A falsidade ideológica e declaração de pobreza: (a) tipicidade?


Porvinicius.pj- Postado em 09 novembro 2011

Autores: 
FARIA, Fernando Cesar

Fernando César Faria*

 

Apontamentos sobre a (a) tipicidade do crime de falsidade ideológica (previsto no artigo 299 do Código Penal) ante a "declaração de pobreza" prestada judicialmente (ou mesmo em sede de Defensoria Pública).

Uma breve introdução sobre a problemática posta:

 

O que dizermos quando o cidadão comparece na Defensoria Pública e preenche atestado de hipossuficiência, máxime se esse mesmo cidadão inserir informação falsa, por exemplo, no caso de auferir rendimentos que suplantam àqueles estabelecidos pela instituição Defensoria Pública, com o fito de se fazer valer do benefício da assistência judiciária gratuita, ou mesmo ser atendido pela instituição?

 

Será crime de falsidade ideológica, terá tipicidade a conduta?

 

As linhas seguintes buscam dar uma visão geral sobre o tema (crime ou não), claro que sem a veleidade de esgotá-lo, mas, a toda evidência, com embasamentos legais, doutrinários e jurisprudenciais.

A hipótese possível:

 

Cidadão que ao ser entrevistado por Defensor Público declara (e preenche) uma espécie de documento onde deve inserir a informação de que se enquadra nas hipóteses determinadas pela Lei n. 1.060/1950, notadamente artigo 2°, parágrafo único, como sendo:

 

"aquele cuja situação econômica não lhe permita pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo do sustento próprio ou da família".
 

Mas, a bem da verdade, em algumas vezes, pode o cidadão "mentir" ao Defensor Público, tendocondições de, no caso, constituir advogado.

 

Nesse caso há crime de falsidade ideológica (CP, 299)? Ou será exigível que o Defensor Público tenha uma espécie de "bola de cristal" ao lado de seu "Vade Mecum"? Claro que não, não é? Vejamos.

 

Alastra-se essa indagação no caso (e somente) de benefício de "Justiça Gratuita", neste particular haverá crime?

 

Opinião:

 

Inicialmente, assim é previsto o tipo penal do artigo 299 do Código Penal:

 

Falsidade ideológica

Art. 299 - Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, com o fim de prejudicar direito, criar obrigação ou alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante:
Pena - reclusão, de um a cinco anos, e multa, se o documento é público, e reclusão de um a três anos, e multa, se o documento é particular.

Parágrafo único - Se o agente é funcionário público, e comete o crime prevalecendo-se do cargo, ou se a falsificação ou alteração é de assentamento de registro civil, aumenta-se a pena de sexta parte.

 

Por primeiro, pontua-se: como é (ou deveria) ser cediço, o tipo penal acima comporta três modalidades:

 

(i) A omissiva, "Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar";

 

(ii) A comissiva, "o agente diretamente insere declaração falsa ou diversa a que devia constar";

e

 

(iii) Quando o agente indiretamente, faz com que terceiro insira declaração falsa ou diversa.

 

Bom, no caso em exame há possibilidade de acontecimento das três modalidades.

 

Inegavelmente a inserção de declaração falsa com o fim de criar direito por si só pode caracterizar a falsidade ideológica, mas no caso de benefício de gratuidade judiciária, não! Pelo fato de ser a declaração de pobreza mera presunção juris tantum, posterior verificação e até que se prove o contrário.

 

Nesse ponto, impende ressaltar que, em princípio, pode-se cogitar em fato juridicamente relevante, qual seja, a falta de condições para pagar as custas do processo, sem prejuízo próprio ou de sua família, condição legal da obtenção dos benefícios da assistência judiciária gratuita. Assim, em tese, é típica, a conduta da pessoa que assina declaração de hipossuficiência na Defensoria Pública, que posteriormente será juntada a qualquer processo judicial e que, no entanto, apresenta condições materiais para arcar com as despesas e custas processuais.

