A execução das obrigações de fazer e de dar resultantes de liminares contra a fazenda pública e seus meios de coerção


Porwilliammoura- Postado em 16 novembro 2011

Autores: 
MOZZOMO, Marcelo Colombelli

 

A execução das obrigações de fazer e de dar resultantes de liminares contra a fazenda pública e seus meios de coerção

Marcelo Colombelli Mezzomo

Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal de Santa Maria <marcelo.colombelli@bol.com.br >


 

1- Eficácia da tutela jurisdicional

Hoje, o Direito é uma ciência e uma tecnologia. Como tecnologia, ou seja, como uma técnica destinada a uma finalidade, é extremamente antigo, pois perde-se em tempos imemoriais, que talvez jamais possam ser precisados com exatidão, o seu surgimento. Mas como ciência, ou seja, recebendo tratamento científico na sua estruturação, é bem mais recente.

A rigor, não se pode falar em uma estruturação científica efetiva do Direito senão após o Iluminismo, pois o seu estudo anterior limitou-se a pouco mais do que uma mera compilação, cuja expressão mais significativa é o movimento da “glosa”, que produzia compêndios de feição descritiva.

Uma vez estabelecida a estruturação científica do Direito, a partir do século XIX, surgiram disciplinas específicas erigidas em sistemas que gravitam e torno de uma série de princípios aglutinadores. Esta estrutura servirá de base para toda a evolução do Direito e ainda hoje nele se reflete.

Sintetizando o momento em que foi construída, esta base apresenta uma nítida feição privatista. Vive-se a aurora do capitalismo e o auge do Iluminismo. Busca-se, então regular as relações entre os particulares e limitar a esfera de atuação do Estado frente às liberdades públicas. Esta visão inspirará, ainda, os mestres europeus do início do século XX, cuja doutrina serve de base à legislação que vige hoje em nosso País.

Mas as relações entre o Estado e o cidadão muito evoluíram durante o século XX. Inicia-se esta guinada, com o constitucionalismo social, que refletirá, após, em toda a legislação e na própria matriz hermenêutica.

Três fases podem ser distinguidas. Uma primeira, materializada pelo constitucionalismo social do início do século, de Weimar e da Constituição Mexicana. Uma segunda fase marca-se pelas constituições do pós-guerra, sendo emblemáticas as Constituições Alemã e Italiana. A terceira fase, por fim, marca-se pela expansão do constitucionalismo social, sendo que, em nosso caso, desemboca na Constituição de 1988.

As relações entre o cidadão e o Estado alteram-se, ao menos no plano jurídico-formal, profundamente, pois passa-se de um Estado Liberal (garantista, passivo, não-interveniente), para um Estado Social, ou Democrático Social (promotor, ativo, interveniente).

A partir deste novo paradigma, surge uma gama de “novos direitos”, que apresentam como titulares o cidadão, de forma determinada ou não, e como obrigado principalmente o Estado.

Neste contexto é que surge a crise de eficácia da tutela jurisdicional que não é um fenômeno exclusivo do Direito pátrio.

Esta crise tem a sua base o fato de que a matriz privatista do Direito, e aqui nos importa especialmente o direito processual civil, não foi estabelecida com vistas a regular conflitos entre o Estado e o cidadão.

Em nosso caso, a situação é ainda mais grave, pois temos a jurisdição uma. O direito processual europeu continental, que nos serve de base, apresenta a dualidade de jurisdição, de modo que os conflitos de direito público resolvem-se, basicamente, nos tribunais administrativos. No nosso caso, a matriz privatista acaba tendo de ser aplicada também quando em voga direito público.

Exemplo desta crise de eficácia da tutela jurisdicional está na execução (lato sensu) das obrigações de fazer e de dar contra a Fazenda Pública, pois inexiste previsão de meios eficazes e adequados à condição dos sujeitos.

Esta a nossa temática: os meios de coerção aplicáveis nestas espécies de obrigações, cada vez mais presentes em vista da larga gama de direitos fundamentais reconhecidos ao cidadão.

 

2- Execução contra a Fazenda e o meios de coerção

Quando temos diante de nós a hipótese de execução de quantia certa contra a Fazenda não há maiores problemas. Por força do artigo 100 da CF/88, o rito a ser observado, salvo exceções expressas, é o do artigo 730 do CPC, significa dizer, do precatório. A dificuldade surge nas obrigações de fazer e de dar.

