A IMPUTABILIDADE PENAL E OS "FRONTEIRIÇOS", OU A SEMI-IMPUTABILIDADE PENAL E UMA VISÃO DE JUSTIÇA,


PorThais Silveira- Postado em 24 abril 2012

Autores: 
Francisco Deliane e Silva

A IMPUTABILIDADE PENAL E OS "FRONTEIRIÇOS", OU A SEMI-IMPUTABILIDADE PENAL E UMA VISÃO DE JUSTIÇA, 

Francisco Deliane e Silva[1]
 
Apresentação
 
Na minha militância como advogado criminalista, como magistrado, e como defensor público com atuação na área criminal, constatei a precariedade da “avaliação pericial” para constatação da imputabilidade penal, avaliação esta, que indevidamente, se insere no rol de atribuições dos médicos legistas[2], quando de sua atividade profissional.
Ocorre que estas avaliações, inadequadamente materializadas no “Exame de Sanidade Mental”, são conditio sine qua non[3] na coleta dos elementos embasadores da justa aplicação da pena[4] ou de sua atenuação, conforme estabelecido nos artigos 26 usque 28 do Código Penal.
Observa-se que a quase totalidade das comarcas do país se encontra desprovida de serviços médico-legais que possuam profissionais com especialidade médica em psiquiatria[5], resultando daí, que tais exames, quando realizados, são efetivados de forma sumária e por profissionais pouco afeitos à semiologia[6] psiquiátrica, sendo incontroversa a inexistência de Serviços de Psiquiatria Forense[7], em quantidade capaz de suprir a intensa demanda nacional.
Embora, a sabedoria de Kant[8] tenha afirmado que "não é necessário ser médico para determinar se uma pessoa é alienada mental, bastando para isso somente um pouco de bom senso", sabe-se que a natureza não age por salto (natura non agit per saltu), portanto, não é de se supor a exclusiva existência dos dois extremos: normalidade plena e loucura total, capazes de serem identificados apenas pelo bom senso, posto que entre ambos, há os chamados demi-fous (semi-loucos), que são os demi-responsables, portanto, o presente trabalho cuida precisamente da semi-imputabilidade dos variadíssimos casos situados entre esses dois extremos; a doença franca e o normal evidente.
Desse modo, no presente ensaio a par de se discutir o assunto, busca-se, sobretudo, que esses exames periciais sejam elaborados de forma adequada, para que possam servir realmente aos seus jurídicos propósitos e atender aos fins do Estado-Jurisdição consistente na efetiva entrega da prestação jurisdicional através de uma sentença justa, contribuindo para a consecução do fim precípuo do Estado, consubstanciado no bem comum, por esta razão propomos a criação de “Serviços de Psiquiatria Forense” vinculados ao poder judiciário e compostos por equipes multidiciplinares, integradas por profissionais especializados em psiquiatria, por psicólogos, e assistentes sociais, para que se possa obter uma maior aproximação do almejado ideal de Justitia e se efetivar o caráter terapêutico, pertinente ao direito penal, e tão relegado pelo Estado. 
 