 

É esse o entendimento majoritário do Superior Tribunal de Justiça (que é crime e ponto final), veja-se:

 

HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. CRIME DE FALSIDADE IDEOLÓGICA.DECLARAÇÃO FALSA DE POBREZA PARA OBTER A GRATUIDADE DE ASSISTÊNCIA JUDICIÁRIA. PEDIDO DE TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. IMPOSSIBILIDADE.1. É típica, a princípio, a conduta da pessoa que assina declaração de "pobreza" para obter os benefícios da assistência judiciária gratuita e, todavia, apresenta evidentes condições de arcar com as despesas e custas do processo judicial.2. A denúncia, ora atacada, é formal e materialmente correta, ou seja, satisfaz as exigências do art. 41, do Código de Processo Penal. Encontra-se, ainda, a exordial acompanhada de um mínimo de prova a amparar a acusação, a qual, no curso da instrução criminal, deverá ser provada e assegurado à paciente o exercício da ampla defesa e do contraditório.3. Ordem denegada.(HC 37.395/SP, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 03.03.2005, DJ 04.04.2005 p. 330)

 

No particular, peço a venia para discordar desse entendimento "majoritário" do STJ.

.

Entendemos que a declaração que visa tão-somente obter os benefícios da gratuidade não cria qualquer situação em detrimento da verdade sobre fato relevante (elementar do crime de falsidade ideológica), e mais, o bem jurídico tutelado pelo tipo penal adrede mencionado em nada é abalado, ou seja, a fé pública resta ilesa nestes casos.

 

Ora, o crime de falsidade ideológica somente se caracteriza quando a declaração falsa inserida no "documento" detém capacidade probatória de per si, sendo irrelevante a comprovação posterior. Assim, sendo "uma presunção juris tantum" a benefício da gratuidade judiciária, não se pode falar em crime de falsidade ideológica, por pura lógica.

 

Nas palavras do saudoso mestre HUNGRIA:

 

"Cumpre notar que a declaração prestada pelo particular deve valer, por si mesma, para a formação do documento. Se o oficial ou funcionário que recebe a declaração está adstrito a averiguar, propis sensibus, a fidelidade da declaração, o declarante, ainda que falte com a verdade, não cometerá ilícito penal" (fls. 11/12).

 

São alguns pontos (afora os já citados) que chego a duvidar da tipicidade do crime de falsidade ideológica no caso em exame, veja-se:

 

PONTO 1 -A declaração vai passar por alguma espécie de verificação???

A grande jogada nesse tipo penal (e nessa situação fática) é a capacidade probatória do documento assinado, se, eventualmente, este mesmo documento tiver que passar por algum crivo analítico, resta descaracterizado o crime de falsidade ideológica.

Nesse sentido, já se manifestou o Pretório Excelso:

"FALSIDADE IDEOLÓGICA. DECLARAÇÃO DE POBREZA PARA FINS DE GRATUIDADE JUDICIÁRIA. Declaração passível de averiguação ulterior não constitui documento para fins penais. HC deferido para trancar a ação penal." (HC 85.976-3, Relatora Ministra Ellen Gracie, julgado em 13/12/2005)

Percebe-se a atipicidade, pelo fato de que o documento é passível de averiguação, verificação, no mais: de comprovação de sua idoneidade.

Nesse víes, verifica-se o entendimento do professor NUCCI: [1]

"b) declaração de pobreza para fim de obtenção de assistência judiciária não pode ser considerada documento para fins deste artigo, pois é possível produzir prova a respeito do estado de miserabilidade de quem pleiteia o benefício da assistência judiciária. O juiz pode, à vista das provas colhidas, indeferir o pedido, sendo, pois, irrelevante a declaração apresentada".

