Considerações acerca da privação da liberdade aplicada ao adolescente autor de ato infracional


PorJeison- Postado em 01 outubro 2012

Autores: 
PINHEIRO, Raphael Fernando.

 

Estabelece o ECA que são penalmente inimputáveis os menores de dezoito anos, estando o autor do ato infracional sujeito ás medidas previstas no estatuto.[1] Deste modo, o legislador afastou a criança e o adolescente do regime penal atribuído ao adulto, enquadrando-os em um microssistema jurídico próprio, diferente por tratar de pessoas em especial condição de desenvolvimento

Segundo o ECA, a criança autora de ato infracional[2] responderá pelas medidas previstas no art. 101,[3] já o adolescente responderá pelas medidas socioeducativas positivadas no art. 112, cujo o princípio fundamental é o caráter pedagógico, tendo como fim a reeducação e reinserção na sociedade:[4]

Assim, dispõe a legislação que:

“[…] Art. 112. Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas: 

I - advertência; 

II - obrigação de reparar o dano; 

III - prestação de serviços à comunidade; 

IV - liberdade assistida; 

V - inserção em regime de semi-liberdade;

VI - internação em estabelecimento educacional;

VII - qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI [...]”(sem grifos no original)

Apesar das medidas privativas de liberdade serem o foco desta abordagem, essencial é lembrar da importância das outras medidas para punir atos de incivilidades[5] e demais infrações quando for o caso, não transmitindo para o jovem a impressão de impunidade e também não contribuindo para o incentivo a novos atos infracionais.

De mais e mais, apesar da internação ser um lugar social que ameaça, assusta, produz experiências negativas, muitos adolescentes concordam que se não estivessem no estabelecimento de internação, provavelmente estariam mortos ou produzindo outras experiências no contexto da vulnerabilidade criminal. Os próprios internos tem consciência e afirmam que o envolvimento com o crime é um processo de difícil reversão.[6]

Somente poderá ser paciente de medida socioeducativa o adolescente a que se atribua autoria de uma conduta típica, extraída do ordenamento legal,[7] ressaltando que é a educação do infrator o ideal pedagógico da medida. Sob o ângulo dos direitos humanos das vítimas e dos vitimizadores, o caráter educacional da apenação é um ato de esperança frente a um indivíduo que se encontra em crise, privado de sua liberdade,[8] fornecendo a ele um caminho viável para sua reintegração à sociedade.

O fato de ter cometido um ato infracional não transforma o adolescente em um criminoso. Educar é sempre uma atitude de esperança. Havendo mais confiança nas pessoas, menos medo e mais esperança, é certo que se reduzirá a violência e o sofrimento na sociedade.[9]

 Kozen faz uma observação interessante a respeito caráter pedagógico da medida sócio educativa privativa de liberdade, pois o que:

“[…] importa afirmar é a crença de que há a real possibilidade da incidência de práticas pedagógicas como a principal tarefa do operador da medida socioeducativa, não só para minimizar os efeitos da perda da liberdade, mas também para alcançar ao adolescente os espaços de reflexão crítica para a percepção das causas de infração uma representação de si mesmo e do mundo do qual faz parte. Ou seja, antes de se sentir unicamente prisioneiro em face do ato infracional, tenha o adolescente, gradativamente, a noção de que se encontra inserido numa comunidade educativa, onde, ainda que privado de liberdade, terá espaço para questionar, cuidar e desenvolver o seu projeto de vida, para o que não lhe deverá faltar apoio e ajuda.”[10]

Antes de se aplicar qualquer medida restritiva à liberdade, o magistrado deve lembrar da condição peculiar de pessoa em desenvolvimento que caracteriza o adolescente, devendo evitar a utilização do pensamento destinado aplicação da pena à adultos. A medida a ser aplicada levará em conta a capacidade que o jovem tem de cumpri-la, as circunstâncias e a gravidade da infração, também considerando que a medida de internação em estabelecimento educacional só será decretada em último caso, quando não houver outra medida adequada.

As medidas restringentes de liberdade aplicadas ao adolescente não comportam prazo determinado, devendo haver uma reavaliação mediante decisão fundamentada, em um período não superior a seis meses, respeitando o tempo máximo de internação de três anos, ocorrendo a liberação compulsória aos vinte e um anos de idade.