Introdução
Decidi abordar este aspecto do direito que se situa em uma esfera do conhecimento em que se interligam de forma assaz peculiar, o Direito, a Psiquiatria e a Psicologia[9], contudo, não se pode olvidar que o estudo de situação tão complexa, como a semi-imputabilidade, ou semi-incapacidade somente pode ser possível ser efetuado se além do luzeiro destas ciências, igualmente se lhe focar o lume da filosofia, da moral e da ética.
Desse modo, cumpre informar inicialmente que o presente ensaio tem por escopo levantar questionamentos acerca da difícil situação dos cárceres abarrotados de grandes quantidades de homens e mulheres infelizes (semi-loucos), que “involuntariamente” causaram a desagregação dos próprios e de inúmeros lares, e que são motivo de grandes gastos de dinheiro público, e que não obstante os elevados ônus impostos aos contribuintes para manutenção do sistema penitenciário, ainda assim, se encontram abandonados a triste conseqüência dos atos que praticaram, exclusivamente por serem incapazes de ordenar e orientar suas ações.
Com efeito, apesar do “fronteiriço[10]”, quase sempre ter consciência da ilegalidade do ato que pratica (aspecto normativo) e escolher agir agredindo valores vitais de outras pessoas – a liberdade e a integridade física delas – porque persegue objetivo bem definido (aspecto psíquico), sua incapacidade resulta do fato de não ter domínio sobre a ação ilegal que pratica vez que não é senhor de sua própria vontade. 
Por isso, a meu ver, embora diante da “sombra da loucura” caiba fixar a resposta penal tradicional, (redução da pena), se faz impositivo, entretanto se promover à substituição da pena pelo tratamento, na medida em que a intervenção clínica é a que melhor se ajusta aos fins de proteção do próprio acusado e da sociedade in totum, colaborando para erigir mecanismos pessoais de controle da moléstia (assim mesmo), pois, somente com estas atitudes restará favorecida a convivência social e serão implementados os verdadeiros fins da pena[11].
Efetivamente, a pena pressupõe domínio sobre a ação e é exatamente este domínio que se encontra prejudicado diante da condição de “fronteiriço”, de tantos homens e mulheres que se encontram ergastulados, com elevado custo para o sistema prisional, contribuindo para a falência do sistema carcerário do nosso país, e ensejando graves malefícios à sociedade nos mais diferentes aspectos e graus.  
Apesar do quadro instável constante do “fronteiriço”, parece mais prudente, tendo em vista a característica excepcional da pena de privação de liberdade, substitui-la pela internação ou mesmo pelo atendimento ambulatorial independentemente da gravidade do crime praticado, mesmo na hipótese de se haver pendurado ao delito a etiqueta da hediondez, uma vez que a conduta típica somente se realizou em virtude do comprometimento volitivo em razão das peculiaridades da personalidade do agente[12].
Assim, a nosso viso, nos casos de semi-imputabilidade a intervenção penal deve ter cunho terapêutico e não punitivo, associando-se o recurso médico às necessidades que a lei objetivamente não pode determinar.
 
