Do ideal da legalidade como controle do futuro à vontade opaca do legislador


Porwilliammoura- Postado em 12 junho 2012

Autores: 
OLIVEIRA, Plínio Pacheco Clementino de

Do ideal da legalidade como controle do futuro à vontade opaca do legislador

Sumário: 1.Introdução. 2. Esboço sobre roteiros históricos nos quais floresce o liberalismo e sobre a idéia de lei como “oráculo” burguês. 3. A filosofia como roteiro para a palavra sem fronteiras: uma sumária incursão nas “Investigações Filosóficas”. 4. Direito e linguagem da incerteza: a legalidade fragmentária. 5. Objeções à busca da vontade do legislador.

1. Introdução

As considerações a seguir buscarão abordar aspectos do contexto histórico do qual provém a perspectiva liberal de legalidade como instrumento para antever a ação estatal, além de lançar um olhar sobre caminhos da teoria da interpretação que se afastam de tal concepção de legalidade e de traçar algumas objeções à busca da vontade do legislador.

Assim, o texto será dividido em quatro tópicos. O primeiro será relativo à emergência da burguesia na Europa, o que deu lugar às idéias liberais e à perspectiva de legalidade que foi marcante no princípio do Estado de Direito. No segundo, buscando apontar a vagueza e ambigüidade que caracterizam qualquer texto (em maior ou menor grau), e em virtude da ênfase das teorias da interpretação contemporâneas na perspectiva pragmática acerca da linguagem, lançaremos um olhar sobre aspectos da filosofia da linguagem elaborada por Wittgenstein no livro “Investigações Filosóficas”, um dos eixos da virada lingüística da filosofia do século XX. No terceiro ponto, serão observados caminhos de reconhecimento da incerteza da linguagem no âmbito do Direito. E, por fim, no quarto tópico, buscaremos indicar alguns problemas da perspectiva intencionalista quanto à interpretação de textos normativos.

2. Esboço sobre roteiros históricos nos quais floresce o liberalismo e sobre a idéia de lei como “oráculo” burguês

Na Baixa Idade Média, as estruturas sociais do feudalismo iniciaram o seu colapso, e foi observada a construção das bases de um novo sistema de produção na Europa ocidental. O renascimento comercial e o renascimento urbano foram sintomas de que a Europa despertava de seu sono feudal . Para o universo do feudalismo, fundado na vida rural e numa economia concentrada no microcosmo representado pelo feudo, dotado de um alto grau de auto-suficiência, as cidades foram erguidas como símbolo do extraordinário. Neste sentido, comenta Le Goff acerca da cidade na Idade Média:

(...) se presentan ante todo como um fenómeno insólito y, para los hombres de la época del desarrollo urbano, como realidades nuevas en el sentido escandaloso que la Edad Media atribuye a este adjetivo. La ciudad, para esos hombres de la tierra, del bosque y de la landa, es a la vez un objeto de atracción y de repulsa, una tentación —como el metal, como el dinero, como la mujer.

Entretanto, no século XIV, as maiores cidades da Europa - Paris, Florença e Veneza- tinham entre cinqüenta e cem mil habitantes, deslocando para atividades comerciais e artesanais cerca de metade da população , já sendo expressos com nitidez os contornos do novo sistema de produção - o capitalismo.

Anteriormente, a partir do fim do século XI, foi iniciado o processo de formação das monarquias nacionais, no qual a burguesia desempenhou um importante papel, havendo a transformação dos cenários fragmentados do feudalismo em palcos de unidade política e territorial. Incapazes de dominar a cena política, a burguesia (que ainda se mostrava frágil) e a nobreza (enraizada no mundo feudal em decadência) se reuniram em torno da figura do monarca para estabelecer ou preservar suas condições e privilégios .

Contudo, a partir do século XVI, tomando como ponto de partida as guerras civis religiosas posteriores à Reforma, as monarquias nacionais se consolidaram em Estado Absolutista, o qual triunfou por toda a Europa. Desse modo, sobre as bases da independência do poder do monarca e da ausência de controle de sua atividade por qualquer outro poder, o Absolutismo formou uma esfera de ação supra-religiosa, buscando a extinção ou neutralização de instituições autônomas, mas permanecendo ligado à divisão social estamental .

