Conteúdo jurídico do meio de prova moralmente legítimo previsto no artigo 332 do código de processo civil : O uso do sêmen coletado na Reprodução Assistida


Porbarbara_montibeller- Postado em 03 abril 2012

Autores: 
LINS, Andrea Carla Veras

Resumo

 

                    Será discutido acerca da utilização do sêmen doado em processos de reprodução assistida na identificação do patrimônio genético, como meio de prova moralmente legítimo, de acordo com o artigo 332 do Código de Processo Civil e verificada a possível confrontação de direitos de todos os envolvidos e critérios de solução.

Palavras-Chave: reprodução assistida; meio de prova moralmente legítimo; direitos em colisão; necessidade de normatização.

 

INTRODUÇÃO

 

 

                    O tema a ser tratado pretende abordar o alcance da expressão meio de prova moralmente legítimo, constante do artigo 332 do Código de Processo Civil, sob a ótica da utilização do sêmen do doador na reprodução assistida, quando envolvendo situações de risco de morte ou no interesse da criança gerada.

 

                    Por outro lado, indaga-se quais seriam os critérios diante da colisão de direitos, pois de um lado está o direito ao nome e ao patrimônio genético da criança, do outro o direito ao anonimato do doador e a intimidade deste. Ainda há que se considerar a livre iniciativa e autonomia das clinicas de reprodução assistida e a vontade dos pais biológicos para que não reste afetada a paternidade sócio-afetiva.

 

                    Quanto à tratativa jurídica e legal da matéria, percebe-se que outros países já cuidam da questão, restando ao Brasil a regulamentação normativa, ressaltando a existência de diversos projetos de lei em trâmite no Congresso Nacional acerca da reprodução assistida.

 

                    O tema ganha especial relevo nos dias presentes diante de uma sociedade que exige, principalmente, da mulher, a realização profissional em primeiro lugar, o que faz com que seja postergada a maternidade.

 

                    Outrossim, há um verdadeiro bombardeio de informações através dos meios de comunicação, em especial a televisão, e através da internet, que estimulam idéias antes nunca encaradas como normais, como a figura da mãe solteira.

 

                    Assim, o trabalho busca levantar algumas possíveis causas e conseqüências advindas da utilização, em sede de processo judicial, do sêmen doado às clínicas de reprodução assistida, como meio de prova moralmente legítimo, não obstante ainda não haja disciplina específica no ordenamento brasileiro.

         

                   Dessa forma, será abordado o alcance da expressão contida no artigo 332 do CPC, seguindo-se da tratativa acerca do direito ao patrimônio genético identificado, como expressão do direito da personalidade e a reflexão acerca do confronto dos direitos dos envolvidos, apontando-se quais poderiam ser os critérios para solucionar as questões práticas surgidas.

 

Meio de prova moralmente legítimo previsto no artigo 332 do CPC. Alcance

 

                    Insta esclarecer, primeiramente, que ao se tratar da prova ter-se-á em mente os meios dos quais se utilizaria a parte para provar os fatos que alega, como por exemplo, a ouvida de testemunha. No caso específico, abordar-se-á a utilização do sêmen doado para identificação do patrimônio genético, seja só com o objetivo de identificar a paternidade biológica, seja em situações de doação de parentes compatíveis nos casos que representam ou possam representar risco de morte.

 

                    Dispõe, expressamente, o artigo 332 do CPC, que “Todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou a defesa.” (grifo nosso).

 

                    A verdade que se busca no processo é a mais próxima da real possível, daí porque, por exemplo, para a formação do livre convencimento do juiz, não só as partes poderão requerer a produção de prova, como o próprio magistrado tem condição de determinar a realização de provas ex officio (art. 130 do CPC), não obstante deva fazê-lo de forma fundamentada, já que vigora o Princípio dispositivo.

 

                    Quando se considera que o direito à prova está presente tanto na ação, quanto na defesa, e que pressupõe uma série de oportunidades previstas e delimitadas na legislação constitucional e infraconstitucional, poder-se-ia questionar se seria legítima uma prova produzida fora das hipóteses existentes. Ou ainda o que poderia ser enquadrado, ainda que não estivesse previsto expressamente no ordenamento pátrio, como meio de prova moralmente legítimo.

