Fundamentação material dos Direitos Fundamentais na contemporaneidade


Porbarbara_montibeller- Postado em 03 abril 2012

Autores: 
BRANCO, Maurício de Melo Teixeira
PAMPLONA FILHO, Rodolfo Mário VeigA
BARROS, Renato da Costa Lino de Goes

Resumo: Este artigo procura analisar a fundamentação teórica dos chamados direitos fundamentais, estabelecendo a crítica à concepção jusnaturalista, com a finalidade de prestigiar o conteúdo dos princípios da Dignidade da Pessoa Humana e do Estado Democrático de Direito como seus fundamentos epistemológicos.

Palavras-chave: Direitos fundamentais. Dignidade da Pessoa Humana. Estado Democrático de Direito. Fundamentação Material.

Abstract: This article intends to identify what allows recognizing a right as a fundamental right, criticizing its jusnaturalism conception. With this scope, it analyses its epistemological foundations, here identified as the principle of human dignity and the Democratic State of Law.

Keywords: Fundamental Rights. Human Dignity. Democratic State of Law. Materiality of Fundamental Rights.

Sumário: 1. Introdução. 2. Noções gerais sobre os direitos fundamentais. 2.1. A superação da concepção jusnaturalista. 2.2. A existência de um conteúdo material dos direitos fundamentais. 3. Fundamentos de materialidade dos direitos fundamentais. 3.1. O princípio da dignidade da pessoa humana. 3.1.1 O conceito da dignidade da pessoa humana sob a ótica jurídica do ordenamento brasileiro 3.1.2 O conceito da dignidade sob a ótica filosófica. 3.2. O princípio do Estado Democrático de Direito. 4. Conclusão. 5. Referências.

1. INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por finalidade tecer considerações sobre os direitos fundamentais na contemporaneidade, buscando a delimitação teórica de sua fundamentação material.
Isso porque há uma profunda cizânia neste tema, com constante invocação de preceitos axiológicos de fundamentação espiritual, para respaldar uma expressão jurídica de conteúdo universalizante, independentemente de credo. Malgrado o seu uso recorrente (ante à vinculação de outras normas aos preceitos que encerram direitos fundamentais), deve ser observado que o tema possui delimitação doutrinária bem definida.
Assim, é preciso compreender o sistema de fundamentação material dos direitos fundamentais a partir de sua própria cognição, o que se pretende fazer nos próximos tópicos.

2. NOÇÕES GERAIS SOBRE OS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Propor um conceito unívoco às normas de direitos fundamentais, diante da enorme heterogeneidade das disposições que as disciplinam, é uma tarefa digna de Hércules.
Com efeito, o risco inerente a tal pretensão lastreia-se no fundado receio de que um conceito termine por atuar como cerceador do conteúdo destas regras, não realizando a previsão de efetividade máxima esperada.
Tal missão é normalmente agravada também pela comum tentativa de se vincular a existência de direitos fundamentais a um valor pré-existente, em resgate de um jusnaturalismo divino, o que efetivamente não deve ser feito, diante da superação desta concepção.

2.1. A SUPERAÇÃO DA CONCEPÇÃO JUSNATURALISTA

Para Luis Roberto Barroso , o termo jusnaturalismo “identifica uma das principais correntes filosóficas que tem acompanhado o Direito ao longo dos séculos, fundada na existência de um direito natural”, sendo que tal direito tinha seu valor outorgado por uma ética extra-estatal.
Cumpre destacar que, no decorrer da história, o direito natural foi visto como uma máxima oriunda da vontade de Deus, e, já na idade Moderna, como uma lei ditada pela razão natural.
Sobre este aspecto, pondera Machado Neto :
Durante toda a idade Média, seja sobre o império da patrística, seja da escolástica, os fundamentos do direito natural jamais deixaram de ser a inteligência e a vontade divinas. Trata-se, portanto, aí, de uma teoria jusnaturalista de conteúdo teológico, unicamente compatível com uma sociedade e uma cultura marcadas essencialmente pela vigência de uma crença religiosa, pelo predomínio da fé.
É obra do moderno processo de secularização da vida que a ideologia jusnaturalista abandonasse as raízes teológicas que a alimentaram durante toda a idade média, para ir buscar, na identidade da razão humana, os fundamentos de sua validade perene e universal.

Nesta concepção, ao considerar-se o direito natural, seja como sendo fruto das leis divinas, seja da racionalidade natural, desprestigiava-se, invariavelmente, as potencialidades humanas, uma vez que se desconsiderava o Direito como um instrumento cultural.
Eduardo Bittar , nesta linha, pontua que, “apesar de sua significação histórica e de sua importância para a formação dos modernos direitos humanos, o jusnaturalismo setecentista e oitocentista não constrói uma discussão inovadora nos meandros teóricos da fundamentação do Direito a partir da natureza (phýsis, natura)”.
Em decorrência deste fato, o jusnaturalismo foi perdendo espaço, principalmente, no que concerne às discussões sobre os direitos fundamentais.
Prosseguindo, destaca Eduardo Bittar que se percebeu a necessidade de ver “o Direito sem recorrer a fundamentos tipicamente medievais, ligados às dimensões espiritual e metafísica (lex divina), mas com simples apelo à própria idéia de natureza (natureza humana individual e racional), domínio de estudos filosóficos”.
Neste caminho, vale frisar que melhor sorte não assistiu à iniciativa da mera positivação dos direitos naturais em estatutos de direitos humanos, na fase inicial do positivismo, pois tal atitude vacilou ao admitir que o valor deste direito de índole personalíssima ficasse equiparado aos demais direitos positivados, sem estabelecer um conteúdo diferenciador que expressasse o seu real valor.
Mais uma vez, nas palavras de Eduardo Bittar :
A banalização dos direitos naturais em estatutos de direitos humanos positivados torna-os, além de direito positivo (com valor de qualquer outro conteúdo de direito positivo, na medida em que podem ser revogados e substituídos a qualquer tempo), uma experiência trivializada de direitos, para utilizar-me de uma linguagem empregada por Tércio Sampaio Ferraz Junior. A fungibilidade do que se põe como conteúdo de um “direito humano” torna-o tão frágil e tão substituível quanto qualquer outro direito, na medida em que sua difusão não garantiu a salvaguarda real das pessoas contra o arbítrio

Sobre esta superação da visão jusnaturalista, ligada à dimensão espiritual e metafísica, bem como da experiência positivista, sem estabelecer critérios que demonstrasse o valor diferenciado deste direito fundamental, ensina Luis Roberto Barroso que:
A superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso político do positivismo abriram caminho para um conjunto amplo e ainda inacabado de reflexões acerca do Direito, sua função social e sua interpretação. O pós-positivismo é a designação provisória e genérica de um ideário difuso, no qual se incluem a definição das relações entre valores, princípios e regras, aspectos da chamada nova hermenêutica e a teoria dos direitos fundamentais.