Porém, o fim das agitações provocadas pelas guerras civis religiosas (como decorrência da ação pacificadora e da ordem jurídica supra-religiosa) dispôs o Regime Absolutista em um horizonte histórico distinto daquele que legitimou a sua ascensão e que era seu sustentáculo. Nesse contexto, o Iluminismo, sobre os alicerces da crença na razão e no progresso, se desdobra em atitudes críticas diante das instituições do Absolutismo (mesmo que não seja por caminhos evidentes).

Os burgueses, então, concentrando o poder econômico em uma Europa que já vivia um estágio desenvolvido do capitalismo, continuavam reduzidos à condição de súditos, sendo excluídos do poder político (restrito ao soberano e aos seus ministros) e submetidos a um espaço público que retirava das convicções privadas a sua repercussão política . Nesse sentido, Hobbes bem expressou a condição do cidadão referindo que “a liberdade de um súdito reside apenas nas coisas que, ao regular suas ações, o soberano permitiu” (“The Liberty of a Subject, lyeth therefore only in those things, which in regulating their actions, the Soveraign hath praetermitted”) .

Ademais, o Regime Absolutista, de modo geral, mantinha uma série privilégios da nobreza, gerando tratamento desigual em relação às outras classes sociais. Na França do século XVIII, por exemplo, a nobreza, integrando a primeira ordem, tinha considerável favorecimento em relação às outras ordens, como a isenção de vários tributos e o recebimento de pensões dadas pelo Estado. Os nobres, por força da tradição, eram mesmo formalmente dissuadidos de exercer alguma profissão, e a burguesia se via desprestigiada por uma monarquia revestida por um caráter aristocrático e mesmo feudal .

Em tal contexto histórico, o Estado Absolutista ainda impunha altas cargas tributárias (com exceção das impostas à nobreza), e entendia a economia sob uma concepção fortemente intervencionista. Tais aspectos foram vistos como limitadores do desenvolvimento do capitalismo , sendo vetores da insatisfação burguesa e servindo de catapulta para as idéias liberais.

O liberalismo, entretanto, emerge como um complexo de idéias que atendem a anseios políticos e sociais da burguesia, se desdobrando em dois aspectos:

O primeiro é a construção de uma esfera de liberdade individual do cidadão, uma liberdade concebida em primeira linha como proteção de seus interesses primordiais – seus direitos inalienáveis- face à ação do Estado. O segundo é a idéia de contenção, de enquadramento da ação estatal por normas jurídicas.

Dessa maneira, se no Absolutismo a consciência era a única instância livre para os súditos , o Liberalismo firmou-se como proposta de projetar essa consciência para o espaço público, assegurando a sua expressão a partir da limitação do poder estatal. Assim, as idéias liberais representaram um dos fatores que deram forma às revoluções burguesas. Nesse sentido, comenta Hobsbawn a Revolução Francesa:

Todavia, um notável consenso sobre idéias gerais entre um grupo social bastante coerente deu ao movimento revolucionário unidade efetiva. O grupo era a “burguesia”; suas idéias eram aquelas do liberalismo clássico, tal como formuladas pelos “filósofos” e “economistas” e propagadas pela maçonaria em por associações informais. Nessa medida, os “filósofos” podem ser justamente responsabilizados pela Revolução.

(Nevertheless a striking consensus of general ideas among a fairly coherent social group gave the revolutionary movement effective unity. The group was the bourgeoisie; its ideas were those of classical liberalism, as formulated by the philosophers and economists and propagated by freemasonry and in informal

associations. To this extent the philosophers can be justly made responsible for the Revolution).

As idéias de legalidade e de direito subjetivo, entretanto, são impostas como instrumentos para o controle do futuro . Dessa maneira, se por um lado, em fins do século XVIII e início do século XIX, é sedimentada uma consciência geral no mundo europeu de que se vivia um “momento de transição”, sendo o presente entendido como “um momento de acelerada transformação” em direção a um “futuro incerto” (com um conseqüente esvaziamento da força ancestral da expressão historia magistra vitae) , por outro lado, a lei se converte em uma espécie de “oráculo”. Afinal, sobre a compreensão de que a linguagem é normalmente dotada de uma clareza suficiente para que todos entendam do mesmo modo um enunciado legal, havendo uma “única decisão correta”, a idéia de que ações futuras serão enquadradas na lei gera um grau de certeza sobre o futuro. A idéia de legalidade, assim, permitiria uma espécie de “consulta sobre o futuro”, conferindo uma plena previsibilidade às ações do Estado traçadas nos (evidentes) limites da lei. E a resposta a essa “consulta” não seria incerta como na idéia de “profecia” formulada por Holmes , mas verdadeira, como se tivesse sido proferida pelo “Oráculo de Apolo”, deus grego da “luz e da verdade”.

