A controvérsia sobre a executividade das sentenças declaratórias


Porbarbara_montibeller- Postado em 03 abril 2012

Autores: 
PESSOA, Flávia Moreira Guimarães

1 - INTRODUÇÃO

 

O presente artigo visa a discutir a possibilidade de execução das sentenças meramente declaratórias, dentro do atual contexto das  técnicas de execução ensejadas pelas sucessivas reformas do código de processo civil.

Para atingir-se o objetivo proposto, o artigo é dividido em duas partes, sendo ao final expostas as conclusões.  Na primeira, é exposta uma diferenciação básica entre a natureza das sentenças declaratórias, constitutivas e condenatórias.  Na segunda, é enfrentada de forma específica a questão relativa à controvérsia ora objeto de discussão.

 

2 -  SENTENÇAS DECLARATÓRIAS, CONSTITUTITIVAS E CONDENATÓRIAS

Inicialmente, mister salientar a distinção entre sentenças declaratórias, constitutivas e condenatórias. Neste aspecto, salutar é a distinção entre os direitos potestativos (direitos formativos, na doutrina alemã) e os direitos a uma prestação. O direito potestativo consiste no poder que a lei concede a alguém para, com sua manifestação de vontade, influir sobre a condição jurídica de outrem, sem o concurso da vontade deste. Nele não existe o direito de exigir da outra parte a realização de uma prestação.  Nas palavras de Fredie Didier “Direito potestativo é o poder jurídico conferido a alguém de alterar, criar ou extinguir situações jurídicas” (DIDIER JÚNIOR, 2006, p. 191). Nos direitos potestativos, por manifestação unilateral de vontade, o titular do direito cria, modifica ou extingue uma situação jurídica em que outrem é diretamente interessado. Esses poderes se exercitam ora mediante a simples manifestação extrajudicial da parte (como por exemplo o direito de revogar o mandato) ora com o concurso de sentença judicial constitutiva (como exemplo o direito de promover a separação judicial ou divórcio).  Trata-se, contudo, de classificação criticada por parte da doutrina[1].

 

Os direitos potestativos podem ser exercidos extrajudicialmente ou através de ações constitutivas.  Eis, em síntese, a relação entre a ação constitutiva e dos direitos potestativos.  Com efeito, consoante ensinamento de Fredie Didier, “sempre que do processo resultar uma situação jurídica nova ou a modificação/extinção de uma situação jurídica já existente, o caso é de demanda constitutiva (DIDIER JÚNIOR, 2006, p. 191).

 

Em regra, as ações constitutivas operam efeitos ex nunc.  Contudo, excepcionalmente, há possibilidade de efeitos retroativos da ação constitutiva.  É o que ocorre com algumas ações constitutivas negativas, como é a hipótese da decisão que anula negócio jurídico (art. 182 Código Civil Brasileiro).

 

 

A ação condenatória, por seu tuno,  é aquela formulada quando se pretende obter do réu uma determinada prestação (positiva ou negativa), pois, correlato ao conceito de condenação é o conceito de prestação. Deste modo, um dos pressupostos da ação condenatória é “a existência de uma vontade de lei que garanta um bem a alguém, impondo ao réu a obrigação de uma prestação. Por conseqüência, não podem jamais dar lugar à sentença de condenação os direitos potestativos” (apud Amorim Filho, 1997, p. 16).

Fredie Didier Júnior (2006, p. 188) indica que a noção tradicional, historicamente situada, de ação condenatória era aquela na qual a sentença, “reconhecendo a existência de um direito a uma prestação e o respectivo dever de pagar, autorizava o credor, agora munido de um título, a, se quiser, promover a execução do obrigado”.  Contudo, assinala o autor que o tempo foi mostrando o equívoco de tal concepção, tanto que a partir da Lei 11232/05, todas as ações de prestação tornaram-se sincréticas, ou seja, não há mais necessidade de instauração de processo de execução de sentença, a qual será efetivada no próprio processo em que foi proferida a sentença.

Desta forma, podemos situar as “ações condenatórias” como um conceito jurídico positivo, uma vez que não se trata de conceito universal, mas ao contrário, de conceito contingente[2].  Aliás, tal contingência é ressaltada por Barbosa Moreira, que assinala que  a “diversidade de efeitos, universalmente observável nos vários sistemas procesuais, deve corresponder uma diversidade no conteúdo” (MOREIRA, 1977, P. 72)

 

De acordo com a doutrina tradicional, grande é a distinção entre as ações meramente declaratórias e as condenatórias.  As ações meramente declaratórias visam, segundo o ensinamento de Moacyr Amaral Santos (2001, p. 178) “a uma declaração quanto a uma relação jurídica”. Segundo o autor, “O conflito dentre as partes está na incerteza da relação jurídica, que a ação visa a desfazer, tornando certo aquilo que é incerto, desfazendo a dúvida em que se encontram as partes quanto à relação jurídica” (2003, p. 178).  Conclui, desta forma, o citado doutrinador que:

 

 A ação meramente declaratória nada mais visa do que a declaração de existência ou inexistência de uma relação jurídica. Basta a declaração de existência ou inexistência da relação jurídica para que a ação haja atingido a sua finalidade (2003, p. 178).