Neste mesmo sentido, pondera Machado Neto que:
Assim é que, hoje, de posse das importantes descobertas da fenomenologia e da filosofia dos valores, da existência e da cultura, já é possível dar por superado o jusnaturalismo, como expressão pré-científica de fundamentação da ciência jurídica. Hoje é possível já ver claro nesse setor, e concluir que o direito natural, longe de ser ciência, era apenas ideologia, tolerável num tempo em que os instrumentos teóricos da filosofia não tinham ainda sido convenientemente elaborados para a exploração fecunda do problema dos valores, e hoje inteiramente superada pela fundamentação da axiologia jurídica, que é a tarefa a mais premente e grandiosa que os nossos tempos estão a esperar e a exigir dos filósofos do presente.

Neste novo cenário, tornou-se possível o diálogo do Direito com os valores, diferentemente do quanto apregoado pelo positivismo, que previa a separação da ciência jurídica com a axiologia.
Explica Luis Roberto Barroso que:
Para poderem beneficiar-se do amplo instrumental do Direito, migrando da filosofia para o mundo jurídico, esses valores compartilhados por toda a comunidade, em dado momento e lugar, materializam-se em princípios, que passam a estar abrigados na Constituição, explícita ou implicitamente. Alguns nela já se inscreviam de longa data, como a liberdade e a igualdade, sem embargo da evolução de seus significados. Outros, conquanto clássicos, sofreram releituras e revelaram novas sutilezas, como a separação dos Poderes e o Estado democrático de direito. Houve, ainda, princípios que se incorporaram mais recentemente ou, ao menos, passaram a ter uma nova dimensão, como o da dignidade da pessoa humana, da razoabilidade, da solidariedade e da reserva de justiça.

Os direitos fundamentais, nesta perspectiva, são enxergados não como valores universais e atemporais, advindos de uma razão natural, mas sim como frutos de uma construção de origem histórico-cultural, baseando-se nos valores expressos através dos princípios.
Neste sentido, esclarece Eduardo Bittar :
Não se pode dizer que a pós-modernidade abole a modernidade, e nem mesmo que as distorções no uso dos direitos humanos redundam numa negação desta categoria de direitos. Pelo contrário, seus fundamentos mudaram, não se trata mais de verifica-los como revelações da Razão, como instâncias universais, como valores atemporais, mas como construtos histórico-culturais de profunda significação para a garantia e preservação da dignidade da pessoa humana.

Pelo exposto, evidente é o fato de que não se pode sucumbir, aqui, a tentação de vincular a existência de direitos fundamentais a um valor pré-existente, em resgate de um jusnaturalismo divino e/ou racional, pois se acredita que é possível, sim, esboçar um conceito positivo para os direitos fundamentais, baseando-se em valores-guias.
A noção primeira sobre o tema parte da idéia da existência de um conteúdo fundamental destes direitos.