O primeiro problema reside no fato de que sua execução por terceiro às expensas do Estado esbarra na necessidade de licitação e de dotação orçamentária específica.

O artigo 632 do CPC prevê, para as obrigações de fazer, esta saída: execução por terceiro. Preconiza, também ,a possibilidade de conversão em perdas e danos.

Ambas as saídas acabam tornando-se inviáveis. De um lado, a submissão da Fazenda ao princípio da legalidade afasta a forma da execução por terceiros mediante concorrência judicial, a priori . De outro, a execução pelo próprio credor ou conversão em perda e danos pode restar impossível pela natureza da obrigação, em vista de sua premência, ou, ainda, por ser caso em que somente a tutela específica é apta a satisfazer a parte ( exemplo, fornecimento de medicamento ou tratamento). O mesmo raciocínio vale para as obrigações de dar. Ambas acabam tornando-se infungíveis. Somente a Fazenda pode supri-las.

Mas e se não é cumprida a obrigação, quid inde? Três saídas tem sido alvitradas: aplicação das astreintes; pena de desobediência e bloqueio de valores. Analisemos cada qual.

As astreintes tem sido largamente utilizadas contra a Fazenda Pública. Mas surgem problemas incontornáveis. Com efeito, a multa diária, que reverte em benefício da parte prejudicada pelo atraso, atua psicologicamente sobre o obrigado, compelindo-o mediante a ameaça do prejuízo. Por isso mesmo, o quantum a ser determinado nada tem com a obrigação descumprida, podendo extrapolar seu valor.

No caso da Fazenda, a grade dificuldade é que a multa tem de ser elevada e não tinge pessoalmente a ninguém, já que é suportada, em última análise, pela sociedade. Se a multa é pequena, nenhum efeito produz. Se é demasiada, gera-se o paradoxo de a parte “torcer” para que ocorra o atraso mais longo possível, que acabará sendo mais vantajoso do que o cumprimento da obrigação.

Ora, isto desvirtua por completo a natureza da multa, que é meio de coerção, secundário, portanto, e que não pode ser admitida como fim principal do processo[i], o que na prática acaba ocorrendo quando a obrigação decorrente da multa diária supera em várias vezes o valor da obrigação em execução. Em tais condições, ocorre verdadeiro enriquecimento ilícito da parte.

Da mesma forma, a multa acaba atingindo ao erário, ou seja, a todos e a ninguém ao mesmo tempo. É da natureza da astreinte atuar psicologicamente sobre o obrigado, compelindo-o a cumprir a obrigação sob ameaça do prejuízo. Mas no caso da Fazenda não há um indivíduo que possa subjetivamente ser atingido.

Claro, os agentes públicos por certo que procurarão impedir o prejuízo ao erário, ao menos é que se presume. Mas pergunta-se: e quando a inadimplência não puder ser evitada por questões legais, como por exemplo, necessidade de licitação, falta de recursos ou inexistência do bem pretendido? Como ninguém é atingido pessoalmente, não é difícil prever que, nestes casos, e é o que tem ocorrido, a multa siga incidindo por vários dias ou meses.

O que se nota, portanto, é que as astreintes funcionam muito bem quando em questão partes privadas, onde o prejuízo seja individualizável. Não é o caso da Fazenda, onde ele é pulverizado na coletividade.

No que se refere à pena de desobediência criminal, o mesmo raciocínio pode ser invocado. Para caracterização do delito é necessário o dolo de descumprir a determinação judicial. Mas tal elementos subjetivo do tipo é afastado quando o agente público simplesmente não dispõe de poderes ou de meios para dar cumprimento à decisão. É imprescindível a vontade livre e consciente de descumprir a ordem podendo agir de forma diversa. Como o agente público está jungido ao princípio da legalidade, poderá se ver em uma situação absurda. Se cumpre a determinação judicial, incorre em ato de improbidade ou em alguma figura delituosa. Se não cumpre, responde por desobediência. Assim, em qualquer caso será responsabilizado.

Não é preciso grande acuidade para se ver que uma tal situação discrepa por completo do bom senso que é a essência do Direito.

Resta o bloqueio de valores, que se figura, a meu juízo, a saída mais lógica e razoável. Não implementada a obrigação, bloqueia-se valor que garanta a sua execução, impondo-se correção e juros. Em casos urgente, poderá haver mesmo liberação do valor para a finalidade almejada. O exemplo de um tratamento médico bem serve para representar a hipótese. Não adimplida a obrigação, bloqueia-se o valor no erário e libera-se para custeio do tratamento mediante comprovação.