 

                    O certo é que a prova pode estar maculada desde a sua constituição, quando não é observada a regra de direito material, e não somente no momento em que produzida nos autos. Daí porque uma prova que “nasce” ilícita pode macular, inclusive, todas as outras que derivam dela. Entretanto, o juiz poderá, excepcionalmente, admitir provas que seriam consideradas ilegítimas, por contrariarem tão somente as regras processuais, utilizando-se de um juízo de proporcionalidade e razoabilidade.

 

                    A diferença na questão que envolve o uso do sêmen utilizado na reprodução assistida está no fato de que não há qualquer previsão ou regulamentação que o proíba, cabendo ao juiz observar critérios outros que não o legal, como a adequação, que implica a observância de que aquela prova que se determina a uma das partes do processo justifica-se pelos fins que ela alcançará.  

 

                    Não se pretende questionar o conteúdo do chamado sistema legal das provas, mas levantar a discussão no sentido de que o juiz poderá, dentro do critério da persuasão racional, determinar a produção e aceitação de determinado meio de prova, ainda que não previsto expressamente, tendo em vista que o Código de Processo Civil traz rol meramente exemplificativo.

 

                    Também não se busca discutir as diversas fases do procedimento probatório ou mesmo as chamadas provas nominadas (previstas expressamente), mas sim refletir acerca da possibilidade de utilização de outros meios de prova, que não os previstos pelo legislador, para garantir a efetivação de direitos fundamentais e o acesso à justiça, sempre calcado no Princípio da Proporcionalidade, considerando três elementos[1]: necessidade, adequação e o binômio custo-benefício.

 

                    Ao pensarmos o sistema processual brasileiro de forma sistêmica, numa análise conjunta com o texto constitucional, vemos que uma tutela jurisdicional justa, efetiva, passa pelo devido processo legal substancial, e consequentemente, por uma ampla defesa substancial.

 

                    Assim como os demais direitos, o direito à prova não possui caráter absoluto, encontrando limites na própria Constituição Federal, ao proibir, verbi gratia, o uso de provas ilícitas. Entretanto, não há qualquer vedação aos meios de prova moralmente legítimos, até porque se trata de expressão sem conteúdo jurídico delimitado.

 

Os direitos e garantias fundamentais, em regra, são relativos, e não absolutos. Esse é o posicionamento do Supremo Tribunal Federal. Embasado no princípio da convivência entre liberdades, a Corte concluiu que nenhuma prerrogativa pode ser exercida de modo danoso à ordem pública e aos direitos e garantias fundamentais, as quais sofrem limitações de ordem ético-jurídica.

[...]

A relatividade dos direitos fundamentais é, em grande parte, um problema de interpretação. Cada caso é único. Não é preciso sacrificar um direito fundamental em relação ao outro; basta que se reduz, proporcionalmente, o âmbito de alcance dos interesses em disputa, mediante a técnica da ponderação de valores.[2]

 

                    Isso quer dizer que todo aquele que busca o Judiciário, seja como autor, seja como réu tem a garantia de poder produzir a prova suficiente a garantir o seu direito constitucional, desde que legítima, moral, razoável, encontrando limites nos outros direitos constitucionais. Utilizando-se desses critérios, observado o caso concreto, é que se poderá definir se o meio de prova utilizado é moralmente legítimo ou não, focado em qual seja a finalidade buscada.

 

                    Segundo lição de Fredie Didier Jr, Rafael Oliveira e Paula Sarno Braga, existem três teorias que explicariam a finalidade da prova:

 

a) a que entende que a finalidade da prova é esclarecer a verdade; b) a que sustenta ser sua finalidade fixar formalmente os fatos postos no processo; c) a que entende que a sua finalidade é produzir o convencimento do juiz, levando-o a alcançar a certeza necessária à sua decisão.[3]

 

                    Ao pensarmos que o principal destinário da prova é o juiz, a prova teria como finalidade formar o seu convencimento, levando-o a decidir da melhor maneira e de forma mais justa. Dessa forma, a utilização do material colhido na reprodução assistida pode ser considerado meio de prova moralmente legítimo, a despeito de não estar previsto expressamente na legislação pátria (artigos 130 e 332 do Código de Processo Civil e artigo 212 do Código Civil).