2.2. A EXISTÊNCIA DE UM CONTEÚDO MATERIAL DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Oscar Vilhena Vieira defende que os direitos fundamentais correspondem ao conjunto de direitos da pessoa humana reconhecidos de forma expressa ou implícita pela CF/88 .
Enquanto isto, Dirley da Cunha Júnior vincula o conceito à noção de normas que disciplinam toda a atuação estatal, impondo a este o dever de “proteger a vida humana, no seu nível atual de dignidade, buscando realizar, em última instância, a felicidade humana” . Tais direitos possuem, de acordo com o referido pensamento, lastro no princípio da dignidade da pessoa humana. A mesma idéia é obtida por Ana Cristina Costa Meireles, que ensina que os direitos fundamentais são “densificações normativas” daquele princípio .
Já Robert Alexy recorre ao positivismo para determinar o que sejam normas de direito fundamental, trazendo uma resposta compatível com a coerência interna da Constituição alemã: é fundamental a norma prevista em critério formal, que corresponde a um critério de positivação pré-estabelecido . Logo, a definição primeira do que seja direito fundamental cabe muito mais a uma atuação política e não meramente interpretativa de um determinado conteúdo.
Isto não implica que Alexy propugne ser este sistema de direitos fundamentais um sistema fechado. Ao revés, defende a existência de normas não diretamente enunciadas pela Constituição com conteúdo fundamental, que nomeia como “normas de direito fundamental atribuídas”.
Assim, para este autor, existem dois grupos de normas de direitos fundamentais: as estabelecidas diretamente pelo texto constitucional e as atribuídas .
Tal, para Ingo Wolfgang Sarlet, corresponde à idéia de um catálogo constitucional de direitos fundamentais. O que varia, entre Sarlet e Alexy, é o grau de abertura conferida ao catálogo: mais amplo para o primeiro (Sarlet), mais restrito para o segundo (Alexy).
Na realidade, o pensamento de Alexy pode ser elucidado a partir da concepção de que estes direitos podem ser divididos em dois grandes conjuntos, organizados de acordo com sua fonte jurídica, ou seja, tendo por fundamento os mecanismos e os meios pelos quais estas normas surgem ou se afirmam.
O grupo inicial corresponde aos direitos “formalmente” fundamentais, estabelecidos a partir de opção legislativa, e o derradeiro aos direitos “materialmente” fundamentais, identificados como portadores de conteúdo que conecta a um valor fundamental.
Também Gomes Canotilho adere à noção de direitos fundamentais como direitos constitucionalmente positivados, de onde se derivam consequências jurídicas . Tal qual Alexy, também não preceitua Canotilho que estes direitos constituam um sistema fechado. Seu pensamento defende a existência de um sentido formal dos direitos fundamentais positivados, dos quais se derivam outros direitos (fundamentais em sentido material).
Sob o prisma focal meramente histórico, estes dois autores concebem os direitos fundamentais como inicialmente um sistema formalista, ao que a atividade legislativa e interpretativa exerce um papel de derivação (ou atribuição) de outros direitos, que são fundamentais em razão do seu conteúdo (essência).
Questiona-se: como um positivista da magnitude de Alexy poderia defender a existência de tais normas atribuídas? Responde-se: exigindo, como critério de validade intransponível, que exista uma referência a direitos fundamentais (estes sim positivados) nestas normas atribuídas. Logo, o seu surgimento decorre da evolução interpretativa de uma norma efetivamente estabelecida .
Esta consideração evoca duas conclusões: para o sistema, correspondendo à insegurança relativa, pois é impossível determinar com exatidão qual é o rol dos direitos fundamentais, o que seria negativo do ponto de vista da certeza que se espera na defesa dos direitos fundamentais (e da sua atuação como limite interpretativo e legislativo). Com certeza, a tarefa de interpretar e legislar se torna ainda mais complexa diante da obrigação de não contrariar algo que não se sabe exatamente o que é ou como se delimita.
Em outro diapasão, corresponde a meio de criação de novos direitos fundamentais , que serão desdobramento dos já estabelecidos, permitindo a evolução do sistema e o atendimento das finalidades propostas pelo Estado. E nesta linha, é deveras positivo, mesmo porque, dentro de uma lógica de maximização da efetividade destes direitos, é muito mais preocupante a sua não aplicação do que o estabelecimento de novos mecanismos de contenção ou defesa.
Em arremate, Ingo Sarlet aponta que são igualmente direitos fundamentais as posições jurídicas que se referem a pessoas, tendo como base os direitos positivados no texto constitucional e, portanto, retirados do ámbito de disponibilidade dos poderes constituídos, bem como os dispositivos que, por seu conteúdo, importância e significado, se equiparam ao primeiros. Logo, não se confundem com disposições contidas apenas na Carta Constituicional em sentido formal, adequando-se às previsões contidas na denominada “Constituição material”.
Tal significa que também este autor defende a existência de um rol de direitos fundamentais não restrito ao texto constitucional, mas pertencente a um sentido material de fundamentalidade.
Diante dessas conclusões, faz-se mister delimitar o contorno dos direitos fundamentais em sentido material, visando a alcançar o fundamento que permite a sua criação (seja por um processo de atribuição, derivação, equiparação ou geração de direitos) na sociedade contemporânea.

3. FUNDAMENTOS DE MATERIALIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Robert Alexy defende que a pertinência de uma norma atribuída ao sistema de direitos fundamentais decorre da sua relação com uma norma do mesmo gênero que esteja positivada no ordenamento jurídico.
Trata-se, portanto, de uma regra de coerência interna.
Há, porém, quem apresente um fundamento externo ao catálogo de direitos fundamentais positivados como raiz destes direitos, quando considerados apenas sob o ponto de vista da sua materialidade. É a concepção segundo a qual os direitos fundamentais possuem um conteúdo que lhes é inerente. Como aponta Ingo Sarlet, “direitos fundamentais em sentido material são aqueles que, apesar de se encontrarem fora do catálogo, por seu conteúdo e por sua importância podem ser equiparados aos direitos formalmente (e materialmente) fundamentais.”
Neste contexto, a materialidade não decorreria da derivação de um direito positivado, mas sim da percepção de que um determinado valor é importante para uma determinada sociedade. Este valor é considerado de tal forma importante que lhe é outorgado o status de direito fundamental.
Propugnando por um exemplo desta corrente, Sarlet cita Hesse, para quem os direitos fundamentais são garantias pontuais destinadas à proteção de bens e posições jurídicas relevantes ou ameaçadas . Posição análoga é trazida por Felipe Derbli , no sentido de que a dignidade corresponde à proteção ao mínimo existencial.
Neste condão é também o que propõe José Afonso da Silva, ao identificar nos direitos fundamentais uma nota de essencialidade. Para este autor, a idéia de direito fundamental encerra um conteúdo sem o qual a pessoa humana não sobrevive, pois não se realiza ou convive com as demais pessoas . E é essa essencialidade que determina, ao lado do seu reconhecimento formal, a sua efetivação de forma material e concreta.
Consiste, portanto, no critério que leva em conta a coerência a valores-guia, não necessariamente inclusos como direitos fundamentais em um sistema positivado.
Dentre estes valores, dois são mais comumente apontados como base para um sistema de direitos fundamentais: a dignidade da pessoa humana e a idéia de soberania popular no Estado Democrático de Direito.
Mesmo não partilhando desta opinião, Ingo Sarlet informa o papel da dignidade da pessoa humana na configuração dos direitos fundamentais:
A idéia de que os direitos fundamentais integram um sistema no âmbito da Constituição foi objeto de recente referência na doutrina pátria, com base no argumento de que os direitos fundamentais são, em verdade, concretizações do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, consagrado expressamente em nossa Lei Fundamental.

Em seqüência lógica, cumpre tratar, portanto, primeiramente do conteúdo do princípio da dignidade da pessoa humana, cuidando-se em seguida do principio do Estado Democrático de Direito.

3.1. O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

O estudo do princípio da dignidade da pessoa humana percorre necessariamente dois caminhos.
O primeiro diz respeito à sua importância no ordenamento jurídico brasileiro, na qualidade de valor fundante de outros direitos e de inspiração normativa. O sentido desta análise é delimitar bem as hipóteses de utilização e recurso ao princípio em estudo.
O segundo caminho diz respeito ao conteúdo universalizante do instituto, que deve ser buscado em detrimento da sua utilização espiritual. Neste sentido, se recorre ao instituto a partir da sua formação filosófica e ontológica.