Tal medida tem a vantagem de evitar o enriquecimento ilícito da parte beneficiada e de evitar a inocuidade da advertência da incidência em crime de desobediência.

Poderá se alegar que o bloqueio de valores do erário implica ingerência no mérito administrativo envolvido na questão de eleger as prioridades de aplicação das verbas. A tal argumento pode se objetar que em se tratando de direitos fundamentais, que hoje constituem a origem da maior parte das obrigações do Estado, há casos em que a aplicação do princípio da razoabilidade estabelece de forma inquestionável a ordem de prioridades a ser observada, implicando, o seu descumprimento, questão atinente à legalidade, e não ao mérito do ato.

Volto-me, neste passo, mais uma vez para a questão da saúde, que tem dado azo a tantas demandas. Ora, a negativa de fornecimento de um medicamento de uso imprescindível ou de um tratamento médico cuja ausência gera risco de vida, ou grave risco à saúde, é ato que, por violar a Constituição, pode perfeitamente ser inquinado de ilegal. A decisão que determina o fornecimento de um ou outro, por conseguinte, não trata de mérito administrativo, ou seja de conveniência e oportunidade de execução de gastos públicos, mas sim de verdadeira observância da legalidade, cuja dimensão concreta não se reduz a previsões abstratas ou textos de lei inertes. Nestes casos, ante a evidência de uma ilegalidade, não está o Judiciário interferindo indevidamente na alçada de outro poder.

O bloqueio das quantias, com ou sem sua liberação, afigura-se, assim, na solução mais consentânea à necessidade de mecanismos de coerção que atendam às peculiaridades da Fazenda Pública.

 

 

3- Conclusões

 

Embebidos na praxe diária do Direito, por vezes nos esquecemos de observá-lo “de fora”, de compreendê-lo na sua dimensão histórica e nas suas implicações metodológicas, científicas, sociais e políticas.

Esta consciência é pressuposto indispensável para que possamos tomar ações positivas, buscando a incessante adaptação dos mecanismos jurídicos às realidades as quais eles se destinam.

No caso das obrigações de fazer e de dar contra a Fazenda, sejam elas decorrentes de título judiciais ou extrajudicias ou de decisões concessivas de liminares, ainda não temos mecanismos específicos de coerção que levem em conta uma série de contingências a que se submete a atuação da administração, submetida que está ao regime de direito administrativo.

Destarte, o nosso processo civil tem origem em uma matriz privatista, tanto que o CPC dedica somente dois artigos à execução contra a Fazenda.

Ora, o papel do Estado moderno como verdadeiro promotor de políticas implica um incremento cada vez maior nas suas obrigações e para fazer frente a estas obrigações, é imperioso que sejam criados mecanismos eficazes de coerção.

As alternativas existentes, como visto, apresentam sérios problemas. Ou pecam pela ineficácia ou pelo exagero, que transforma o mecanismo de coerção em um objetivo mais importante do que a pretensão insatisfeita. Se nos parece que o bloqueio de valores é a medida mais razoável.

Todavia, como já salientado, as reformas que se operam em nosso processo civil, chegadas em boa hora e com bons resultados, tem agora um novo campo de atuação que não pode ser descurado: o processo de execução. Sem dúvida que o direito público cresce no âmbito judicial, e não pode ser olvidado, sob pena de transformarmos os direitos assegurados pela Constituição em letra morta.

 

 



[i]Casos muito comuns ocorrem nas ações que visam o fornecimento de medicamentos ou tratamento médico. Tais demandas tornaram-se corriqueiras e houve casos em que o TJRS reduziu multas diárias, decorrentes de antecipações de tutela, que haviam sido fixadas em valores, por exemplo, de R$10.000,00, quando o medicamento a ser fornecido não alçava duas centenas de reais.

 


Informações Bibliográficas

 

Conforme a NBR 6023:2000 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT), este texto científico publicado em periódico eletrônico deve ser citado da seguinte forma:
MEZZOMO, Marcelo Colombelli. A execução das obrigações de fazer e de dar resultantes de liminares contra a fazenda pública e seus meios de coerção. Site do Curso de Direito da UFSM. Santa Maria-RS. Disponível em: <http://www.ufsm.br/direito/artigos/processo-civil/obrigacao-fazer-coercao.htm>.

 

Acesso em: 16.NOV.2011