Recentemente, nessa mesma seara de idéias, decidiu o Tribunal Regional Federal da 3ª Região:

PROCESSUAL PENAL E PENAL: HABEAS CORPUS. COMPETÊNCIA. INQUÉRITO POLICIAL INSTAURADO POR REQUISIÇÃO DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. INQUÉRITO POLICIAL. TRANCAMENTO. EXCEPCIONALIDADE. FALTA DE JUSTA CAUSA EVIDENTE. ARTIGO 299 DO CP. DECLARAÇÃO DE POBREZA PARA FINS DE CONCESSÃO DOS BENEFÍCIOS DA JUSTIÇA GRATUITA. DECLARAÇÃO SUJEITA À VERIFICAÇÃO DO JUIZ. NÃO CONFIGURAÇÃO DO CRIME DE FALSIDADE IDEOLÓGICA.

I - Compete a este Eg. Tribunal processar e julgar o presente writ em que se objetiva o trancamento de inquérito policial instaurado por requisição do Ministério Público Federal.

II - Só se admite o trancamento do inquérito policial pela via do Habeas Corpus, em casos excepcionais, em que a falta de justa causa exsurja desde logo cristalina.

III - O crime de falsidade ideológica somente se caracteriza nos casos em que a declaração falsa inserida no documento, por si só, é dotada de capacidade probatória, independentemente de posterior comprovação.

IV - Os §§ 1ºe 2º, do artigo 4º, da Lei nº 1.060/50 ressalvam à parte contrária a faculdade de impugnar o pedido de assistência judiciária.

V - Em que pese a declaração firmada para a concessão do benefício da assistência judiciária produzir efeitos desde logo, emerge que ela está sujeita à posterior verificação do juiz, a ser feita, de ofício ou a requerimento da parte contrária, o que descaracteriza o crime de falsidade ideológica.

VI - No caso concreto o interessado não apontou valor diverso do seu ganho real, apenas declarou pobreza.

VII - Ordem concedida. Não conhecido o agravo regimental.

 

Assim, tendo condição de passar por alguma verificação, então, o documento por verificação, não restará caracterizado o crime de falsidade ideológica (CP, artigo 299).

 

PONTO 2 -Se o magistrado deferir a assistência judiciária gratuita, o que fazer se depois vier à tona que a pessoa beneficiada não fazia jus ao benefício? Abrir Inquérito Policial, aplicar o artigo 4° do CPP, "Quando, em autos ou papéis de que conhecerem, os juízes ou tribunais verificarem a existência de crime de ação pública, remeterão ao Ministério Público as cópias e os documentos necessários ao oferecimento da denúncia"?

 

Isso?

Entendemos que o deferimento do benefício da gratuidade afastou a tipicidade do crime de falsidade ideológica (CP, artigo 299), sendo aplicável, tão-somente as sanções (de natureza extrapenal) contidas na própria Lei n. 1.060/50, notadamente em seu artigo 4°, parágrafo 1°, que diz:

§ 1º. Presume-se pobre, até prova em contrário, quem afirmar essa condição nos termos desta lei, sob pena de pagamento até o décuplo das custas judiciais.

De mais a mais, os §§ 1º e 2º, do artigo 4º, da Lei nº 1.060/50 ressalvam à parte contrária a faculdade de impugnar o pedido de assistência judiciária.

 

Parece-nos que depois de deferir a gratuidade, jamais incidirá o tipo penal de falsidade ideológica, com base na mesma relação fática.