3.1.1 O CONCEITO DA DIGNIDADE SOB A ÓTICA JURÍDICA DO ORDENAMENTO BRASILEIRO

No decorrer do Século XX, houve uma tendência de inclusão dos princípios fundamentais do Direito nas constituições dos países de tradição romano-germânica.
Tanto é que no Brasil, a Constituição Federal de 1988 incluiu, como fundamento da República Federativa do Brasil, o princípio da dignidade da pessoa humana .
Neste caminho, a prestigiada posição alçada pela dignidade da pessoa humana , nos termos e na forma proposta pela Constituição Federal brasileira, irradia sua eficácia a todo o ordenamento jurídico pátrio, demonstrando, especialmente no que concerne às relações privadas, a alteração de seu enfoque ao desprestigiar a autonomia e o patrimônio em nome do reconhecimento da necessidade de proteção do homem, visto em sua essência.
Considera-se característica própria de um sistema de direitos fundamentais a sua possibilidade de ampliação. Neste ponto, o trabalho analítico do legislador constituinte brasileiro é digno de louvor, uma vez que logrou formalizar um número elevado de direitos fundamentais disciplinados pela proteção da positivação no texto constitucional.
Em decorrência disto, o sistema brasileiro de direitos fundamentais pode ser considerado, hoje, superior aos que lhes antecederam, o que traz a noção de que o Estado brasileiro tornou-se mais democrático. “A amplitude do catálogo dos direitos fundamentais, aumentando, de forma sem precedentes, o elenco dos direitos protegidos, é outra característica preponderantemente positiva digna de referência” .
Não há a menor sombra pálida de dúvida quanto a esta afirmativa diante da possibilidade de integração dos direitos fundamentais realizada através de um processo criativo destas normas, respeitando-se, ao mesmo tempo, tanto a idéia de pertinência a um conteúdo específico (materialidade), quanto a referência a uma norma positivada (formalidade), superando-se qualquer resquício de vinculação necessariamente espiritual ou divina na sua tutela.
Por esta razão, o reconhecimento da dignidade da pessoa humana implica na necessidade de reconstrução do sistema, especialmente na ótica civil-constitucional. Neste sentido, propõe Maria Celina Bodin de Moraes :
Para a adequada e coerente reconstrução do sistema, impõe-se ao civilista o desafio de restabelecer o primado da pessoa humana em cada elaboração dogmática, em cada interpretação e aplicação normativas. A transposição de normas diretivas do sistema de Direito Civil para o da Constituição acarretou relevantíssimas conseqüências jurídicas que se delineiam a partir da alteração da tutela, que era oferecida pelo Código ao “indivíduo”, para a proteção, garantida pela Constituição, à dignidade da pessoa humana, elevada à condição de fundamento da República Federativa do Brasil. O princípio constitucional visa garantir o respeito e a proteção da dignidade humana não apenas no sentido de assegurar um tratamento humano e não-degradante, e não conduz exclusivamente ao oferecimento de garantias à integridade física do ser humano. Dado o caráter normativo dos princípios constitucionais, princípios que contêm os valores ético-jurídicos fornecidos pela democracia, isto vem a significar a completa transformação do Direito Civil, de um Direito que não mais encontra nos valores individualistas codificados o seu fundamento axiológico.

Afinal, com o advento do Novo Código Civil Brasileiro numa leitura civil-constitucional, já é possível enxergar uma alteração na tendência de seu enfoque, reduzindo a importância dada às situações patrimoniais em nome da prevalência da situação extrapatrimonial, uma vez que a proteção humana deve ser prioritária.
Neste caminhar, o intérprete deve fazer-se valer desta nova orientação, aplicando a norma jurídica, numa perspectiva integrativa civil-constitucional, no intuito de que seja tutelada, sempre prioritariamente, a dignidade da pessoa humana na resolução das lides postas em análise.
Esse processo de re-conformação do ordenamento, que pressupõe a derivação de direitos fundamentais, oferece o risco de alheamento dos direitos fundamentais a partir da utilização do valor guia da dignidade da pessoa humana dentro de uma visão espiritualista.
Como visto linhas acima, a dignidade humana , com a Constituição de 1988, veio a ser jurisdicionalizada , alcançando o patamar de fundamento da República Federativa Brasileira para efetivamente influenciar toda a ordem jurídica.
Daí a dificuldade encontrada pela doutrina de delimitar os contornos e limites desta dignidade, uma vez que ela baseia a ordem jurídica em todos os seus diferenciados campos de regulação.
Maria Celina Bodin de Moraes , neste sentido, propõe o desdobramento do “substrato material da dignidade” em quatro postulados, a saber:
i) o sujeito moral (ético) reconhece a existência dos outros como sujeitos iguais a ele, ii) merecedores do mesmo respeito à integridade psicofísica de que é titular; iii) é dotado de vontade livre, de autodeterminação; iv) é parte do grupo social, em relação ao qual tem a garantia de não vir a ser marginalizado. São corolários desta elaboração os princípios jurídicos da igualdade, da integridade física e moral – psicofísica -, da liberdade e da solidariedade.

Nesta perspectiva, a dignidade, explica a aludida autora, viria à tona, no caso concreto, quando realizada a concretização destes postulados, visando a ampla defesa dos direitos da personalidade decorrentes do princípio da dignidade.
Sobre a personalidade, ensina Maria Celina Bodin de Moraes :
A personalidade é, portanto, não um “direito”, mas um valor, o valor fundamental do ordenamento, que está na base de uma série (aberta) de situações existenciais, nas quais se traduz a sua incessantemente mutável exigência de tutela. Por isso, não pode existir um número fechado (numerus clausus) de hipóteses tuteladas: tutelado é o valor da pessoa, sem limites, salvo aqueles postos no seu interesse e no interesse de outras pessoas humanas.