 

                    E o que seria meio de prova moralmente legítimo? Este é o ponto nodal de toda a discussão, pois uma vez entendendo-se qual seja o conteúdo jurídico do meio de prova moralmente legítimo, poderá decidir-se se a utilização do sêmen para identificação do patrimônio genético seria aceito juridicamente.

 

                    Indo mais longe: a que se aplicar a razoabilidade/proporcionalidade na aceitação da produção de prova a viabilizar o direito à identidade genética, garantido por meio de exame com o sêmen coletado do doador, inobstante a previsão do direito ao anonimato e privacidade de quem doa.

 

                    No bojo do presente artigo a questão sobre o que seja moral ou mesmo o seu conteúdo não será aprofundada, já que a idéia é lançar a reflexão para posteriores discussões e avanços junto à classe jurídica, ressaltando que a expressão “meio de prova moralmente legítimo” possui conteúdo e alcance que permeiam o campo de equilíbrio entre direitos, garantias e realizações de todos os indivíduos envolvidos.

 

                    Ao analisarmos a moral e o direito em conjunto, de forma uníssona, poderíamos entender, por exemplo, como sendo moralmente legítimo todo o meio de prova que não anulasse o direito fundamental daquele que resiste à pretensão. Nas palavras de Andrew C. Varga, ao tratar da Ética da Lei Natural[4]:

 

[...] O homem é livre em muitas de suas atividades e pode agir livremente, de acordo com sua natureza racional ou, mesmo, opor-se a ela; ele pode agir de maneira humana e desumana. O ato moralmente bom é aquele que forma livremente em nós o genuinamente humano e nos leva para mais perto de nossa auto-realização. Atos que são conforme com nossa natureza são (atos) moralmente bons.

 

                    Imagine-se, por exemplo, o doador, que só fez a doação por ser garantido o anonimato e, após vários anos, tivesse que ser obrigado a fazer um exame, porque a criança gerada quer conhecer o pai biológico, aplicando-se, então, a presunção relativa prevista no artigo 232 do Código Civil. Estaríamos diante de direitos fundamentais em conflito ou colisão: direito à intimidade/privacidade e direito à identidade genética, que está incluído no direito ao nome (já erigido à categoria de direito da personalidade – artigo 26 do diploma material civil).

         

                   Ou ao contrário, o doador quisesse obrigar os pais da criança ou adolescente a fazer o exame, por querer incluir o indivíduo gerado na qualidade de seu sucessor, caso não tivesse herdeiros. Leila Donizetti traz interessantes questionamentos em seu livro:

 

Onde estaria, portanto, a dignidade dos doadores de sêmen que, premidos pela certeza de estarem fazendo uma boa ação - tal como as praticadas pelos doadores de sangue -, refutam a imposição de qualquer tipo de revelação sobre seus dados pessoais? E a dignidade do pai socioafetivo que, inicialmente não gostaria que a sua função de pai fosse ameaçada diante da possibilidade de o filho querer conhecer suas origens genéticas? Qual será o lugar-comum que permitirá a todas as partes envolvidas viver com dignidade?[5]

 

                    Em artigo publicado na revista eletrônica diálogo médico, há menção aos projetos de lei no Brasil, que tratam do tema quanto à identificação dos doadores de sêmen, pois há o temor que a possibilidade de identificação possa diminuir as doações, como já ocorreu em outros países.

 

                    O artigo traz o caso do garoto americano de quinze anos que mandou fazer o mapa genético num laboratório e de posse das informações, depois de nove meses, localizou dois homens com as características que buscava, descobrindo, ao final, quem era o seu pai biológico.[6]Segundo o que restou noticiado à época, gerou-se uma discussão: a criança gerada a partir de uma doação anônima de sêmen tem direito de conhecer o pai biológico? Em alguns países, como na Inglaterra, este direito virou lei[7].

