De Dworkin a Ávila: breves notas sobre o conceito de princípios e regras


PorJeison- Postado em 25 março 2013

Autores: 
JARDIM, Rodrigo Guimarães.

 

I. Considerações iniciais

 

                   A doutrina debruça-se há bastante tempo sobre a definição conceitual de princípios e regras, bem como sobre a existência de hierarquia, normativa ou interpretativa, entre eles. Esse é o tema deste ensaio, breves notas sobre o conceito de princípios e regras.

 

II. A distinção conceitual entre princípios e regras 

 

A primeira menção ao significado de princípio é apresentada pelo cristianismo no livro Gênese da Bíblia Sagrada – “no princípio, Deus criou os céus e a terra”[1] –, o que oferece a idéia de começo de tudo. A palavra tem sua origem no latim principium e é explicada na língua portuguesa como início, começo, origem, ponto de partida[2]. Na noção jurídica não há como falar em princípio sem referir o conceito de Bandeira de Mello:

 

Princípio [...] é, por definição, mandamento nuclear de um sistema, verdadeiro alicerce dele, disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, exatamente por definir a lógica e a racionalidade do sistema normativo, no que lhe confere a tônica e lhe dá sentido harmônico.[3]

 

A difusão da idéia de “mandamento nuclear de um sistema” é tamanha nos bancos acadêmicos da graduação que a sua vinculação mental a princípio é automática. Também pudera, não se vislumbra equívoco nesse conceito, senão pela sua amplitude.Hodiernamente, na prática forense, independentemente da discussão acadêmica, tem-se chamado algum instituto de princípio como método de retórica, para reforçar a importância de determinado mandamento. Exemplo disso é a determinação do Código de Processo Civil de se conservar as testemunhas de um processo em locais onde as que ainda não foram ouvidas não possam ouvir o testemunho das demais. A nós, até com certa obviedade, parece se tratar de uma regra. Todavia, com a finalidade de lhe conceder maior importância, é comum chamá-la de princípio da incomunicabilidade das testemunhas, com a ambição de ampliar a sua relevância.

 

Aprofundando a definição de princípios e regras, é interessante discorrer sobre a contribuição dos seguintes juristas: Larenz, Dworkin, Alexy e Humberto Ávila.

 

A colaboração de Larenz consiste na diferenciação da estrutura dos princípios e das regras. Para ele, estas são caracterizadas por uma estrutura hipotético-condicional, ou seja, o dispositivo da norma prevê um preceito primário e um secundário. O preceito primário é o acontecimento no mundo dos fatos previsto abstratamente na lei, que, juridicamente, terá como conseqüência o preceito secundário quando da sua ocorrência. Assim, se e quando a pessoa nascer com vida, adquirirá a personalidade civil (art. 2º do Código Civil brasileiro). Os princípios, em sentido oposto, teriam o seu dispositivo estruturado de forma genérica, como, por exemplo, o princípio do contraditório, ao prever que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” (art. 5º, LV, CF/88)[4].

 

Já Dworkin distinguiu princípios e regras por meio do modo ou da quantidade de incidência num conflito normativo. As regras, exatamente por terem seus dispositivos estruturados de forma hipotético-condicional, incidiriam na sua totalidade ou não incidiriam (tudo ou nada). “Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão”[5]. Os princípios, por outro lado, possuiriam uma dimensão de peso ou importância e, havendo uma colisão entre eles, “aquele que vai resolver o conflito tem de levar em conta a força relativa de cada um.”[6]

 

Alexy, desenvolvendo a tese de Dworkin, apresentou a ponderação e a introdução de regras de exceção como meio de solucionar a colisão entre princípios e regras. Nos casos de conflito de regras, a solução dar-se-ia por meio da declaração de invalidade de uma delas (tal como proposto por Dworkin), mas somente na impossibilidade de se introduzir uma terceira regra que excepcionasse as duas conflitantes (cláusula de exceção)[7]. Já na hipótese de colisão principiológica, para Alexy, um princípio deverá ceder para a aplicação do outro, mas sem que isso signifique a declaração de invalidade de um deles, nem a introdução da exceção[8], tendo em vista o fato de as regras trazerem mandamentos definitivos, de modo que eventual conflito se dá no plano abstrato, e os princípios trazerem mandamentos prima facie, com eventual conflito ocorrendo no plano concreto. Em suma, a distinção para Alexy dar-se-ia em dois momentos: o primeiro seria a colisão, já que os princípios se limitariam reciprocamente e as regras se excluiriam ou seriam excepcionadas; o segundo momento, decorrente do primeiro, seria a densidade normativa, visto que as regras estabeleceriam mandamentos absolutos e os princípios, mandamentos relativos (ou relativizáveis no caso concreto)[9].