Podemos, seguindo com essas metáforas, dizer que a ingenuidade acerca da linguagem conferiu um aspecto mítico à legalidade. E foi justamente essa ingenuidade, que não reconhece a vagueza e a ambigüidade como traços ordinários da linguagem, que delineou os contornos da metodologia jurídica tradicional do século XIX e da noção de legalidade e de separação dos poderes que formaram os pilares iniciais do Estado de Direito, ao lado do individualismo .

Sobre tais fundamentos, a descoberta da vontade do legislador seria o caminho natural para o “aplicador” do Direito, o qual, diante da clareza dessa vontade, não teria uma atividade propriamente ética, mas fundamentalmente técnica, devendo observar os fatos apresentados para julgamento e, simplesmente, “aplicar” evidentes escolhas éticas alheias (do legislador), não tendo qualquer atividade valorativa própria.

3. A filosofia como roteiro para a palavra sem fronteiras: uma sumária incursão nas “Investigações Filosóficas”

No decorrer do século XX, principalmente na segunda metade, a problemática da linguagem ganhou uma posição central na filosofia. Com esse “giro lingüístico” da filosofia, a compreensão de que o conhecimento é algo feito sem a mediação da linguagem (uma das perspectivas fundamentais da filosofia ocidental desde suas raízes platônicas) dá lugar ao entendimento de que o conhecimento é algo lingüístico, de que conhecemos o mundo pelas lentes da linguagem, caracterizando um novo paradigma para a filosofia: o paradigma da linguagem. Dessa maneira, a ligação do ser humano com o mundo é vista como apenas indireta, seletiva, metafórica .

Nesse contexto, a obra “Investigações Filosóficas”, de Ludwig Wittgenstein, lançou alicerces para o estabelecimento desse novo paradigma da filosofia, guiando a reflexão filosófica dos fabulosos “edifícios de cartas” das essências para os campos abertos da prática da linguagem. Em tal horizonte, a visão da realidade refletida nas palavras (das essências) é uma miragem para o conhecimento, lançando armadilhas na compreensão. A gênese e a dinâmica da linguagem, assim, não são vistas como fundadas em preocupações sobre a essência das coisas, mas sim em meras associações, ligações a partir de “semelhanças de família”, conjugadas com abstrações de diferenças .

Dessa maneira, pode-se dizer que é improvável que o ser humano, em seus procedimentos cotidianos, faça análises prévias acerca das essências para que possa atribuir um mesmo nome a várias coisas, um mesmo “rótulo” identificador dos conteúdos da realidade. Para ter posto o nome “livro” em determinados objetos, por exemplo, é improvável que tenha sido estabelecida, como condição prévia para designá-los sob o mesmo signo lingüístico, uma investigação sobre a natureza de cada um. Dessa maneira, a dinâmica da linguagem não é fundada em preocupações sobre a essência das coisas, mas sim em associações e ligações de semelhanças impostas pela prática, a qual confere à linguagem a sua marca de imprecisão e de constante transformação.

Desse modo, o que se faz é trazer de volta as palavras da metafísica para seu uso cotidiano, refletindo sobre a linguagem diante dos contextos em que é realizada, e deixando de lado a busca pela natureza das coisas . As palavras, para tal visão, não têm limites definitivos, pois o seu uso é irregulado, sendo conduzidas a uma permanente mudança de significados. Não há, portanto, uma semelhança entre realidade e linguagem, como pretendia a tradição da filosofia ocidental da linguagem.