 

                    Roberto Wider[8]aponta opiniões contrárias e favoráveis à inseminação artificial heteróloga (aquela realizada com sêmen de doador desconhecido). Interessantes alguns dos argumentos dos opositores mencionados no livro do autor, que se reputa conveniente destacar para enriquecer a discussão do que seria moralmente legítimo.

 

                    Os opositores à inseminação heteróloga argumentam que esta desestrutura a família, pois contraria a estrutura básica do matrimônio. Em contraposição menciona-se que o conceito de família restou ampliado com a Constituição Federal de 1988 (art. 226).

 

                    Sustentam, também, que há introdução de um ser formado sem o patrimônio genético do marido e que, caso não tenha havido consentimento deste, equivaler-se-ia ao adultério, o que encontra resistência no fato que não há relacionamento íntimo a configurar o crime.

 

                    Um outro ponto interessante é a alegação de que posteriormente pode haver repulsa do pai socioafetivo em relação ao filho e vice-versa. Neste caso, seria necessário o acompanhamento anterior de profissional da área de psicologia, o que não impediria a realização da inseminação.

 

                    De certo que são questões que não se limitam ao mundo jurídico, mas envolvem o conhecimento sociológico, psicológico, científico, e principalmente emocional. E somente todos esses fatores conjugados à questão jurídica, analisados e ponderados poderão estabelecer o que seja moralmente legítimo.

 

Direito à identidade genética como expressão do direito da personalidade.

 

                    É fato que nas últimas décadas houve uma mudança na concepção e objetivos de vida das pessoas, especialmente das mulheres, que passaram a colocar o sucesso e realização profissional em primeiro lugar, não mais existindo, tão somente, a idéia da dona-de-casa exclusiva.

 

                    Mas não só para as mulheres houve sensível rompimento de paradigmas e tabus. Os homens passaram a aceitar a idéia da contribuição da mulher na economia doméstica, sem contar a verdadeira invasão na vida do cidadão da internet e sites de busca, com uma quantidade infinita de informações.

 

                    Por óbvio que o desenvolvimento tecnológico, e em especial as técnicas de reprodução assistida, só tem razão de ser se voltadas para o bem-estar humano. Como bem esclarece Uadi Lâmego Bulos[9], a biociência e a sucessão de filhos gerados por inseminação artificial fazem parte dos direitos fundamentais de quarta geração, portanto merecem e impõem um tratamento específico de todas as esferas de Poder, inclusive do Poder Legislativo.

                    Essas questões são de suma importância para entender-se quão relevante tornou-se a discussão do direito à identidade genética, como efetivação do direito da personalidade, cuja disciplina consta explicitamente nos artigos 11 a 22 do Código Civil. Isso porque, a Constituição Federal e o Código Civil asseguram o direito ao nome e à intimidade. Por conta disso, o doador de sêmen fica anônimo, constando, tão somente, seus dados e características, que viabilizarão a escolha. É uma forma de proteger aquele que doa e não quer ser identificado, quanto aquele ser gerado, que criará um vínculo de afeto com os pais com os quais conviverá.

 

                    Entretanto, há uma diferença sensível entre “o não poder saber” e o “não querer saber”, como lembra Selma Rodrigues Peterlle[10]. Há de se questionar se o fato da criança, que posteriormente venha a ter conhecimento da sua origem biológica por meio de reprodução assistida, querer saber quem foi o doador, ou seja, seu pai biológico, não desnatura, nem destrói (em tese) a relação de afeto estabelecida. Novamente nos valemos da citada autora:

 

[...] A identidade pessoal é noção bem mais complexa e abrangente, com dois componentes, um referencial biológico, que é o código genético do indivíduo (identidade genérica), e um referencial social, este construído ao longo da vida, na relação com os outros.[11]

 

                    Por outro lado, há os que não aceitam a quebra do anonimato, por não haver certeza alguma de que o fato de a criança conhecer o pai biológico não afetará, efetivamente, uma relação de paternidade socioafetiva. Segundo a Resolução 1358/92 do Conselho Federal de Medicina, que instituiu normas éticas para a utilização da reprodução assistida, os doadores não devem conhecer a identidade dos receptores e vice-versa.