 

 

Nesse mesmo sentido a lição de Ovídio Batista da Silva:

 A tutela jurisdicional, enquanto tal, esgota-se com a simples emissão da sentença e com a correspondente produção da coisa julgada. O bem da vida, neste caso, para usarmos a terminologia chiovendiana, é justamente, e apenas, a obtenção de uma sentença com força de coisa julgada que torne absolutamente indiscutível, numa eventual demanda futura, a existência, ou a inexistência, daquela relação jurídica que o Juiz declara existir ou não existir (SILVA, 1998, P. 163).

 

 

Contudo, a doutrina mais atual defende que a diferença entre a ação condenatória e a ação meramente declarativa é muito sutil e deve ser entendida com algumas restrições, que serão vistas no item seguinte.

 

3 - É POSSÍVEL A EXECUÇÃO DA SENTENÇA MERAMENTE DECLARATÓRIA?

Grande é a discussão sobre a executividade da sentença meramente declaratória. Nesse aspecto, Didier Júnior (2006, p. 194-195) esclarece que em alguns casos a sentença meramente declaratória não detém executividade:

 

a)             Cabe ação meramente declaratória para reconhecer a autenticidade/falsidade de um documento (declaração de fato); b) cabe ação meramente declaratória para certificar a interpretação que se deve dar a uma clausula contratual; c) cabe ação meramente declaratória da existência de uma obrigação ainda inexigível (e que portanto, não poderia ser objeto de uma ação condenatória); d) cabe ação declaratória de constitucionalidade das leis (DIDIER JÚNIOR, 2006, P. 194-195).

 

Nos demais casos, “uma decisão judicial que reconhece a existência de um direito à prestação já exercitável (...) em nada se distingue de uma sentença condenatória” (DIDIER JÚNIOR, 2006, P. 194-195).  Isso porque tal sentença proferida em uma ação meramente declaratória tem força executiva.  Neste aspecto, tem-se que o art. 475 N, I do CPC, inserido pela Lei 11232/05, prescreve que é título executivo judicial a “sentença proferida no processo civil que reconheça a existência de obrigação de fazer, não fazer, entregar coisa ou pagar quantia”, ou seja, não há mais menção à sentença condenatória, o que deixa evidente que a ação meramente declaratória permite a instauração da tutela jurisdicional executiva.

Assim, o  parágrafo único do art. 4º do CPC deve ser entendido no sentido de que a sentença com base nele proferida tem força executiva, independentemente do ajuizamento de outro processo de conhecimento, de cunho condenatório.

Neste ponto, vale transcrever a Ementa que se segue, proferida em decisão paradigmática do STJ, cujo relator foi o Ministro Teori Albino Zavascki que tem específica produção bibliográfica sobre o tema:

 

PROCESSUAL CIVIL. TRIBUTÁRIO. VALORES INDEVIDAMENTE PAGOS A TÍTULO DE CONTRIBUIÇÃO PREVIDENCIÁRIA. SENTENÇA DECLARATÓRIA DO DIREITO DE CRÉDITO CONTRA A FAZENDA PARA FINS DE COMPENSAÇÃO. SUPERVENIENTE

IMPOSSIBILIDADE DE COMPENSAR. EFICÁCIA EXECUTIVA DA SENTENÇA DECLARATÓRIA, PARA HAVER A REPETIÇÃO DO INDÉBITO POR MEIO DE PRECATÓRIO.

1. No atual estágio do sistema do processo civil brasileiro não há como insistir no dogma de que as sentenças declaratórias jamais têm eficácia executiva. O art. 4º, parágrafo único, do CPC considera admissível a ação declaratória ainda que tenha ocorrido a violação do direito, modificando, assim, o padrão clássico da tutela puramente declaratória, que a tinha como tipicamente preventiva. Atualmente, portanto, o Código dá ensejo a que a sentença declaratória possa fazer juízo completo a respeito da existência e do modo de ser da relação jurídica concreta.