Na aplicação das medidas de internação e de semiliberdade, diferentes das outras elencadas no art.112 do ECA, a pena será precedida de processo judicial, tendo em vista que “a privação de liberdade é um constrangimento que deixa profundas marcas em qualquer cidadão, quanto mais em um ser em situação especial de desenvolvimento”.[11] É garantindo ao adolescente o direito a ser citado ou comunicado sobre seu processo, assegurando-se a igualdade na relação processual, podendo confrontar-se com vítimas e testemunhas e produzir todas as provas necessárias à sua defesa. Será obrigatório a defesa técnica por advogado,[12] sendo decretada assistência judiciária gratuita e integral aos necessitados, também tem o jovem o direito de ser ouvido pela autoridade competente e de solicitar a presença de seus pais ou responsável em qualquer fase do procedimento.

O regime de semiliberdade poderá ser imposto desde do inicio do cumprimento da medida ou como relaxamento da internação. Nesse regime o adolescente recolhe-se a noite a um estabelecimento, mais durante o dia tem a liberdade para realizar atividades externas, como frequentar a escola e trabalhar, como exige o § 1° do art. 120 do ECA. As atividades externas independem de autorização judicial, até porque são inerentes ao  regime de semiliberdade, pois sem elas, ficaria caracterizado o regime de internação.[13]

O ECA, em seu art. 120, § 2º, dispõe que a medida de semiliberdade não comporta prazo determinado aplicando-se, no que couber, as disposições relativas à internação. A Doutrina apontas duas possibilidades na interpretação a respeito da expressão “no que couber”, a primeira é extensiva, referindo-se a todas as regras concernentes á internação (art. 121 ao 125), não apenas as refentes aos prazos (art.121). Noutra interpretação, de forma restritiva, a expressão remete-se só aos parágrafos 2º ao 6° do art. 121, que tratam dos prazos de internação, da reavaliação periódica do interno e do procedimento de sua liberação. Na interpretação restritiva ficam lacunas na disciplina de semiliberdade, sendo o art. 120 brevíssimo, a solução mais correta é o uso de uma interpretação extensiva.[14]

A medida de internação só será aplicada quando o ato infracional for cometido mediante grave ameaça ou violência a pessoa, por reiteração no cometimento de outras infrações graves ou por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta, neste último caso o prazo de internação não poderá exceder à três meses. Na falta do ECA definir o que seriam outras infrações graves, entende que são, em regra, os crimes apenados com reclusão. Sobre as infrações reiteradas, há que se considerar que não basta a simples inclusão dos “antecedentes” do jovem a ser fornecido pela autoridade policial, deve-se conhecer o número do processo, a data do trânsito em julgado da sentença que entendeu como devida a medida de internação etc.[15]

A respeito da aplicação da internação na situação do descumprimento reiterado e injustificável da medida, só será justo o seu uso quando tiver na causa, a vontade do adolescente em não cumprir a medida e não na falta de possibilidades materiais.[16] É  essencial sempre ouvir o adolescente para que possa justificar o não cumprimento da medida.

Nesse sentido, colhe-se da jurisprudência:

“agravo de instrumento – estatuto da criança e do adolescente – recurso ministerial visando obter a internação do adolescente com fundamento no artigo 122, iii, do E.C.A. pedido indeferido por confrontar-se com o disposto no artigo 110 do e.c.a. para a revogação da medida imposta ao adolescente, imprescindível é oportunizar-lhe a possibilidade de oferecer justificativa para o seu descumprimento, obedecendo-se com isto, ao devido processo legal. Recurso desprovido.” (TJSC – Agravo de Instrumento 98.005245-9 – Concórdia – 1ª Câmara Criminal – Rel. Des. Genésio Nolli – 24.11.98.).

O § 3° do art. 112 determina que os adolescentes portadores de deficiência mental receberão tratamento individual e especial, em local adequado ás suas características e necessidades, mas estão sujeitos as mesma medida aplicadas a outros jovens. No direito penal, as pessoas mentalmente deficientes não são imputáveis, sendo o objetivo do ECA diferente do disposto no código penal, o Estado aplica a medida ao adolescente portador de necessidades especiais, levando em conta suas peculiaridades. Vejamos:

Jurisprudência: “ MENOR – Infração – Medida sócio-educativa de semiliberdade - Admissibilidade – Comprovado comprometimento mental, em face de sérios problemas de conduta – Medida comodamente aplicada, com o devido resguardo dos interesses em sua melhor formação – Inexistência de contrariedade á lei ou a espírito do Estatuto da Criança e do Adolescente – Recurso não provido.