 

                    Todas essas reflexões e questionamentos, que gravitam na ordem ética, influem para se pensar acerca da efetivação de um direito à identidade genética como direito à personalidade, garantido desde a concepção (art. 2° do Código Civil), inobstante existam os direitos à intimidade e privacidade, que seriam parcialmente afastados para se permitir o uso do sêmen doado na comprovação do vínculo biológico.

A utilização do sêmen colhido na reprodução assistida e o direito ao anonimato do doador. Colisão de Direitos e critérios de solução para o conflito.

 

De forma breve, até por não ser o ponto específico do trabalho, é interessante salientar as formas de inseminação artificial, a fim de se ter em mente a dificuldade, na prática, de decisão em casos de recolhimento do material genético existente.

 

Existem duas formas de inseminação artificial: a homóloga e a heteróloga. Na inseminação homóloga, o material genético pertence ao casal interessado, quando, por exemplo, um ou ambos os parceiros têm problemas de fecundação natural. Na inseminação heteróloga, o sêmen ou óvulo é doado por terceira pessoa.

 

                    A fim de facilitar e especificar o estudo limitar-se-á à análise acerca da inseminação heteróloga e no caso de doador de sêmen, eis que as discussões de caráter jurídico e ético são mais frequentes, pois há maior possibilidade de questionamentos, verbi gratia, quanto à paternidade ou mesmo na necessária identificação da ascendência genética nos casos de preservação do direito à vida. Esse tipo de inseminação possui, dentre suas características principais, o anonimato de doadores e receptores, bem como de todo o processo.

 

Não se irá discutir a investigação de paternidade, mas sim demonstrar, que mesmo nas relações entre pais e filhos, afetivamente desenvolvidas, pode haver necessidade de se definir o patrimônio genético/ascendência genética, principalmente, quando pensamos no desenvolvimento da medicina e as reflexões diretas ou indiretas no direito à vida ao se prever, por exemplo, a predisposição a doenças de acordo com a ascendência genética ou quando há compatibilidade entre doador e receptor de órgãos e tecidos.

 

Como exemplo do surgimento das primeiras questões levadas ao Judiciário, transcrevemos in verbis, decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:

“NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. NULIDADE DO REGISTRO DE NASCIMENTO. ALEGAÇÃO DE INDUÇÃO EM ERRO. INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL HETERÓLOGA. LEGITIMIDADE ATIVA DOS HERDEIROS COLATERAIS. Legitimidade ad causam de quem tenha legítimo interesse moral ou material na declaração da nulidade do registro de nascimento. Ação que tem por base erro em que o pai foi induzido ao registrar o filho que pensava ser fruto de inseminação artificial heteróloga. Necessidade de se permitir o prosseguimento do feito, para eventual produção de prova do vínculo afetivo. Inexistência de prescrição. Sentença cassada. APELO PROVIDO PARA DETERMINAR PROSSEGUIMENTO DO FEITO.” (SEGREDO DE JUSTIÇA) (Apelação Cível Nº 70011878899, Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Maria Berenice Dias, Julgado em 14/09/2005)

 

                    Em geral, nas clínicas de fertilização, os bancos de sêmen são desenvolvidos a partir de doações espontâneas e gratuitas e o doador deve assinar um documento reconhecendo que jamais poderá saber se o seu esperma foi utilizado ou não. A mulher, por sua vez, deve abrir mão de conhecer a identidade do doador. Daí porque a argumentação quanto à possibilidade ou não de utilização do material coletado como meio de prova moralmente legítimo, quando o que se está em jogo é o próprio direito à vida ou identificação do patrimônio genético.

         

                    Não se pode falar em exclusão de direitos, mas na preservação do bem da vida. Mas é preciso levar em conta, também, a autonomia da clínica e do médico responsável, que se veria obrigado a entregar o material coletado. São questionamentos que impõem a análise da utilização da adequação, necessidade e proporcionalidade (stricto sensu) já mencionados. Guilherme Guimarães Felicianoao tratar da proporcionalidade estrita ensina[12]:

 

[...] O subprincípio da proporcionalidade estrita é, a um tempo, um princípio valorativo (rastreiam-se e identificam-se valores) e um princípio comparativo (sopesam-se fatos e valores). Ao operá-lo, o exegeta abstrai-se do mundo das coisas e projeta-se no mundo dos valores, para aí podnerar sobre as teses axiológicas que melhor comporão a Fallnorm; mas não o fará em livre exercício filosófico, pois deverá estribar-se no conjunto dos fatos que, concretamente, precipitaram o conflito entre direitos, bens e/ou valores juridicamente relevantes.[...].