Imputabilidade 
O verbo transitivo imputar, (do Lat imputare) significa “atribuir a alguém a responsabilidade de...”; portanto, para o direito, imputar significa atribuir culpa ou delito a outro. Assim sendo, uma pessoa considerada "imputável" é aquela sobre quem podemos atribuir alguma coisa, seja uma culpa, um delito, enfim, uma responsabilidade.
Inicialmente, é importante notar que a culpabilidade é o juízo de censura que o ordenamento jurídico-penal realiza sobre o autor do fato, reprovando, normativamente, uma conduta típica e ilícita praticada por uma pessoa que tenha capacidade de entender e querer e de comportar-se de acordo com esse entendimento, bem como, nas circunstâncias concretas do fato, tenha possibilidade de conhecer a sua ilicitude e de agir de outro modo.
Daí, dessume-se que a culpabilidade tem um pressuposto, que é a imputabilidade, e dois requisitos, quais sejam, a possibilidade concreta de conhecer a ilicitude da conduta e a possibilidade concreta de agir de outro modo (exigibilidade de comportamento conforme o Direito).
Se a pessoa não preencher o pressuposto e nem os requisitos da culpabilidade, o Direito Penal não reprovará sua conduta, não censurará seu comportamento.
Ocorre que, o Código Penal não define a culpabilidade, mas tão-somente as causas de sua exclusão, ou tipos permissivos exculpantes ou dirimentes, assim, no estudo da culpabilidade a doutrina sempre recorre ao modelo causal[13], ou seja, procura detectar uma causa para a pretendida culpa; é culpado por casa disso, daquilo, etc. 
Ademais, è cediço que a forma mais humana de se cogitar sobre as causas da culpa se dá através da ligação psíquica entre o agente e o fato, resultando daí que a noção de culpabilidade e, conseqüentemente, da imputabilidade, deve sempre utilizar subsídios da ciência médica especializada na função psíquica.
Sabe-se que foi aplicando as noções das funções psíquicas à ética que se supôs da existência de, no mínimo, duas situações determinantes entre a pessoa e o ato; a situação voluntária (volitiva) e a situação involuntária (ou impulsiva casual).
De posse da distinção entre essas duas modalidades de relacionamento entre o sujeito e o objeto, firmou-se a distinção jurídica entre dolo e culpa.
O Código Penal Brasileiro trata Imputabilidade Penal no título III, da sua parte geral e não conceitua a imputabilidade, mas sim a inimputabilidade, ao consagrar em seu artigo 26 que: 
“É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter criminoso do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”.
Entendendo o legislador que entre a higidez mental e a total insanidade psíquica, de que cuida o Caput do artigo 26, existe uma zona cinzenta, uma “sombra da loucura”, na qual se localizam os “fronteiriços” ou semi-imputáveis, e destes cuidou no parágrafo único do citado artigo 26, contudo, o fez de forma simplista determinando por força da adoção do sistema vicariante, que de acordo com a situação in concreto, predominância ou não do quadro mórbido, o magistrado aplique a medida de segurança ou a redução da pena, conforme se vê do dispositivo assim redigido.
“A pena pode ser reduzida de um a dois terços, se o agente, em virtude de perturbação da saúde mental ou por desenvolvimento mental incompleto ou retardado não era inteiramente capaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de acordo com esse entendimento”.
Cuidando, ainda, da imputabilidade o Código Penal estabelece em seu artigo 28 que: “Não excluem a imputabilidade penal: I - A emoção e paixão; II - a embriaguez, voluntária ou culposa, pelo álcool ou substância de efeitos análogos”.
Também, neste artigo, o texto legal, evidencia que a noção de imputabilidade, deve sempre utilizar, como já dito, as situações determinantes entre a pessoa e o ato; quais sejam a situação voluntária (volitiva) e a situação involuntária (ou impulsiva, casual), e, sabe-se que para isso não se pode olvidar os conceitos de dolo e culpa. 
Neste diapasão, cumpre gizar que para a existência do dolo, verifica-se a necessidade da presença de três elementos, quais sejam: a consciência do ato (psíquico), à vontade (psíquico) e o conhecimento da ilicitude (normativo), e a ocorrência da culpa consiste na ausência ou prejuízo de um ou mais desses três elementos, portanto, em caráter latu sensu, pode-se afirmar que a culpa pode existir independente da consciência do ato e o dolo não.
Assim sendo, a não imputabilidade ou a inimputabilidade, estaria presente quando não se puder atribuir ao agente à culpa (e evidentemente, o dolo). Normalmente essa situação diz respeito à pessoa que não tem condições de discriminar a natureza ilícita da ação, não tem consciência plena do que está fazendo ou não tem nenhum domínio sobre sua volição (vontade).
