As ações afirmativas à luz das restrições indiretas


Pormathiasfoletto- Postado em 24 setembro 2012

Autores: 
ROCHA, Bruno Anunciação

 

 

Diante das diferenças constatadas entre certos grupos sociais, tem-se adotado cada vez mais as chamadas ações afirmativas, a fim de beneficiar aqueles considerados desfavorecidos ao longo da história.

A partir de critérios como origem, gênero, raça, etc., os grupos socialmente excluídos são beneficiados em detrimento daqueles que não o são.

Na prática, tais ações evidenciam a negação dos direitos de uns para garantir os de outros, o que implica em desrespeitar a condição de ser humano de cada indivíduo, já que nenhum homem pode ser tratado como instrumento para alcançar um fim, senão como um fim em si mesmo (KANT, 2004).

A questão que se propõe é analisar as justificativas até agora apresentadas pelos defensores das ações afirmativas, buscando demonstrar que elas não podem ser legitimamente impostas a todos.

O modelo atual de Estado Democrático de Direito reconhece o pluralismo e multiculturalismo inerentes à sociedade contemporânea, a partir de uma perspectiva democrática, preferindo a técnica de inclusão a da integração (GALUPPO, 2002).

Entretanto, partindo do pressuposto de que os recursos são escassos, garantir muitos direitos a todos se torna uma tarefa inviável, na medida em que demanda uma infraestrutura de coisas, equipamentos e atividades, sobre as quais outras pessoas podem ter direitos e titularidades (NOZICK, 2011). Assim, ao tentar reconhecer todos os projetos dos indivíduos, buscando efetivá-los na medida do possível (GALUPPO, BASILE, 2006), o Estado acaba invadindo a esfera de direitos de alguns para garantir direitos de outros, sem que aqueles sejam beneficiados em nada.

Exemplo disso são as chamadas ações afirmativas. Tratam-se de práticas voltadas à concretização do princípio da igualdade, entendida como maior inclusão, e à neutralização dos efeitos das discriminações (GOMES, 2002). Sua fundamentação está na compensação das perdas sofridas no passado por esses grupos e na necessidade de distribuição equitativa dos benefícios e ônus da sociedade.

É inadmissível, porém, que a vontade de uns se sobreponha a dos outros pelo simples argumento de que a decisão emana daqueles detêm poder. Tem-se nesse caso uma manifesta injustiça, já que não há diferença natural entre os que governam e os que são governados (KEYT, 1993), bem como não há entre os que são beneficiados e os que sofrem o prejuízo com a decisão. Com efeito, não existe nenhuma superioridade moral de outras vidas sobre as nossas que resulte em um bem social geral maior. No plano coletivo, nada justifica que alguns sejam sacrificados em nome de outros.

Não convence a tese de que alguns têm que arcar com custos que beneficiam mais outras pessoas, em nome do bem comum. Sendo o Estado uma entidade social, ela é formada por indivíduos, cada um deles com suas peculiaridades e vidas próprias. Dizer que se sacrifica a entidade social é pura ficção, já que o Estado em si mesmo não sofre com as restrições impostas. Quem sofre são justamente os indivíduos que tem seus interesses preteridos em benefícios de outros. Ninguém pode ser obrigado a suportar um prejuízo para favorecer terceiros. É importante sempre levar em consideração que cada um é uma pessoa distinta e possuidor apenas de uma vida. Sacrificá-los em nome de um “bem maior” não lhes traz nenhum benefício ou compensação, e ninguém tem direito de forçá-los a aceitar serem preteridos em benefício de outros, ainda mais se tratando de imposição vinda do Estado que, ao menos em tese, deve ser neutro no trato com seus cidadãos (NOZICK, 2011). É evidente neste caso a instrumentalização do ser humano, o que deve ser repugnado.

Essa instrumentalização dos indivíduos implica no que Nozick chama de utilitarismo de direitos. O utilitarista de direitos incorpora uma conduta que minimiza a quantidade total (ponderada) de violações de direitos na situação final pretendida. Para alcançar esse objetivo utiliza até mesmo meios que, eles próprios, violam direitos.