 

                    A questão não é pacífica nem no Brasil, nem em outros países. A decisão a ser tomada é delicada, ainda mais por envolver direitos fundamentais de todos os sujeitos do processo: do doador, da clínica, do médico, dos pais e da criança gerada. De novo: é importante que o julgador tenha em mente os Princípios da Razoabilidade e Proporcionalidade, cuja solução será alcançada diante do caso concreto.

 

                    Já o legislador não poderá prever caso a caso, devendo achar uma medida que seja equilibrada, para não levar ao desencorajamento dos doadores que preferem, em geral, o anonimato. O anonimato não é para o gesto de doar, mas é para o que virá a partir dele, como ressaltou um doador em reportagem ao site do fantástico em 2005.[13]

 

                   No Brasil, a Resolução 1.358/92, do Conselho Federal de Medicina, regulamenta que os embriões excedentes não podem ser descartados etambém cuida do sigilo do doador. Mas a Resolução não estabelece o tempo máximo de congelamento. O fato é que os embriões dos doadores, em permanecendo à disposição das clínicas de fertilização, podem ser obtidos, ainda que se dependa de determinação judicial.

 

                   Dentre os projetos de lei que disciplinam as questões relativas à reprodução assistida (e especificamente acerca da possibilidade de utilização do sêmen do doador pela criança gerada) destaca-se o projeto de lei n

° 120/03, ao qual está apensado o PL n° 4686/2004. Ambos encontram-se arquivados e tratam, exclusivamente, da regulamentação do direito da criança gerada e da sucessão, não estabelecendo quais os limites e conseqüências relativas ao doador, aos pais, à clínica e ao médico responsável.

 

                   Igualmente não temos ainda um tratamento específico da matéria no âmbito dos tribunais, mas a jurisprudência aponta no sentido da análise do caso concreto, observando-se os valores envolvidos. Guilherme Guimarães Felicianocita vários julgados, que, a nosso ver, guardariam relação com o tema ora tratado, dentre os quais mencionam-se dois. O primeiro julgado abaixo cuida do meio moralmente legítimo de produção de prova[14]. E no segundo, discute-se acerca do direito ao nome[15]:

 

PROCESSO CIVIL. PROVA. GRAVAÇÃO DE CONVERSA TELEFONICA FEITA PELA AUTORA DA AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE COM TESTEMUNHA DO PROCESSO. REQUERIMENTO DE JUNTADA DA FITA, APÓS A AUDIENCIA DA TESTEMUNHA, QUE FOI DEFERIDO PELO JUIZ. TAL NÃO REPRESENTA PROCEDIMENTO EM OFENSA AO DISPOSTO NO ART. 332 DO CPC, POIS AQUI O MEIO DE PRODUÇÃO DA PROVA NÃO E ILEGAL, NEM MORALMENTE ILEGITIMO. ILEGAL E A INTERCEPTAÇÃO, OU A ESCUTA DE CONVERSA TELEFONICA ALHEIA. OBJETIVO DO PROCESSO, EM TERMOS DE APURAÇÃO DA VERDADE MATERIAL (A VERDADE DOS FATOS EM QUE SE FUNDA A AÇÃO OU A DEFESA). RECURSO ESPECIAL NÃO CONHECIDO. VOTOS VENCIDOS.
(STJ, REsp 9012-RJ, Rel. Min. Cláudio Santos, 24.2.1997, DJ 14.4.1997)
 
[...] O direito ao nome insere-se no conceito de dignidade da pessoa humana e traduz sua identidade, a origem de sua ancestralidade, o reconhecimento da família, razão pela qual o estado de filiação é direito indisponível, em função do bem comum maior a proteger, derivado da própria força impositiva dos preceitos de ordem pública que regulam a matéria (Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 27)
(STF, RE n° 248869-SP, rel. Min. Maurício Correa, 7.8.2003, DJ 12.3.2004, pág 38)
 
 

Conclusão

 

                    A realidade dos avanços científicos trouxe diversas conseqüências e mudanças ao mundo jurídico, não só do Brasil, mas de diversos países. E as técnicas de reprodução assistida influenciam e influenciarão um novo rumo na concepção do processo civil pátrio, especialmente quanto à produção da prova. Exemplo disso é a alteração promovida pelo Código Civil Brasileiro, que introduziu a previsão da paternidade por inseminações homóloga e heteróloga ao tratar da filiação (artigo 1.597).

