melhor atenda à tradição do direito. (...)

«e) Deve ser afastada a exegese que conduz ao vago, ao inexplicável, ao contraditório e ao absurdo.»

 

O mestre mineiro Alípio Silveira, «in» Hermenêutica no Direito Brasileiro, S. Paulo, RT, 1968, vol. I, págs. 184 e seg. proclama:

 

«Espínola considerava, porém, que a má interpretação pode atingir tal intensidade, ser ‘de tal maneira extravagante e absurda que equivale literalmente à recusa de aplicação.» (Pandectas, cit.).

«O Min. Carlos Maximiliano, a seu turno, assim descreve tais características:

«‘Também aparecem pseudas-exegeses, tão singulares e forçadas, que importam em postergação formal do preceito em apreço; impõe-se o recurso, para não faltar aos fins respectivos - para assegurar a preeminência e ‘incolumidade’ das leis da União em pretórios dos Estados’ (Comentários à Constituição de 1891, 3ª ed. pg. 607).

«O Prof. Jorge Americano assim configura aquela errônea interpretação que vem se confundir com a violação da lei:

«‘Notam-se às vezes as mais descabidas violações do texto expresso, o qual, embora invocado pelo juiz como regulador do assunto a decidir, é iludido por uma interpretação aberrante, escandalosa, propositadamente contrária ao intuito legal, sob o pretexto de que o espírito da lei assim o exige.’ (Da Ação Rescisória, ed. de 1922, nº 70, pg. 145).

 

A propósito do tema, na sua especificidade, o Professor João Calvão da Silva, de Coimbra, explicita (Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória, Suplemento do Boletim da Universidade, 1987, págs. 387 e segs.):

 

«A prisão por dívida, mesmo como meio de adstringir o devedor ao cumprimento da prestação, não era, pois, em regra, admitida e alguns dos raros casos em que expressamente era consentida por lei, como medida coercitiva, vieram posteriormente a ser abolidos. (...)

«Iria, pois, ao arrepio da tradição jurídica portuguesa e da sua linha evolutiva consagrar, como figura geral, a prisão coercitiva destinada a compelir o devedor ao cumprimento das obrigações, além de poder constituir, no decisivo plano dos valores e não na questão da inconstitucionalidade que a opção de política legislativa pela coerção patrimonial, com exclusão da coerção pessoal, encontra fundamento decisivo. (...)

«Em jeito de conclusão, podemos dizer que a preocupação da tutela da liberdade e da dignidade humana prevaleceu na opção feita pelo legislador de consagrar apenas a coerção patrimonial, sem revivescência da coerção pessoal, em harmonia, aliás, com a nossa tradição, com o figurino latino de que é modelo a astreinte – na evolução histórica do direito francês, contrariamente à do direito germano-anglo-saxónico, a tutela da dignidade do homem livre prevaleceu sobre a idéia de tutela da autoridade – e mesmo com a idéia de que quem responde pela dívida é o patrimônio e não a pessoa do devedor, traduzido, aliás, na sanção do ressarcimento do dano resultante do incumprimento da obrigação inexeqüível in naturaressarcimento do dano que incide, portanto, sobre o patrimônio e não sobre a pessoa do devedor.»

 

 

Conclusão

 

Num país em que se vendem leis e «decretos», que corresponde ao ato de atacar com armas químicas; num país em que o governo se apodera dos depósitos judiciais em plena «apropriação indébita»; num país onde se praticam amiúde licitações fraudulentas, e em que a prática da corrupção tornou-se um modus vivendi de grande parte dos gestores da coisa pública, razoável entender (através da hermenêutica criminosa «sic»), possível suprimir a liberdade de movimento dos executados judicialmente por dívidas pendentes de exame e de «futuro julgamento», mediante simples interpretação (interpretação), e não mera aplicação, de uma regra processual (CPC, art. 139) flexível, frouxa, bamba, via operação disparada dum ponto-de-vista (como se aprende com Leibniz) que se define a partir da posição privilegiada, alcançada por alguém através da porção de mundo que ele só aprendeu de maneira obscura/confusa, equiparando sensação (enferma) a objeto percebido (Descartes). Tudo de modo a sugerir acatamento da esdrúxula tese em voga, do abuso de autoridade, aí visto como abuso legal, jurídico, de arbitrariedade.