Dever de prender em flagrante durante o período de folga do policial


Pormathiasfoletto- Postado em 06 novembro 2012

Autores: 
PEREIRA, Marcio Ferreira Rodrigues

 

 

Neste breve estudo, desejamos responder à seguinte questão: o agente policial, durante o período de folga, licença ou férias, tem o dever de prender em flagrante?

Primeiramente, é preciso lembrar que, segundo o art. 301, caput, do Código de Processo Penal, enquanto os particulares têm a faculdade de prender quem quer que se encontre em situação de flagrante delito1 (chamado de flagrante facultativo2), os agentes (policiais militar, federal, rodoviária federal e civil) e autoridades policiais (civil e federal) têm o dever de agir (flagrante compulsório). Segue o dispositivo: Art. 301. Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito.

Esse dever de agir significa, portanto, que diante de uma situação de flagrante delito, agentes e autoridades policiais têm a obrigação de atuar imediatamente, prendendo em flagrante delito o indivíduo.

Entretanto, esse dever de agir de forma imediata é abrandado por dois diplomas legais: Lei do Crime Organizado (L. 9.034/95) e Lei de Drogas (L. 11.343/06), que, respectivamente, dizem o seguinte:

Crime organizado

Art. 2o Em qualquer fase de persecução criminal são permitidos, sem prejuízo dos já previstos em lei, os seguintes procedimentos de investigação e formação de provas: (Redação dada pela Lei nº 10.217, de 11.4.2001)
II - a ação controlada, que consiste em retardar a interdição policial do que se supõe ação praticada por organizações criminosas ou a ela vinculado, desde que mantida sob observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz do ponto de vista da formação de provas e fornecimento de informações;

Drogas

Art. 53. Em qualquer fase da persecução criminal relativa aos crimes previstos nesta Lei, são permitidos, além dos previstos em lei, mediante autorização judicial e ouvido o Ministério Público, os seguintes procedimentos investigatórios:
II - a não-atuação policial sobre os portadores de drogas, seus precursores químicos ou outros produtos utilizados em sua produção, que se encontrem no território brasileiro, com a finalidade de identificar e responsabilizar maior número de integrantes de operações de tráfico e distribuição, sem prejuízo da ação penal cabível.
Parágrafo único. Na hipótese do inciso II deste artigo, a autorização será concedida desde que sejam conhecidos o itinerário provável e a identificação
dos agentes do delito ou de colaboradores.

Ou seja, nesses casos (crime organizado e drogas), excepciona-se a regra da imediatidade do dever de agir. Permite a lei que a ação policial possa ser retardada com o fito de colher material probatório mais substancial. Convencionou a doutrina de chamar esse tipo de flagrante como: diferido, postergado, retardado, ou, simplesmente, ação controlada.

Por outro lado, sobre o conceito de autoridade contido no art. 301 do CPP, diz Fernando da Costa Tourinho Filho4, com quem concordamos:
"Há quem entenda que o conceito de autoridade, no corpo do art. 301, é amplo, abrangendo qualquer autoridade, o que consideramos exagero. Primeiro porque a própria lei fala em “autoridades policiais” e, segundo, porquanto em se tratando de dever jurídico imposto por lei, toda interpretação que dela se faça há de ser necessariamente restritiva."

Assim, outras autoridades como o guarda municipal, os membros da magistratura e do Ministério Público, por exemplo, não estariam obrigadas a efetuar a prisão em flagrante, tendo a mera faculdade de realizá-la como qualquer outro cidadão comum. Subsistiria, pois, às demais autoridades o dever de comunicar a infração penal a quem de direito. Exemplo: se um promotor de justiça presencia um crime em flagrante delito, deve comunicar o fato à autoridade policial, requisitando, outrossim, a instauração de inquérito policial.

Nessa linha, consultar: Marcellus Polastri Lima5 e também o Superior Tribunal de Justiça que já decidiu:
É dever de toda e qualquer autoridade comunicar o crime de que tenha ciência no exercício de suas funções. Dispõe significativamente o artigo 144 da
Constituição da República que "A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio" (HC 54719 / RJ de 28/06/2007).

Note-se ainda que, sendo uma obrigação das autoridades policiais e de seus agentes, o seu eventual descumprimento pode acarretar na responsabilização administrativa e criminal, e, às vezes, “até pelo resultado do causado pelo agente, se podiam evitar a consumação do crime (art. 13, § 2º, “a”, do CP)”6. Assim, a depender do dolo da autoridade policial ou de seu agente, a falta de atuação em situação de flagrante delito poderá acarretar, por exemplo, o crime de prevaricação7.