Nesse sentido já decidiu o Superior Tribunal de Justiça:

PENAL. PROCESSUAL. ASSISTENCIA JUDICIARIA DEFERIDA EM AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. INQUERITO POLICIAL. APURAÇÃO DE CRIME DE FALSIDADE IDEOLOGICA. TRANCAMENTO. "HABEAS-CORPUS". RECURSO.1. INCOERENTE SE TORNA A DECISÃO DO JUIZ QUE, EM UM PRIMEIRO MOMENTO, DEFERE BENEFICIO DE ASSISTENCIA JUDICIARIA, PARA DEPOIS, NO MESMO ATO, DETERMINAR A APURAÇÃO DE CRIME DE FALSIDADE IDEOLOGICA.2. AUSENTES QUAISQUER INDICIOS DA PRATICA DO CRIME EM QUESTÃO NO FATO DE A INDICIADA TER DECLARADO JUDICIALMENTE SER DESPROVIDA DE RECURSOS FINANCEIROS PARA CUSTEAR O ANDAMENTO DE UM PROCESSO;CABE AO JUIZ DETERMINAR A REALIZAÇÃO DE PROVA DO ESTADO DE NECESSIDADE.2. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO PARA DETERMINAR O TRANCAMENTO DO INQUERITO POLICIAL.(RHC 6.352/SP, Rel. Ministro EDSON VIDIGAL, QUINTA TURMA, julgado em 24.06.1997, DJ 08.09.1997 p. 42530).

É dizer:está mudando o entendimento do STJ, é o que se vê da mais recente decisão sobre o tema que estampa o informativo n. 368 de 15 a 19 de setembro de 2008, colhe-se:

FALSIDADE IDEOLÓGICA. DECLARAÇÃO. POBREZA.
Para o Min. Relator, a declaração de pobreza fora das hipóteses da Lei n. 1.060/1950, com a finalidade de obter o benefício da gratuidade judiciária, por si só, não se amolda ao delito tipificado no art. 299 do CP (falsidade ideológica), uma vez que essa declaração, em si mesma, goza da presunção juris tantum que está sujeita à comprovação posterior realizada de ofício pelo magistrado ou mediante impugnação (art. 5º da citada lei), portanto não constitui documento para fins penais. Destaca ser também nesse sentido o entendimento do STF.Precedente citado do STF: HC 85.976-3-MT, DJ 24/2/2006. REsp 1.044.724-SC, Rel. Min. Felix Fischer, julgado em 16/9/2008.

 

Conclusão:

 

Nosso entendimento (que dantes era outro) é no sentido de que é atípico o fato descrito acima. Pelo fato de que a famigerada (e falsa) declaração será possível de comprovação, se já deferido o benefício, aplicar-se-á a sanção prevista no parágrafo § 1° do artigo 4 da Lei n. 1.060/50 e não sanção penal.

 

Agora, vale uma crítica: restritivamente no caso da Defensoria Pública, impor um teto máximo de salário e nada mais para assim o cidadão ser atendido pela Instituição, é deveras temerário (para não dizer absurdo!). O critério está longe de ser objetivo (olhar somente o valor no 'contracheque'). É necessário um estudo mais aprofundado, ou seja, deveria a Defensoria Pública estar cercada de profissionais para assim fazer esta espécie de "triagem". Digo que necessário seria estar equipada por assistentes sociais, psicólogas e posteriormente fazer um juízo mais aprofundado de valor, ao menos é a nossa opinião!

 

Veja-se, o caso do crime, o cidadão não cometerá se apresentar (o documento) para a Justiça, muito menos se preencher o atestado nas instalações da Defensoria Pública.

 

Finalizando, se vai mais além na discussão do tema: a declaração em tela, não é documento para fins penais, por assim dizer, não é típica a conduta do agente agindo nos moldes acima.

 

Notas:

 

* Fernando César Faria, graduando em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso, ex-estagiário do Ministério Público de Mato Grosso, ex-estagiário da Defensoria Pública de Mato Grosso, ex-estagiário do Ministério Público Federal, Procuradoria da República em Mato Grosso, ex-Inspetor de Menores, voluntário, na comarca de Várzea Grande – MT, atual servidor público do Ministério Público de Mato Grosso. Autor de artigos Jurídicos – Contato:www.odireitocriminal.blogspot.com.

 

[1] Guilherme de Souza Nucci, Manual de Direito Penal, 2ª ed. RT, 2006, pág. 880.