Saliente-se, ainda, que com referência aos requisitos da culpabilidade, o Código Penal disciplina que a possibilidade concreta de conhecer a ilicitude da conduta não se verifica se houver erro sobre a ilicitude do fato[14] (erro de proibição), e que não é exigível ao autor comportamento conforme o Direito se houver coação moral irresistível ou obediência hierárquica.
Efetivamente a sanção penal somente pode se impor uma vez constatada a reprovabilidade da formação da vontade do autor do fato, resultando daí a importância da pessoa se determinar de acordo com o seu entendimento.
Ora, hoje é praticamente corrente a aceitação da “teoria finalista da ação”, que compreende a conduta apenas se orientada a um determinado objetivo, o qual influi, até mesmo, para a caracterização de um tipo. 
Vale lembrar que o juízo de culpabilidade, segundo Giuseppe Bettiol, "...não diz respeito tanto ao fato externo realizado quanto à vontade que realizou o próprio fato[15]". Não significa, entretanto, uma simples vontade da prática delituosa, caso em que se verifica, isto sim, o dolo, o tipo subjetivo, integrante da tipicidade. Trata-se de censura a uma vontade plenamente consciente da ilicitude. 
Juan Bustos Ramires[16] leciona que não se pode, para determinar o conteúdo da culpabilidade, partir do indivíduo, sem que se conceba o indivíduo na sociedade, ou seja, o homem concreto: "...sua relação social concreta, em que se dá seu comportamento como uma forma de vinculação", lecionando ainda que, “... se cuida de considerar ao homem concreto que se vincula dentro dessa relação social concreta; é a consideração desse homem não como simples sujeito, senão como ator, isto é, que cumpre determinado papel designado, mas realizado por ele".
Com isto, evidencia-se que na consideração dos elementos da 
reprovabilidade, tem que se ter em mente que o fato ilícito é fruto de um ato social, dentro da relação social, razão pela qual se devem sempre considerar as condições do autor (biológicas e psíquicas) e sua dimensão social. 
A personalidade
Etimologicamente a palavra personalidade é proveniente do latim tardio “personalìtas”, e significa 'aquilo que constitui a pessoa em geral, a possessão de si mesmo', ou seja o 'caráter próprio de uma pessoa em particular', ou ainda as 'qualidades que definem a individualidade de alguém'. Para o dicionarista Houaiss, personalidade é um substantivo feminino com as seguintes acepções: qualidade ou condição de ser uma pessoa; o conjunto de qualidades que define a individualidade de uma pessoa moral, o aspecto visível que compõe o caráter individual e moral de uma pessoa, segundo a percepção alheia, ou ainda, aquilo que diferencia alguém de todos os demais; qualidade essencial de uma pessoa; identidade pessoal, caráter, originalidade. 
Para a psicologia, a personalidade consiste no conjunto dos aspectos psíquicos que, tomados como uma unidade, distinguem uma pessoa, especialmente os que diretamente se relacionam com os valores sociais, e, por último, para a ciência jurídica a personalidade é a qualidade pela qual um ser é considerado como pessoa pelo direito, com a capacidade de ser sujeito de direitos e obrigações.
O Código Civil Brasileiro inicia seu primeiro livro cuidando da personalidade, e estipula no seu artigo primeiro que “toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”, para, logo em seguida, explicitar no artigo segundo que “a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro”, e, finalmente fixa a incapacidade absoluta, em seu artigo terceiro, nos seguintes termos:
“Art.3° - São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil:
I – os menores de 16 (dezesseis) anos;
II – os que, por enfermidade ou deficiência mental não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos;
III – os que mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade”.
Neste trabalho interessa particularmente a semi-incapacidade, ou seja, a incapacidade relativa que o Código Civil trata em seu artigo quarto, quando preceitua que:
“Art. 4° - São incapazes, relativamente a certos atos ou à maneira de os exercer:
I – os maiores de dezesseis e menores 18 (dezoito anos);
II – os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido;
III – os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo;
IV - Os pródigos;
Para o presente estudo interessa, especificamente, os transtornos da personalidade, tendo em vista a culpabilidade ter por pressuposto, a imputabilidade, e requerer a possibilidade concreta do agente conhecer a ilicitude da conduta e a possibilidade concreta de agir de outro modo (exigibilidade de comportamento conforme ao Direito).
Ora, o portador de transtornos da personalidade, a nosso viso, não preenche o pressuposto e nem os requisitos da culpabilidade, portanto o Direito Penal não poderá reprovar sua conduta, e nem censurar o seu comportamento, em face do modelo causal adotado pela doutrina para o estudo da culpabilidade.