Veja-se, ainda, que, em relação a certas profissões (como a de delegado e de agente policial), o risco (inclusive o de vida) é inerente à função, não sendo, portanto, possível invocar, por exemplo, perigo à incolumidade física a fim de se esquivar de efetuar uma prisão em flagrante. No entanto, há que se ter certa razoabilidade aqui, pois se está certo que o risco é inerente à profissão do delegado e do agente policial, é certo também que não se exige conduta “suicida” por parte da autoridade. Exemplo: se um policial está sozinho em determinado lugar e vê ali se iniciar a prática de crime por um bando fortemente armado, com mais de 15 integrantes, obviamente que não existirá o dever de agir numa situação de tamanha desproporcionalidade como essa.

Pois bem, está claro que a autoridade policial e seus agentes têm o dever de agir diante de uma situação de flagrante delito, podendo inclusive responder criminalmente caso não atuem. Agora, o que desejamos saber no presente tópico é se este dever subsistiria também durante o período de folga, licença ou férias desses profissionais?

Determinado setor da doutrina, Guilherme de Souza Nucci8, por exemplo, defenderá que sim, isto é, que o dever de prisão se impõe a qualquer instante: “o policial é policial às 24h do dia”.

Cita o referido autor inclusive julgado do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (HC 342.778-3 julgado em 19/04/2001) que diz: “A situação de trabalho do policial civil que o remete ap porte permanente de arma, já que considerado por lei constantemente atrelado aos seus deveres funcionais”.
Aliás, além desse aresto, há diversos outros julgados dessa Corte estadual seguindo a mesma orientação, senão vejamos:
"TJSP (apelação 992080335828 julgada em 03/02/2010): Ao policial, mesmo fora do horário de sua jornada de trabalho, imputa-se a obrigação de intervir em qualquer ocorrência policial (Código de Processo Penal, artigo 301), exercendo função ininterrupta e contínua."

Acrescentaríamos apenas o que já dissemos acima: é preciso razoabilidade também aqui. Não basta existir o “dever de agir”, mas é preciso que o policial de folga, por exemplo, possa concretamente agir, pois não se pode exigir-lhe conduta “suicida”. O enfrentamento do perigo é inerente à função desses profissionais (mesmo em períodos de folga, licença e férias), porém não devemos esquecer que é preciso ser possível, em cada caso concreto, enfrentar o perigo, pois, do contrário, não será exigível a atuação desses profissionais.

Finalmente, destaque-se que, quando se fala em “dever de agir” por parte do agente policial, deve-se recordar o contexto em que se dá este discurso. É dizer: deve-se lembrar que o Estado brasileiro não oferece condições adequadas para o desempenho do mister policial (leia-se: infra-estrutura e vencimentos substancias), o que torna a questão do “dever” de enfrentamento do perigo questão ainda mais delicada.

 Notas

1 “Art. 302. Considera-se em flagrante delito quem: I - está cometendo a infração penal; II - acaba de cometê-la; III - é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração; IV - é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração”.

2 Cabe acrescentar que, segundo reiterada jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, se qualquer um do povo pode efetuar a prisão em flagrante, com muito mais razão, os integrantes da guarda municipal e os agentes de trânsito também podem. Segue um julgado sobre o assunto: STJ (HC
129932/SP julgado em 15/12/2009): “1. A prisão em flagrante efetuada pela Guarda Municipal, ainda que não esteja inserida no rol das suas atribuições constitucionais (art. 144, § 8º, da CF), constitui ato legal, em proteção à segurança social. 2. Se a qualquer do povo é permitido prender quem quer que esteja em flagrante delito, não há falar em proibição ao guarda municipal de proceder à prisão”. Note-se que, segundo entendimento dessa mesma Corte, os guardas municipais e agentes de trânsito não têm o dever de prender, mas a faculdade.

3 Oportuno alertar, cf. lembra Luiz Flávio Gomes, que até hoje no Brasil não se tem uma definição jurídica do que seja crime organizado (Direito Processual Penal. São Paulo: RT, 2005).

4 Código de Processo Penal Comentado. V 1. 9 ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 171.

5 Manual de Processo Penal. 4 ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 626.

6 Julio Fabbrini Mirabete (Processo Penal. 10 ed. São Paulo: Atlas, 1999, p. 296). É que, lembre-se, o agente e autoridade policial estão entre os garantidores previstos no Código Penal.

7 “Art. 319 - Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal: Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa”.

8 Código de Processo Penal Comentado. 5 ed. São Paulo: RT, 2006, p. 447.

 

Disponível em: http://www.direitonet.com.br/artigos/exibir/5995/Dever-de-prender-em-fla...