 

A explanação feita até agora representa o pensamento mais difundido sobre o conceito de princípio e sobre os traços que o distinguem das regras. No entanto, o jurista Humberto Ávila publicou um estudo no ano de 2003 no qual questiona os parâmetros apontados e apresenta uma nova concepção sobre a distinção entre princípios e regras. O trabalho de Ávila tem como premissa básica a separação entre o dispositivo legal e a norma[10]. O dispositivo consiste no texto escrito tal qual posto pelo legislador. Assim, o dispositivo do art. 121 do Código Penal é “matar alguém”, mas, como a norma é o resultado da interpretação do dispositivo, a norma contida no texto legal seria “é proibido matar”.

 

Com base nisso, o jurista tece críticas que podem ser assim sintetizadas[11]:

 

1) A distinção entre princípios e regras baseada na estrutura (abstrata e hipotético-condicional, respectivamente) seria equivocada porque do dispositivo seria possível, por meio da interpretação, extrair-se uma norma-regra ou uma norma-princípio. Um exemplo bastante interessante é a legalidade penal, que, como princípio, protege o valor segurança jurídica, mas está consagrado por meio da regra “não há crime sem lei que o defina, nem pena sem cominação legal”;

 

2) A afirmativa peremptória de que as regras incidiriam no modo “tudo ou nada” é falsa. Isso foi reconhecido pelo STF no HC 77.003-4 ao deixar de aplicar, fundamentadamente, a regra exigente de concurso público para admissão de servidores, sem que fosse considerada inválida e sem que houvesse outra a excepcionando. Entretanto, o jurista admite a necessidade de um “ônus de argumentação capaz de superar as razões para aplicação da regra”;

 

3) É possível um conflito concreto de regras sem que haja exclusão de uma delas do sistema (invalidade). É exemplo o conflito entre a norma do Código de Ética de Medicina que determina ao médico informar toda a verdade ao paciente sobre sua doença com a que exige que se utilizem todos os meios possíveis para curá-lo. O que fazer quando prestar todas as informações sobre a doença diminuem as chances de cura? Este caso é solucionável pela ponderação.

 

Depois de questionar a doutrina mais difundida sobre princípios e regras, Humberto Ávila propõe a sua definição sobre as espécies normativas, levando em conta três fatores essenciais.

 

O primeiro fator essencial de definição é o modo como a norma prescreve o comportamento. Os princípios teriam como dever imediato a promoção de um estado ideal de coisas, enquanto as regras teriam a adoção da conduta descrita. Em outras palavras, o princípio estabelece um fim a ser atingido, facultando ao hermeneuta a elaboração de uma regra que alcance tal finalidade. Já as regras, de forma mais simples, exigiriam que determinada conduta fosse adotada porque o legislador não quer só a realização de um fim, mas, sim, a realização de um fim de acordo com o modo por ele escolhido[12].

 

O segundo fator essencial consiste na natureza da justificação exigida. Para a aplicação dos princípios o intérprete deve demonstrar o fim almejado pelo princípio e, principalmente, que o meio por ele escolhido (regra estabelecida) é adequado para tanto. A aplicação das regras, por sua vez, depende da demonstração de correspondência entre o conceito da norma e o conceito dos fatos, pois a decisão já foi tomada pelo legislador[13].

 

O terceiro fator essencial refere-se ao modo como contribuem para a decisão. Os princípios seriam primariamente complementares e preliminarmente parciais, porque abrangem apenas parte dos aspectos relevantes para uma tomada de decisão, não tem a pretensão de gerar uma solução específica, mas de contribuir, ao lado de outras razões para a tomada de decisão. As regras, ao contrário, seriam preliminarmente decisivas e abarcantes, pois pretendem abranger todos os aspectos relevantes para a tomada de decisão e têm a aspiração de gerar uma solução específica para o conflito de razões [14].

 

III. Considerações finais

 

Com base no exposto, acredita-se que, dentre os renomados doutrinadores citados, Humberto Ávila conseguiu definir com maior precisão o conceito de princípios e regras. Segundo ele,

 

regras são normas imediatamente descritivas, primariamente respectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios que lhes são axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos.

 

Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementariedade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária a sua promoção.[15]

 

Essa é, portanto, a noção de princípios e de regras que, a nosso ver, encontra maior robustez e precisão na fundamentação técnica, embora se admita que a teoria de Dworkin, complementada por Alexy, continua tendo um número maior de defensores.

 

Notas:

[1] BÍBLIA Sagrada. 96. ed. Trad. Centro Bíblico Católico. São Paulo: Ave Maria, 1995, p. 49.

[2] GRANDE Enciclopédia Larousse Cultural. São Paulo: Círculo do Livro, 1988. v. 24, p. 4879.

[3] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito administrativo. 16. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 817-818.

[4] Larenz apuda Ávila (apud AVILA, 2006, p. 35-36)

[5] DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. Tradutor Nelson Boeira, coleção Justiça e direito, p. 39.

[6] Ibidem, p. 42.

[7] ALEXY, Robert. Teoria de los derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estúdios Constitucionales, 1993, p. 88.

[8] Ibidem, p. 89.

[9] Ibidem, p. 38.

[10] ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 30.

[11] Ibidem, p. 40-53.

[12] Ibidem, p. 71.

[13] Ibidem, p. 73.

[14] Ibidem, p.76.