 

                    Não obstante as objeções à escolha dos doadores, pelo entendimento de que se trata de eugenia positiva ou pelo prejuízo que possa causar aos processos de adoção, o fato que é a vida de várias pessoas ganhou maior significado com a possibilidade de formação de uma família e concepção de uma criança.

 

                    Ao caminhar pari passu com a evolução científica, o jurista, o magistrado, o legislador, os aplicadores do direito em geral dão maior efetividade a dispositivos legais. É necessário debruçar-se sobre qual seria o conteúdo jurídico da expressão “meio de prova moralmente legítimo”, contido no artigo 332 do Código de Processo Civil, pois como se trata de conceito com conteúdo indeterminado, a ser delimitado no caso concreto, deve haver a ponderação dos interesses envolvidos.

 

                    Não se pode aceitar que seja proibido à criança gerada com a reprodução assistida o direito de ter seu patrimônio genético identificado, mas ao mesmo tempo devemos verificar até que ponto o doador poderia ser constrangido no seu direito à intimidade e ao anonimato para ser satisfeito, em absoluto, o direito de terceiro, sem imaginar que isso afeta a vida familiar do próprio doador, ou ainda, a preservação da relação sócio-afetiva construída.

 

                    São questões delicadas, mas que clamam por uma regulamentação legal, sob pena de termos situações semelhantes definidas por órgãos diversos do Judiciário e de forma completamente divergente.

 

 

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[1]Os elementos são citados por Gisele Santos Fernandes Góes, em seu livro Princípio da Proporcionalidade no processo civil: o poder de criatividade do juiz e o acesso à justiça. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 115

[2]BULOS, Uadi Lâmego. Curso de Direito Constitucional. Atualizado até a Emenda Constitucional n. 53, de 19-12-2006. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 406-407

[3]DIDIER JR, Fredie. BRAGA, Paula Sarno. OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito Processual Civil. Salvador: Jus Podivm, 2007, vol. 2, p. 28.

[4]VARGA, Andrew C. Problemas de bioética edição revisada, traduzido por Pe. Guido Edgar Wenzel, S.J., São Leopoldo: Unisinos, 1998, p. 27

[5]DONIZETTI, Leila. Filiação Socioafetiva e Direito à Identidade Genética. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p.58

[6]Identificar ou não. 2007. Disponível em www.dialogomedico.com.br/dm/2007_01_02/secoes/polemica_PT.htm.> Acessado em 16.jun.2008.

[7]DOAÇÃO DE SÊMEN. 2005. <http://fantastico.globo.com/Jornalismo/Fantastico/00..AA1088690-4005-00.html>. Acessado em 30.jun.2008

[8]WIDER, R. Reprodução Assistida. Aspectos do Biodireito e da Bioética, Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2007, p.90-92

[9]BULOS, op.cit., p. 404

[10]PETTERLE, Selma Rodrigues. O direito fundamental à identidade genética na Constituição brasileira, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 118

[11]PETTERLE. op.cit., 2007, p. 111

[12]FELICIANO, Guilherme Guimarães.Direito à prova e dignidade humana, cooperação e proporcionalidade em provas condicionadas à disposição física da pessoa humana (abordagem comparativa), São Paulo: LTr, 2007, p.91

[13]DOAÇAO DE SÊMEN. 2005. Disponível em <http://fantastico.globo.com/Jornalismo/Fantastico/0..AA1088690-4005.00.html>. Acessado em 30.jun.2008

[14]FELICIANO, op. cit., pag. 96

[15]Ibidem, pag. 127