Nietzsche, abrindo suas trilhas contra os roteiros dessa tradição, comentou:

A importância da linguagem para o desenvolvimento da cultura está em que nela o homem estabeleceu um mundo próprio ao lado do outro, um lugar que ele considerou firme o bastante para, a partir dele, tirar dos eixos o mundo restante e se tornar seu senhor. [...] Todo conceito nasce por igualação do não igual [...] a desconsideração do individual e efetivo nos dá o conceito, assim como nos dá também a forma, enquanto que a natureza não conhece formas nem conceitos. [...] Todos os conceitos em que um processo inteiro se condensa semioticamente se subtraem à definição; definível é apenas aquilo que não tem história.

Portanto, observa-se um desvio na filosofia (com repercussões em variadas áreas do conhecimento, como o Direito, a sociologia e a antropologia) do questionamento referente à essência dos elementos da realidade para o questionamento acerca do uso da palavra, a qual, como um campo sem fronteiras, é recriada e multiplicada pelos caminhos que nela são abertos.

4. Direito e linguagem da incerteza: a legalidade fragmentária

No século XX, a reflexão sobre a linguagem e sobre a interpretação expôs a fragilidade das teorias da única decisão correta, levando o pensamento jurídico a enxergar cada vez mais o horizonte de incerteza em que são dispostos os textos normativos. Observa-se, entretanto, o estabelecimento progressivo de uma tendência a enfatizar a perspectiva pragmática , centrando a compreensão sobre a linguagem nas relações entre os signos e os sujeitos, nos usos que são impostos às palavras.

Entre as contribuições mais influentes para o estabelecimento da perspectiva de que os textos normativos são dotados de um caráter vago e ambíguo, podemos citar Hans Kelsen e Herbert Hart.

Kelsen, com sua imagem da moldura, compreendeu que as palavras e as seqüências de palavras têm uma pluralidade de significações, e que o julgador se encontra diante de várias significações possíveis em relação à norma (mas sem enfatizar a dimensão pragmática da linguagem, centrando a sua análise nos aspectos semânticos). Dessa maneira, entre as várias significações possíveis (as que podem ser inscritas na moldura interpretativa), não há uma que possa ser identificada como a única correta . Hart, por sua vez, atingido pela influência de Wittgenstein, observa a “textura aberta do Direito” , compreendendo que “a linguagem geral dotada de autoridade em que a regra é expressa pode guiar apenas de modo incerto” , deixando aos julgadores um amplo poder de criação.

No mesmo sentido, as escolas realistas, separando “texto e norma” e desconfiando da mentalidade silogística , projetam o centro do Direito nos tribunais. Assim, diante da incerteza da linguagem, da abertura dos signos, o Direito só surgiria como produto da interpretação, não sendo uma realidade anterior a tal atividade.

Entretanto, seguindo esse caminho apontado pelas perspectivas realistas, tomando a diferença entre significante (texto normativo) e significado (norma), podemos dizer que só o texto normativo se prolonga no tempo, pois o direito, como resultado da interpretação, só acontece no presente. Assim, por exemplo, um juiz observa um texto legal e lhe atribui um sentido (a norma), materializando o seu entendimento numa sentença, que já vai ser um novo texto. Dessa maneira, os destinatários daquela sentença, ao interpretá-la, lhe conferem o seu sentido (a norma para eles).

A unidade, desse modo, é referente ao texto normativo, e a norma, não sendo algo previamente dado, tem, em alguma medida (maior ou menor), um caráter fragmentário decorrente das sucessivas passagens do texto à norma, não sendo propriamente “uma norma”, mas diversas “normas” (a norma que emerge da interpretação do texto legal pelo juiz José, o qual não compreendeu tal texto de maneira idêntica à compreensão de outro juiz, e que proferiu a sentença como um novo texto, que dará lugar à norma resultante da interpretação do seu destinatário).

Considerando o atual horizonte constitucional, em que os princípios jurídicos (expressados em palavras dotadas de grande generalidade, como igualdade, dignidade e proporcionalidade) são revestidos de força normativa e assumem uma superioridade no Direito, esse caráter fragmentário da norma jurídica se apresenta intensificado.