Como solução para o problema criado pelo utilitarismo de direitos, Nozick propõe as restrições indiretas. São limites à ação impostos pelos direitos dos indivíduos. Diferentemente da concepção utilitarista adotada pelos defensores das ações afirmativas, que coloca os direitos na situação final desejada, as restrições indiretas são anteriores aos objetivos finais. Refletem o princípio kantiano de que os indivíduos são fins e não simplesmente meios e por isso não podem ser sacrificados ou usados para realização de outros fins sem seu consentimento, pois são invioláveis. Em outras palavras, as restrições indiretas permitem toda a ação que não viole as restrições, para que o objetivo final seja alcançado da melhor maneira possível.

Nesse sentido, toda e qualquer ação estatal deve observar tais restrições, do contrário será ilegítima.

Analisando as ações afirmativas a partir das restrições indiretas, tem-se que são ilegítimas, pois ao colocar os direitos dos outros na situação final pretendida, admitem a violação deles a fim de reduzir o total de sua violação na sociedade. É evidente o cálculo utilitarista que as orienta.

Os argumentos utilizados em defesa das ações afirmativas são todos baseados em padrões ligados tão somente à situação final, o que mais uma vez evidencia seu caráter utilitarista. O primeiro deles, a busca pela igualdade, implica em desrespeito às restrições, já que de acordo com a concepção de justiça na distribuição das posses com base na titularidade (NOZICK, 2011), o Estado não pode agir para alterar a situação considerando apenas as circunstâncias sob pena de desrespeitar as posses legitimamente adquiridas e por consequência também desrespeitar as restrições indiretas. Nesse sentido, a busca pela igualdade não é condição para uma distribuição justa.

Ao se adotar a concepção de justiça na distribuição das posses com base na titularidade, não se faz necessária a existência de objetivos abrangentes, bastando os objetivos particulares das transações também particulares. Dessa forma, a equidade, entendida como dar a cada um o que é de direito, é preservada, evitando as distorções causadas pela adoção de padrões distributivos estranhos à titularidade, como ocorre nas ações afirmativas. Nesse sentido, o segundo argumento em defesa das ações afirmativas, que diz respeito à equidade, também se mostra inconsistente.

Por fim, em relação à suposta compensação das perdas sofridas no passado pelos grupos socialmente excluídos, faz-se necessário avaliar se tais perdas foram de fato ocasionadas por razões ilegítimas, que desrespeitam a teoria da titularidade, o que daria azo à retificação da injustiça (NOZICK, 2011). O simples fato de serem os membros desses grupos socialmente excluídos menos favorecidos do que outros membros de outros grupos não é suficiente para justificar a compensação proposta pelas ações afirmativas. Deve-se compensar tão somente a perda causada por razões ilegítimas utilizando as vantagens ilegitimamente obtidas. Assim, a suposta compensação proposta pelas ações afirmativas não é de fato uma compensação, senão uma exploração das pessoas que em nada contribuíram para as desigualdades sociais, mas que se vêem obrigadas a contribuir para sanar o problema sem receber benefício nenhum.

Importante dizer que as críticas trazidas por Nozick não negam a existência de desigualdades entre as pessoas, mas tão somente demonstram que a forma como o Estado tenta resolvê-las é ilegítima. Certo é que, diante da falta de uma varinha de condão para resolver o problema, "o último recurso remanescente para se alcançar a igualdade de oportunidades é convencer cada um a sacrificar alguns de seus bens em prol do objetivo" (NOZICK, 2011).

 

 

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

GALUPPO, Marcelo Campos, BASILE, Rafael Faria. O princípio jurídico da igualdade e a ação afirmativa étnico-racial no Estado Democrático de Direito – O problema das cotas. Brasília a. 43 n. 172 out./dez. 2006

KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes e Outros Escritos. São Paulo: Martin Claret: 2003.

KEYT, David. Aristotle and Anarchism. Reason Papers 18. 1993. Disponível em: <www.reasonpapers.com>. Acesso em: 12 de abril de 2012.

NOZICK, Robert. Anarquia, estado e utopia. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011.

SÉRGIO, Augusto dos Santos. Ação afirmativa e mérito individual. In: SANTOS, Renato Emerson dos; LOBATO, Fátima. UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO Laboratório de Políticas Públicas. Ações afirmativas: políticas públicas contra as desigualdades raciais. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.

 

Disponível em: http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/7423/As-acoes-afirmativas-a-...