2. Tem eficácia executiva a sentença declaratória que traz definição integral da norma jurídica individualizada. Não há razão alguma, lógica ou jurídica, para submetê-la, antes da execução, a um segundo juízo de certificação, até porque a nova sentença não poderia chegar a resultado diferente do da anterior, sob pena de comprometimento da garantia da coisa julgada, assegurada constitucionalmente. E instaurar um processo de cognição sem oferecer às partes e ao juiz outra alternativa de resultado que não um, já prefixado, representaria atividade meramente burocrática e desnecessária, que poderia receber qualquer outro qualificativo, menos o de jurisdicional.

3. A sentença declaratória que, para fins de compensação tributária, certifica o direito de crédito do contribuinte que recolheu indevidamente o tributo, contém juízo de certeza e de definição exaustiva a respeito de todos os elementos da relação jurídica questionada e, como tal, é título executivo para a ação visando à satisfação, em dinheiro, do valor devido.

4. Recurso especial a que se nega provimento. (Origem: STJ,Classe: RESP - RECURSO ESPECIAL - 588202, Processo: 200301694471 UF: PR Órgão Julgador: PRIMEIRA TURMA, Data da decisão: 10/02/2004, DJ DATA:25/02/2004 PÁGINA:123, Relator(a) TEORI ALBINO ZAVASCKI)

 

 

4 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

A partir dos elementos expostos, pode-se verificar que, embora ainda controvertida tal posição, vem ganhando destaque a tese de que as sentenças meramente declaratórias têm eficácia executiva, podendo, portanto, ser objeto de cumprimento de sentença, na forma do art. 475 N do Código de Processo Civil.

 

5 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

 

 

AMORIM FILHO, Agnelo.“Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis”. Revista dos Tribunais. São Paulo: RT, 1997, n. 744.

DIDIER Jr., Fredie. Direito processual civil.6a ed. Salvador: Edições JUSPODIVM, 2006, v. 1.

DINAMARCO, Cândido Rangel.Instituições de Direito Processual Civil. 3ª ed. São Paulo: Malheiros Ed., 2003, v. 1 e 2.

LÔBO , Paulo Luiz Netto . Direito Ao Estado De Filiação E Direito À Origem Genética. Disponível em : http:www.direitodafamilia.net. Acesso em 15.04.06.

MOREIRA, José Carlos Barbosa. “Reflexões críticas sobre uma teoria da condenação civil”. Temas de direito processual. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 72-80.

SILVA, Ovídio Baptista da.Curso de processo civil. São Paulo: RT, 2003, 3v.

SANTOS, Moacyr Amaral.Primeiras linhas de direito processual civil. 23ª ed. São Paulo: Saraiva, 2003, v. 1.

SILVA, Ovídio Batista. Curso de Processo Civil. São Paulo: RT, 1998

TERÁN, Juan Manuel.  Filosofia del Derecho.  7.ed. México: Porua, 1977.

TESHEINER, José Maria Rosa.  Sobre a natureza e efeitos da pronúncia de inconstitucionalidade em tese.  Disponível em :http://www.tex.pro.br/ wwwroot/03de2004/obreanaturezaeefeitosdapronunciadeinconstitucionalidade.htm  Acesso em: 12.04.06.

 




[1]A categoria dos direitos potestativos, embora admitida por vários autores, principalmente na Alemanha e na Itália, também tem sido muito combatida.  Nesse aspecto, vale citar a lição de Chiovenda (apud Amorim Filho,1997, p. 12), que ao redigir as suas Instituições de Direito Processual Civil, afirmou que “... as vivas controvérsias dos últimos anos em torno aos direitos potestativos agora se aplacaram e a categoria pode considerar-se em definitivo, também na Itália, reconhecida pela doutrina e pela própria jurisprudência, que lhe consagrou a utilidade prática em importantes aplicações” Segundo Agnelo Amorim  Filho, as principais objeções feitas à existência dos direitos potestativos são as seguintes: “alega-se que eles nada mais são do que faculdades jurídicas, ou, então, manifestações da capacidade jurídica, e que não se pode admitir a existência de um direito ao qual não corresponda um dever”. (Amorim Filho,1997, p. 12)

 

[2]Sobre o tema, vale lembrar a lição de Juan Manuel Terán: “todos os conceitos jurídico positivos somente são aplicáveis a uma esfera de validade determinada quanto ao espaço e determinada quanto ao tempo em sentido histórico” (TERÀN, 1977, p. 81, tradução nossa).  Por seu turno, “quando se formula um conceito lógico que serve de base para a conceituação jurídico positiva, essa noção se formula com pretensão de validade universal” ”(TERÀN, 1977, p. 81, tradução nossa).