Observa-se que, com a crise do positivismo jurídico no período posterior à segunda guerra mundial, ganhou corpo no pensamento jurídico a exigência de uma atitude valorativa diante do Direito. Houve, então, uma reação ao formalismo jurídico característico do positivismo jurídico (que afasta o conceito de Direito de qualquer conteúdo específico, compreendendo que o Direito pode ter qualquer conteúdo) e à sua pretensão de neutralidade científica, aspectos que foram inclusive tomados como elementos que favoreceram a ascensão dos regimes totalitários.

No contexto dessa crise, surge o neoconstitucionalismo redimensionando o papel da constituição, que passa a ter uma força normativa com contornos firmes e deixa de ser um mero programa para o Estado. Desse modo, os princípios gerais do Direito (então relegados ao papel secundário de algo que não se sobrepõe à lei, mas que é depreendido da lei para preencher as obscuridades e omissões do Direito) são convertidos em princípios constitucionais, assumindo a superioridade e hegemonia na pirâmide normativa, funcionando como instrumentos para a realização da proposta de aproximação do Direito a determinadas moralidades.

Os pontos axiológicos de maior relevância no ordenamento jurídico (os princípios), dessa maneira, correspondem a textos com amplo grau de abertura, o que acentua a visibilidade da diferença entre texto normativo e norma. O Poder Judiciário, portanto, dispõe de um poder criativo ainda mais amplo, que reflete com mais nitidez o aspecto fragmentário da norma jurídica.

Contudo, observa-se que a teoria do direito e a filosofia do direito contemporâneas enfatizam esse caráter impreciso da linguagem, afastando a idéia de centralidade do legislador idealizada sob os moldes iluministas da separação dos poderes. Poderíamos dizer, assim, com a liberdade da metáfora, que a certeza oracular da legalidade foi raptada pela linguagem descontrolada.

5. Objeções à busca da vontade do legislador

Buscaremos, nas considerações seguintes, traçar objeções à visão intencionalista. Não pretendemos, porém, fazer uma crítica exaustiva a essa visão, mas apenas apontar algumas dificuldades que ela envolve.

Inicialmente, deve-se dizer a legislação não se refere a um legislador singular, mas a uma assembléia constituída por múltiplos membros, abarcando uma quantidade de pessoas com objetivos, interesses e histórias de vida muito diferentes . De maneira que essas diferenças pessoais, de objetivos e de representação convergem na atividade legislativa e no texto normativo, o que nos permite, ao menos, desconfiar da existência de uma vontade uniforme, identificável como “a vontade do legislador”.

Entendemos que a conclusão sobre a existência de uma vontade uniforme do legislador só poderia ser autorizada se fosse fundada em uma investigação acerca das intenções de cada legislador que votou a favor do texto aprovado. Afinal, para que fosse possível dizer com fundamento que sob um texto normativo repousa uma vontade homogênea identificável como “a vontade do legislador”, seria necessária a constatação de que não há divergência de “vontade” entre os integrantes do legislativo que aprovaram o texto.

Assim, o entendimento de cada legislador em relação às palavras que integram o texto deveria ser investigado, indicando, por exemplo, que em relação à palavra “dignidade” houve uma compreensão comum, e que, portanto, os legisladores não entenderam propostas diversas sob o termo “dignidade” quando aprovaram o texto. Também os propósitos dos legisladores com a aprovação deveriam ser investigados, pois mesmo que houvesse concordância quanto ao sentido das palavras do texto normativo, seria ainda possível a existência de divergência de interesses em relação a ele, de modo que a intenção não seria a mesma. Portanto, seria necessário fazer uma comparação entre os dados que permitisse a conclusão de que as diversas vontades poderiam ser integradas como uma vontade única.

No entanto, também podemos objetar que semelhante investigação, feita sob a pretensão de identificar a vontade do legislador, não escapa à incerteza da linguagem. Afinal, a entrevista e a observação de registros dos debates legislativos ou de outros tipos de registros se inserem na dimensão da linguagem. Portanto, cabe ao investigador (intérprete) algum papel criativo. Assim, podemos dizer, como Koselleck, que “a história nunca se identifica com seu registro lingüístico nem com sua experiência formulada, condensada oralmente ou por escrito, mas também não é independente dessas articulações lingüísticas.” Desse modo, a hipotética vontade do legislador, sendo algo histórico cuja identificação seria feita pela linguagem, não escaparia desse fator de que a linguagem não é o espelho da história.