[...] O adolescente vem apresentando sérios problemas de conduta, devido a comprometimento mental; não se submete ás orientações da genitora, cometeu vários atos infracionais, seja agredindo fisicamente a mãe, seja praticando atos libidinosos com os irmãos menores (de 4 a 6 anos), dificultando sobremaneira a convivência do grupo; os estudos sociais e ambulatoriais revelam ser ele portados de distúrbios mentais preocupantes que, para serem superados, necessitam de tratamento severo e rígido, que se recomenda seja feito através da intervenção do Estado, pois o adolescente sempre demonstrou resistência as ordens da genitora”. (TJSP – Apelação Cível 14.841-0 – Câmara Especial - Rel. Des. Yussef Cahali – votação unânime – 02.07.92).[17]

Josiane Rose Petry Veronese advoga a tese de que a Lei n. 8.069/ 90 trata de uma norma insurgente, a qual consubstancia a ideia de que não é mais tolerável premiar a pobreza como punição, como fazia os códigos de menores anteriores (1927 e 1979). O Estatuto da Criança e do Adolescente inova trazendo uma concepção de responsabilidade social e estatuária, ele responsabiliza as condutas compreendidas como atos infracionais através das medidas sócio educativas, servindo-se de mecanismos, instrumentos de caráter social e educacional que objetivam a real inserção do adolescente que praticou o ato, sem discriminação, sem rótulos, sem a perversidade da exclusão social.[18]

Referências bibliográficas

AGLIARDI, Delcio Antônio. Histórias de vida de adolescentes com privação de liberdade: como narram a si mesmo e aos outros. 2007. 91 f. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal Do Rio Grande Do Sul, Porto Alegre, 2007.

CRAIDY, Carmem Maria e GONÇALVES, Liana Lemos. Medidas socioeducativas: da repressão á educação. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2005.

SARAIVA, João Batista Costa. Adolescente e ato Infracional: Garantias Processuais e Medidas Socioeducativas. Porto Alegre: Livraria dos Advogados Editora, 1999.

SEDA, E. M. O Novo direito da criança e do adolescente. Brasília: CBIA – MAS, 1993.

VERONESE, Josiane Rose Petry. Direito da criança e do adolescente. Florianópolis: OAB/SC, 2006.

Notas:

[1]AGLIARDI, Delcio Antônio. Histórias de vida de adolescentes com privação de liberdade: como narram a si mesmo e aos outros.

[2] O conceito (Dupâquier, 1999), refere-se ao delito contra objetos e propriedades, como estragos em caixas de correspondência, quebra de portas e vidraças, danificação das instalações elétricas, elevadores, móveis e equipamentos, prédios e veículos. Ressalta o comum quanto á danificação proposital de cabines telefônicas e até a provocação de incêndios e pichações. As incivilidades contra pessoas podem tomar a forma de intimidações físicas (empurrões, escarros) e verbais (injúrias, xingamentos e ameaças). ABRAMOVAY, Miriam; RUA, Maria das Graças. Violências nas escolas. Brasília: UNESCO.

[3] AGLIARDI, Delcio Antônio. Histórias de vida de adolescentes com privação de liberdade: como narram a si mesmo e aos outros.

[4] SARAIVA, João Batista Costa. Adolescente e ato Infracional: Garantias Processuais e Medidas Socioeducativas. Porto Alegre: Livraria dos Advogados Editora, 1999.

[5] AGLIARDI, Delcio Antônio. Histórias de vida de adolescentes com privação de liberdade: como narram a si mesmo e aos outros.

[6] CRAIDY, Carmem Maria e GONÇALVES, Liana Lemos.Medidas socioeducativas: da repressão á educação. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2005.

[7] KONZEN, Afonso Armando. Pernitência socioeducativa: reflexões sobre a natureza jurídica das medidas.

[8] VERONESE, Josiane Rose Petry. Direito da criança e do adolescente.

[9] Com vistas a possibilitar uma igualdade na relação processual, o Estatuto estabelece a obrigatoriedade da presença de advogado para os adolescentes, fato esse inovador, haja vista Menores essa presença era facultativa, prejudicando, principalmente, aquela parcela da população sem recursos para contratar um profissional da área [...].”VERONESE, Josiane Rose Petry. Direito da criança e do adolescente.

[10] VERONESE, Josiane Rose Petry. Direito da criança e do adolescente.

[11] VERONESE, Josiane Rose Petry. Direito da criança e do adolescente.

[12] VERONESE, Josiane Rose Petry. Direito da criança e do adolescente.

[13] VERONESE, Josiane Rose Petry. Direito da criança e do adolescente.

[14] VERONESE, Josiane Rose Petry. Direito da criança e do adolescente.

[15] VERONESE, Josiane Rose Petry. Direito da criança e do adolescente.

[16] VERONESE, Josiane Rose Petry. Direito da criança e do adolescente.

[17] VERONESE, Josiane Rose Petry. Direito da criança e do adolescente.

[18] VERONESE, Josiane Rose Petry. Direito da criança e do adolescente.

 

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