Assim, os direitos da personalidade estão garantidos pelo princípio da dignidade humana, alcançando a pessoa humana o posto de valor fundamental do ordenamento.
Necessário se faz, por oportuno, recorrer ao fundamento jurídico e filósofico da dignidade da pessoa humana, no intuito de que sejam alcançados seu contorno e sua limitação.

3.1.2 O CONCEITO DA DIGNIDADE SOB A ÓTICA FILOSÓFICA

O conteúdo de dignidade da pessoa humana nem sempre foi o mesmo, tendo tido grande evolução no pensamento filosófico ocidental.
Originalmente, dignidade se referia a possuir uma posição dentro de uma hierarquia socialmente reconhecida . Em momento posterior, conclui-se que a vida humana enseja uma proteção diferenciada. Assim, a tutela conferida ao valor vida passou a exigir a presença de uma especial qualificação.
Com o objetivo de definir esta qualificação, verifica-se que as duas grandes correntes da ética (relativismo e objetivismo) passam a considerar a vida humana sob um novo ponto de vista. Assim, o valor que será objeto da corrente relativista é a qualidade de vida, ao passo que a teoria objetivista irá debruçar-se sobre a questão da dignidade da vida.
Logo, para o relativismo, o respeito à vida humana será analisado sob o prisma do utilitarismo (sentir prazer ou não sentir dor), da cognição (capacidade de tomada de decisões) ou do contratualismo (participação no contrato social). A principal decorrência da aplicação da teoria relativista é a conclusão de que nem toda vida deve ser respeitada, mas tão somente aquelas em que está presente um elemento axiológico, que é a “qualidade de vida” .
Por outro viés, para a corrente objetivista, a ilação natural da condição de humanidade é o reconhecimento de que a vida possui uma dignidade intrínseca, razão pela qual deverá ser respeitada. Tal respeito é uma decorrência lógica da mera condição de ser humano, não importando o seu grau de desenvolvimento, mas sim a sua pertinência à espécie humana. Portanto, o reconhecimento de que é preciso proteger o homem enquanto pessoa se dá mediante a identificação da sua individualidade. O ser humano é um ser dotado de espírito e, por esta razão, sua vida é considerada digna e merece ser protegida .
Seguindo uma lógica de maximização dos efeitos dos direitos fundamentais, parece ser mais coerente aceitar a premissa trazida pela corrente objetivista de que todo ser humano é digno. Como decorrência da sua dignidade, ao ser humano é aplicável uma proteção jurídica, cujo conteúdo foi delimitado por Kant. É este autor que defende que o ser humano possui uma dignidade ontológica: “a dignidade da humanidade consiste precisamente na aptidão que ela possui para estatuir leis universais, embora com a condição de simultaneamente estar sujeita a esta legislação.” .
Deste trecho, extrai-se que a dignidade possui, ao mesmo tempo, duas características. Conforme a primeira, trata-se de um valor criado pela humanidade e que se pretende universal. De acordo com a segunda, tem-se que se destina à tutela da própria humanidade, nela encontrando o seu objeto e a sua razão de ser. Portanto, trata-se de um valor ao mesmo tempo direcionado e oponível ao próprio ser humano.
As reflexões sobre a dignidade feitas por Kant influenciaram e prevalecem no pensamento filosófico da atualidade.
Neste caminho, fazendo alusão a Kant, sustenta Martins que: “em termos filosóficos-constitucionais parece haver um certo consenso no sentido de se considerar o princípio da dignidade da pessoa humana a partir da sua construção teórica”.
O fundamento kantiano baseia-se na premissa de que o homem, como ser racional, deve ser entendido como um fim em si. Assim, sustenta Kant :
Ao invés, os seres racionais são chamados pessoas, porque a natureza deles os designa já como fins em si mesmos, isto é, como alguma coisa que não pode ser usada unicamente como meio, alguma coisa que, conseqüentemente, põe um limite, em certo sentido, a todo livre arbítrio (e que é objeto de respeito). Portanto, os seres racionais não são fins simplesmente subjetivos, cuja existência, como efeito de nossa atividade, tem valor para nós; são fins objetivos, isto é, coisas cuja existência é um fim em si mesma, e justamente um fim tal que não pode ser substituído por nenhum outro, e ao serviço do qual os fins subjetivos deveriam pôr-se simplesmente como meios, visto como sem ele nada se pode encontrar dotado de valor absoluto.

Impõe ele, para tanto, um imperativo prático que prevê que a humanidade deve ser tratada sempre como fim, e não como um meio para algo. E, neste caminho, o homem deve ser visto como um sujeito criador, capaz de criar suas próprias leis, impondo-as a si mesmo dentro de um ambiente de união sistêmica por meio de leis comuns. Explica Kant que :
Os seres racionais estão todos sujeitos à lei, em virtude da qual cada um deles nunca deve tratar-se a si e aos outros como puros meios, mas sempre e simultaneamente como fins em si. Daqui brota uma união sistêmica de seres racionais por meio de leis objetivas comuns, ou seja, um reino o qual atendendo a que tais leis têm precisamente por escopo a relação mútua de todos estes seres, como fins e como meios, pode ser denominado reino dos fins (o que, na verdade, é apenas um ideal). Mas um ser racional pertence, na qualidade de membro, ao reino dos fins, pois que, muito embora ele promulgue leis universais, no entanto está sujeito a essas leis. Pertence-lhe na qualidade de chefe, enquanto, como legislador, não está sujeito a nenhuma vontade alheia.