Em textos normativos de menor amplitude semântica, as possibilidades de divergência, ao menos em relação às palavras, são minoradas, mas não aniquiladas, já que em maior ou menor grau os textos são vagos e ambíguos. De qualquer modo, como dito acima, mesmo que houvesse acordo dos legisladores quanto ao sentido do texto, ainda seria possível o desacordo referente aos seus propósitos, de maneira que a intenção não seria única.

Contudo, mesmo que fosse possível uma perfeita identificação da vontade do legislador, essa seria, conforme pensamos, uma atividade muito complexa, que exigiria tempo, pesquisa e rigor de método. E, como toda pesquisa, estaria sujeita a erros, encontrando dificuldades como o possível encobrimento pelos legisladores das suas intenções reais e o fato de que a procurada intenção do legislador em leis antigas bem pode ser a intenção de legisladores mortos. Do ponto de vista prático, o ato de se lançar na atividade de desvendar rigorosamente a vontade do legislador seria problemático. Considerando o Poder Judiciário, por exemplo, o estabelecimento de tal busca como critério para julgar os casos que lhe são apresentados seria algo inviável, contraproducente e espalharia a nódoa da lentidão.

Pode-se alegar, contudo, que para identificarmos essa vontade do legislador não é necessária a referida uniformidade, bastando, para tanto, que se aponte a vontade da maioria dos legisladores que aprovaram o texto normativo. Desse modo, seria exigida do pesquisador a constatação de que a maioria dos legisladores que votaram a favor do texto aprovado o compreendeu da mesma maneira e teve os mesmos propósitos. Pensamos, no entanto, que a tentativa de identificação dessa “vontade majoritária” também é algo muito complexo, que traz ao investigador dificuldades semelhantes às que tem o procura a vontade única, havendo o mesmo “obstáculo criativo” da linguagem (incontornável segundo nossa perspectiva).

Por outro lado, contra a visão intencionalista também podemos argumentar que a busca pela vontade do legislador leva a um engessamento da interpretação, provocando a sua desarmonia com dinâmica da realidade.

Comenta Koselleck que a expressão de Cícero historia magistra vitae (a história é a mestra da vida) permaneceu praticamente intacta até o século XVIII, o que, segundo o autor alemão, denota a pouca velocidade das transformações nesse lapso temporal, permitindo que o passado fosse uma referência segura para os acontecimentos futuros. Todavia, no momento histórico atual, talvez sejamos autorizados a dizer que a expressão de Cícero nunca esteve em um contexto tão desfavorável. Afinal, como compreende Zygmunt Bauman, a liquidez ou fluidez são metáforas adequadas para identificar os tempos atuais, dotados de uma extraordinária mobilidade . Assim, essa aceleração das transformações provoca uma fraqueza referencial do passado em relação ao futuro, pois o passado que se teria como referência foi fugaz, líquido, e o futuro é incerto, inaudito. O passado, portanto, perde a sua força explicativa do futuro, perde a maestria do tempo.

Entretanto, essa restrição (rigidez) interpretativa que busca o sentido dos textos normativos na vontade do legislador pode conduzir, e ainda mais em tempos de “liquidez”, a uma falta de respostas aos problemas com os quais o intérprete se depara, a menos que o legislador fosse uma espécie ideal de “visionário”, que antevisse o futuro e buscasse controlá-lo por meio da lei. Assim, a visão intencionalista como critério para julgar pode ser problemática quando são procuradas respostas para problemas que sequer existiam no momento em que a lei foi elaborada ou para problemas que no presente são dispostos sobre diferentes contextos morais, sociais.

Tem uma força considerável a sentença de Fernando Pessoa: “O ambiente é a alma das coisas. Cada coisa tem uma expressão própria, e essa expressão vem-lhe de fora” . Diante do grande fluxo de transformações em que vivemos, a busca pela vontade do legislador pode, cada vez mais, conduzir o intérprete para caminhos anacrônicos, alheios aos contextos e às necessidades do presente, aos “ambientes que dão alma e expressão ao presente”.

Quem procura a vontade do legislador, portanto, se dispõe num caminho obscuro, projetando talvez, como na caverna platônica, a realidade nas sombras que percorre.

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Data de elaboração: junho/2010