É esta relação mútua, dentro do chamado reino dos fins, que impõe a necessidade de agir neste sentido. Nas palavras de Kant : “procede assim, não tendo em vista qualquer outro motivo prático ou vantagem futura, mas levada pela idéia de dignidade de um ser racional que não obedece a nenhuma outra lei que não seja, ao mesmo tempo, instituída por ele próprio”.
Cuida-se, portanto, de um conceito essencialmente aplicável ao homem enquanto ser social. Por meio da dignidade, o homem afirma a própria existência, sendo reconhecido pelos demais homens, que lhe apreciam e conferem valor . Como conclusão de que o princípio da dignidade é um princípio socialmente aplicável, tem-se que o mesmo se realiza por meio do reconhecimento da autonomia do alter, que é livre e possuidor de direitos idênticos aos dos demais seres humanos que o cercam .
Como há de se demonstrar, a dignidade da pessoa humana não se confunde com os direitos fundamentais, mas será a condição necessária para sua aplicação. É o que entende José Afonso da Silva, para quem “dignidade da pessoa humana é um valor supremo que atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais do homem, desde o direito à vida” .
Logo, o princípio tem por finalidade estatuir que todos os homens estão em mesma situação jurídica, o que decorre do fato de pertencer a uma mesma natureza, que é dita humana. Segundo Andorno :
Con tal principio se quiere destacar que ya no se admite actualmente la existencia de hombres de segunda categoria, se sub-humanos, de vidas sin valor vital. Es suficiente con ser hombre para ser reconecido como persona. Todos los hombres son igualmente dignos, em razon de su naturaleza común. Ser digno equivale, por tanto, a ser persona.

Ao preceituar uma proteção, a dignidade implica o reconhecimento da igualdade dos homens, e desta decorre que nenhuma pessoa possui poderes para interferir na autonomia de outra.
Por derradeiro, como aduz Velázquez , não se pode invocar a condição social, nem interpretações subjetivas restritivas, tampouco o utilitarismo como forma de limitar o acesso à dignidade. Por decorrer unicamente da condição humana da pessoa, não se admite que um homem limite a dignidade de outro.
O critério para o efetivo reconhecimento da tutela trazida pela concepção axiológica da dignidade somente pode ser a humanidade, posto ser ela o bem jurídico tutelado por este valor. É o valor do homem enquanto ser humano e pelo fato mesmo de ser homem .
Este é o delineamento que lhe confere Kant, para quem o fato de o ser humano atuar como o legislador da dignidade o converte imediatamente no primeiro súdito desta regra. Portanto, mesmo se superada a moral que dá origem ao princípio da dignidade, este restará como limite intransponível pelo ser humano, permanecendo prestigiado em seu posto de valor máximo. O homem é o meio e o fim do significado da dignidade da pessoa humana .
Dentro desta reflexão, refuta Kant qualquer tentativa de coisificação do ser humano, garantindo ele a posição de destaque do ser racional humano ao sustentar que o mesmo estaria acima de todo e qualquer preço, não admitindo equivalente, por ter uma dignidade. Neste sentido, destaca Kant : “o que constitui a só condição capaz de fazer que alguma coisa seja um fim em si, isso não tem apenas simples valor relativo, isto é, um preço, mas sim um valor intrínseco, uma dignidade”.
O ser racional humano é dotado de dignidade, que o faz insubstituível e o faz livre para elaborar sua própria lei, que o regerá, inclusive, impondo-o deveres. Isto significa dizer, nas palavras de Martins , que: “o homem precisa do dever para tornar-se um ser moral, pois obedecê-lo consiste em obedecer a si mesmo, na medida em que foi o próprio ser humano que consciente e racionalmente estabeleceu o dever”. Sobre esta moralidade, disciplina Kant :
Ora, a moralidade é a única condição capaz de fazer que um ser racional seja um fim em si, pois só mediante ela é possível ser um membro legislador no reino dos fins. Pelo que, a moralidade, bem como a humanidade, enquanto capaz de moralidade, são as únicas coisas que possuem dignidade. (...). Esta estimação leva-nos a reconhecer o valor de tal maneira de pensar como uma dignidade, e coloca-a infinitamente acima de todo o preço, com o qual não pode ser nem avaliada nem confrontada, sem que de algum modo se lese sua santidade.

Tal postura revela o perfil antropológico adotado por Kant em suas reflexões, pois somente a racionalidade da pessoa humana é que justificaria o seu reconhecimento como fim em si mesmo e de sua dignidade, atribuindo-lhe um valor superior a qualquer “preço”, não admitindo qualquer substituto equivalente. Ademais, é certo também que, neste quadro, a dignidade da pessoa humana decorre também do fato de que, em decorrência de sua racionalidade, o ser humano tem autonomia para seguir o quanto disciplinado pela legislação universal criada no reino dos fins. Neste caminho, dispõe Kant :
De fato, nenhuma coisa possui valor, a não ser o que lhe é assinado pela lei. Mas a própria legislação, que determina todos os valores, deve ter, justamente por isso, uma dignidade, isto é, um valor incondicionado, incomparável, para o qual só o termo respeito fornece a expressão conveniente da estima que todo ser racional lhe deve tributar. A autonomia é, pois, o princípio da dignidade da pessoa humana, bem como de toda a natureza racional.

Indubitável que o ser humano diferencia-se de todos os outros seres por uma qualidade própria. Preocupa-se o ser humano, de uma forma geral, não apenas em compreender-se, como também em compreender o outro, esforçando-se para suprir suas necessidades e da sociedade.
Tratando desta distinção do ser humano, esclarece Maria Celina Bodin de Moraes :
Para distinguir os seres humanos, diz-se que detêm uma substância única, uma qualidade própria apenas aos humanos: uma “dignidade” inerente à espécie humana. A raiz etimológica da palavra “dignidade” provém do latim dignus – “aquele que merece estima e honra, aquele que é importante”; diz-se que sua utilização correspondeu sempre a pessoas, mas foi referida, ao longo da Antiguidade, apenas à espécie humana como um todo, sem que tenha havido qualquer personificação.

Neste sentido, pondera Callejo :
Los derechos a la vida, a la integridad física y moral, al honor; a la intimidad, a la libertad de expresión, ideológica, etc, solo tiene sentido porque son exigência de uma idea de la persona como ser revestido de uma dignidad humana que le diferencia de otros seres vivos de los que no se predican esos derechos y dignidad. Los tratadistas del Derecho Político, salvo alguna posición positivista muy minoritária, coinciden em esta idea de la dignidad como valor prévio de la persona, dimanante del derecho natural.

Tal visão parece ter se solidificado na maior parte dos ordenamentos constitucionais a partir da ratificação da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Esta petição de princípios, inegavelmente ciente do risco inerente à declaração de superioridade de um ser humano sobre outro, teve por fim afirmar a igualdade de todos os seres humanos, ao menos no que toca ao reconhecimento da dignidade de toda a humanidade.
Discorrendo sobre esta carta política internacional, Velázquez destaca como sua principal vitória a noção de que todas as pessoas são portadoras de direitos. Complementar a este raciocínio, Alarcón atesta que “a tendência dos ordenamentos constitucionais foi pautar-se pelo reconhecimento do homem como o centro e o fim do direito” .
Inexistem duas dignidades distintas, nem se pode estabelecer graus entre a proteção conferida a um ser humano e outro. Como bem observa Roberto Andorno, “la dignidad ontológica es una cualidad inseparablemente unida al ser mismo del hombre, siendo por tanto la misma para todos. [...] En este sentido, todo hombre, aun el peor de los criminales, es un ser digno” .
Isto se dá diante da impossibilidade de se conceber a dignidade sob qualquer ponto de vista, que não o humano. O legislador da dignidade é necessariamente o homem, que, pela concessão deste direito ao outro, recebe-o de forma reflexa; o conteúdo do valor dignidade é justamente o reconhecimento do ser humano como portador de direitos. Trata-se de uma prerrogativa que é concedida pelo homem a ele próprio, enquanto tal, realizando, assim, a sua essência ontológica.
Velázquez crê que “el mejor escudo contra las violaciones de la dignidad son los derechos humanos. Pero la dignidad hay que assegurarla también por dentro. Lo que esta em juego es la idea misma de ser humano.” .
Ingo Wolfgang Sarlet não fundamenta diretamente no princípio da dignidade da pessoa humana todos os direitos fundamentais, e não o faz em razão de optar por um conteúdo diverso do que seja dignidade: “também os direitos fundamentais de nossa Constituição não radicam, em sua totalidade, ao menos não de forma direta, no princípio da dignidade da pessoa humana.” .
Esta visão é de que o rol de direitos fundamentais é extremamente amplo para ter pertinência direta a um só tema, ao que alguns destes direitos teriam correlação não-imediata com o princípio da dignidade da pessoa humana (embora todos sejam, sem sombra de dúvida, concretizações deste princípio) .
Todavia, parece correto enunciar que é a dignidade que assegura a realização dos direitos humanos, haja vista que a verificação da proteção jurídica exige o prévio reconhecimento como sujeito de direito.
Defende Canotilho que o fundamento “dignidade da pessoa humana” na estrutura da Constituição Portuguesa pode ser reconhecida nos cinco elementos identificados por Podlech: afirmação da individualidade; garantia de livre desenvolvimento da personalidade; criação de mecanismos de socialidade e manutenção de mínimos existenciais; garantia da autonomia individual e igualdade jurídica-social dos cidadãos.
A principal conclusão do autor é que a estrutura da Constituição Portuguesa parte de uma base antropológica, do qual se extrai a defesa do homem, a um só tempo, como cidadão, como pessoa, como administrado e como trabalhador . Ou seja, a raiz dos direitos fundamentais constitucionais está na proteção ao ser humano, em suas diversas dimensões.
Acredita-se que tais considerações apontadas para a Carta Política portuguesa podem ser estendidas em grande parte ao sistema constitucional brasileiro (e, quiçá, ao espanhol!), ante à identidade do valor-guia “dignidade da pessoa humana” nos dois sistemas.
Não se pode olvidar que o principal bem jurídico tutelado pelo ordenamento é o respeito ao homem. Tal se dá mediante o reconhecimento da dignidade que lhe é intrínseca, permitindo que seja sujeito de direitos, em igualdade de condições com os demais seres humanos.
Mas não é somente a dignidade da pessoa humana o fundamento de materialidade que confere base aos direitos fundamentais.
Para garanti-la, mister se faz um Estado efetivamente organizado.
Por isso, é preciso compreender também o principio do Estado Democrático de Direito como fundamentação e garantia dos direitos fundamentais.

3.2. O PRINCÍPIO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

Ao lado do pensamento que embasa os direitos fundamentais na dignidade da pessoa humana, deve ser trazido, como fundamento de materialidade destes direitos, o princípio do Estado Democrático de Direito.
Define Ingo Sarlet que o Estado Democrático de Direito tem como fundamento a existência da segurança jurídica, que atua como espécie de freio ao despotismo e à prática de iniqüidades. Eleva, assim, a segurança jurídica ao status de “subprincípio concretizador do princípio fundamental e estruturante do Estado de Direito” .
A ligação dos direitos fundamentais com o princípio democrático, no seu viés de autodeterminação dos povos (soberania popular), é trazida por Sarlet como uma tríplice vertente: ao mesmo tempo, encerram pressuposto, garantia e instrumento deste princípio.
Democracia relaciona-se com a própria lógica de direitos fundamentais, já que a exigência do preenchimento de determinados direitos envolve, a um só tempo, a participação popular e, a partir da idéia de liberdade, exige-se a criação da transparência . Logo, de acordo com Canotilho, uma sociedade em que se garantem os direitos fundamentais é também uma sociedade efetivamente democrática.
Ingo Sarlet apresenta posição em sentido análogo, defendendo serem os direitos fundamentais um dos elementos constitutivos da Constituição (em sentido material), já que versam também sobre a estrutura básica do Estado e da Sociedade.
José Afonso da Silva, por sua vez, aponta que os direitos fundamentais “são direitos que nascem e se fundamentam, portanto, no princípio da soberania popular” , reforçando assim sua natureza de elementos constitutivos do Estado Democrático de Direito. Por soberania popular, entende-se a legitimação do Estado por meio da atribuição do poder ao próprio povo . Logo, na medida em que atende às expectativas do povo, o Estado alcança sua almejada legitimidade.
Tais direitos correspondem também ao que se pode chamar de essência do Estado Constitucional, já que se revestem de fundamentalidade a forma de Estado, a organização do poder e a definição do sistema de governo. Sarlet os denomina, dentro desta concepção de direitos fundamentais enquanto representação do princípio democrático, como elementos nucleares da Constituição material .
Em verdade, não existe uma relação de oposição entre os dois fundamentos apontados. No sistema constitucional brasileiro, verifica-se que ambos direcionam-se para uma mesma noção, sendo igualmente fundamentos do Estado brasileiro.
Como ensina Ingo Sarlet , alcançar a dignidade da pessoa humana é uma das tarefas impostas ao Estado, que o fará por meio de “ações tanto no sentido de preservar a dignidade existente ou até mesmo de criar condições que possibilitem o pleno exercício da dignidade”. É correta a opinião deste autor quando preceitua que a obtenção da dignidade depende da ordem comunitária, nem sempre sendo possível ao indivíduo realizar, por si só, suas necessidades existenciais básicas. Tal resultado é obtido, muitas vezes, com o concurso do Estado ou da comunidade.
Logo, por aplicação da teoria contratualista do Estado, observa-se que a dignidade da pessoa humana é uma das finalidades que autorizam a outorga de poder a este ente. Portanto, a legitimidade do Estado Democrático de Direito está diretamente ligada à aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana . Este é o seu principal objetivo , sem o qual não há justificativa para a submissão do indivíduo ao ente estatal.
Foi reconhecido à dignidade um caráter de norma de regulamentação, frente à qual deve ser analisada a validade das demais normas. Por esta razão, Alarcón conclui que, do ponto de vista formal, o princípio da dignidade guarda um valor de pré-compreensão da estrutura do Estado jurídico brasileiro, sendo muito mais do que o conceito de enunciado principiológico .
Alarcón defende que “o princípio da dignidade da pessoa humana não apenas é fundamento do Estado Democrático de Direito, mas valor constitucional.” . Para Ingo Wolfgang Sarlet, vai além: é o valor-guia não só dos direitos fundamentais, como também de toda a ordem constitucional .
Deixando de lado a discussão sobre qual dos dois valores exerce papel de raiz sobre o outro, há que se registrar que os dois conceitos (democracia e dignidade da pessoa humana) traduzem, ao final, um mesmo valor: igualdade jurídica e social.
Nessa linha, é o que também se extrai de Edvaldo Brito, que fundamenta os direitos fundamentais em uma idéia de igualdade, que seria o próprio vetor do desenvolvimento destes direitos . Este pensamento termina por concluir em sentido análogo à noção da dignidade da pessoa humana como base dos direitos fundamentais, em uma visão de dignidade Kantiana.
Por este motivo, defende-se que a fundamentalidade material decorre da realização da igualdade jurídica e social, logrando-se êxito, neste sentido, em alcançar um conteúdo não espiritual dos direitos fundamentais, a partir dos seus fundamentos de materialidade.
Logo, o processo de materialização dos direitos fundamentais, ao mesmo tempo em que corresponde ao pensamento de que existe uma especial importância no objeto tutelado por estas normas, corresponde também à atribuição de conteúdo referenciado com os guias axiológicos às normas positivadas.
Com isso, conduz-se a uma visão otimista da defesa dos direitos fundamentais no Brasil: o processo de derivação de direitos fundamentais pode alcançar simultaneamente a proteção material, no sentido de que os direitos fundamentais possuem natureza supralegal, estando no ápice do ordenamento; bem como a proteção formal, sujeitando estes direitos a limite de reforma constitucional, como cláusulas pétreas.
Não abarca, portanto, o pensamento jusnaturalista ou subjetivista do conteúdo destas normas. Afinal, seu fundamento possui previsão legal, inserta na grande maioria das constituições de origem romano-germânica. É exatamente o caso do Brasil.

4. CONCLUSÃO

No mundo contemporâneo, os direitos fundamentais são, para uns, o exemplo mais eloqüente da relevância do jusnaturalismo ainda nos dias atuais, especialmente quando se vinculam a conteúdos reconhecidos como de direitos humanos.
Todavia, o entendimento que predomina é o de que os direitos humanos se constituem em uma espécie de resquício jusnaturalista que fora capturado pelo Direito Positivo, merecendo, de maneira geral, grande espaço nos textos constitucionais.
Contudo, há um problema. Em que pese a sua estrita vinculação com a noção de humanidade e de personalidade, a sua utilização indiscriminada termina por enfraquecer o instituto, lhe retirando justamente o conteúdo universalizante.
É que os direitos humanos, neste sentido fundamental, acabam por assumir também a condição de um direito supranacional, um direito que nem mesmo as Constituições poderiam revogar ou deixar de adotar. Ou seja, uma espécie de Justiça Universal no sentido que Kant concebeu a idéia e Kelsen rapidamente percebeu.
O desafio de seu estudo na contemporaneidade é revestir estes institutos de conteúdo amplo o bastante para alcançar a eficácia plena, sem que, por outro lado, se percam em total subjetividade. Alcançar esta tênue medida é o desafio do intérprete, que deve fazê-lo sem recorrer à espiritualidade das normas.
Por isso, arremata-se este texto com a poética conclusão de Joaquín Herrera Flores:
Culturalmente hablando, ni el mal ni el bien proceden de algún topos uranos o esfera transcendental desde la que se nos impone una determinada forma de actuar moralmente. El mal reside en todo intento por despotenciar a los seres humanos en su capacidad social instituyente; mientras que el bien, no será otra cosa que la construcción de condiciones para que todas y todos tengamos el suficiente poder y autoridad para poner en práctica nuestra capacidad de lucha por la dignidad. El rey está desnudo. Imaginemos nuevos mundos. Construyamos las condiciones que nos permitam llegar a ellos. Empoderémonos mutuamente. Luchemos por los derechos humanos como procesos de lucha por la dignidad humana. Claves necesarias para la implementación efectiva y material de nuestra concepción cultural, contextual y conceptual de los derechos humanos como productos culturales .

É no próprio ser humano, como pessoa destinatária de dignidade, e no próprio Estado Democrático de Direito, titular do papel de garantidor desta dignidade, que reside a fundamentação e a epistemologia tanto dos direitos fundamentais quanto dos direitos humanos, em qualquer uma de suas acepções.

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