In casu, é importante gizar que o estudo, a pesquisa e tratamento das pessoas diagnosticadas como portadoras do transtorno de personalidade é um dos maiores desafios para os estudiosos de saúde mental. 
Os fronteiriços
A grosso modo pode se afirmar que os fronteiriços são via de regra “indivíduos portadores das mais variadas espécies de transtornos da personalidade”, portanto, para melhor definição sobre quem seja o individuo “fronteiriço”, mister se faz perquirir acerca dos transtornos da personalidade.
Assim, sabendo-se que a personalidade é a síntese de nossos comportamentos, cognições e emoções que faz de cada um de nós uma pessoa única, e que estes atributos tendem a ser estáveis e permanentes, permitindo a previsibilidade de nossas reações e que embora nossa personalidade tenha por características a estabilidade e a permanência, a ponto de ensejar a previsibilidade de nossas reações a determinadas situações, ainda assim, a pessoa com uma personalidade saudável demonstra uma grande variedade de respostas às situações de vida e principalmente às situações estressantes, portanto, o transtorno de personalidade ocorre quando uma pessoa não pode mostrar tal flexibilidade e adaptabilidade. 
A falta de adaptabilidade e o limitado repertório de respostas frente às situações comuns de vida, e principalmente daquelas mais estressantes, torna-se uma importante fonte de sofrimento para o indivíduo “fronteiriço” e para os que estão à sua volta.
Os transtornos de personalidade tornam-se reconhecíveis na adolescência ou, às vezes antes, e, permanecem pela maior parte da vida adulta, são padrões desadaptados, inflexíveis, muito enraizados e de severidade suficiente para atrapalhar o funcionamento da pessoa e causam muito sofrimento.   
Para melhor compreensão acerca da variada gama e da intensa diversidade de transtornos, e a míngua de melhor definição, vale  a pena consultar o artigo que trata da  história dos “fronteiriços”, contada pelo ilustrado psicólogo clínico Ailton Bedani[17], que principiou seus estudos nos relatos do festejado médico Philippe Pinel[18] que já no ano de 1801 relatou um sério distúrbio de comportamento, a mania sem delírio (manie sans délire) e o conclui de forma absolutamente atual, após informar breves detalhes   
Na verdade, as personalidades “fronteiriças”  são também chamadas de personalidades limítrofes, e de borderline, e são descritas detalhadamente no DSM-IV, Ocorre que as personalidades borderline, às vezes são confundidas (indevidamente) com personalidades bipolares, contudo, vale salientar que o quadro borderline se caracteriza por dificuldades em estabelecer relacionamentos sociais duradouros, mudanças de ânimo súbitas e extremas, e instabilidade de auto-imagem. É um distúrbio sério, de difícil tratamento, que calcula-se atingir cerca de 2% da população (três de cada quatro casos são mulheres).
A Psiquiatria é uníssona no sentido de que a Personalidade Limítrofe ou o Transtorno de Personalidade Borderline se caracteriza por um padrão de relacionamento emocional intenso, porém, confuso e desorganizado. A instabilidade das emoções é o traço marcante deste transtorno, que se apresenta pelas flutuações ou rápidas variações no estado de humor de um momento para outro, sem justificativa real, essas pessoas reconhecem sua labilidade emocional mas para tentar encobri-la justificam-na geralmente com argumentos implausíveis. Seu comportamento impulsivo freqüentemente é auto-destrutivo. 
As pessoas vitimadas por este transtorno não possuem claramente uma identidade de si mesmos, com um projeto de vida ou uma escala de valores duradoura, até mesmo quanto à própria sexualidade. A instabilidade é tão intensa que acaba incomodando o próprio portador de personalidade bordeline que em dados momentos rejeita a si mesmo, por isso a insatisfação pessoal é constante . 
Sobre a origem das personalidades limítrofes, ou fronteiriças, o psiquiatra forense Guido Palomba[19], ao tratar sobre o tema nos informa que “as doenças mentais e os distúrbios que ficam entre a normalidade e a loucura, têm uma origem orgânica, normalmente cerebral, mas muitas vezes não é possível saber onde está. Seria uma disritmia, uma anormalidade cerebral. Ou um problema nos neuro transmissores”. 
 
Distinção entre a capacidade penal e responsabilidade penal, e integração do Direito e a Medicina (psiquiatria)
A capacidade de imputação é avaliada pela perícia médica. Já a responsabilidade penal é de competência da jurisdição, tendo em vista o ato praticado, levando-se em conta, de um lado, a avaliação de sua capacidade de imputação e de outro, o conjunto de provas da materialidade dos fatos cuja autoria deve-se ser atribuída.
Para o eminente professor Flamínio Fávero[20], a responsabilidade penal se traduz na declaração de que um indivíduo em concreto, imputável e efetivamente idôneo para sofrer as conseqüências jurídico-penais de um delito, como autor e participante dele, requer a declaração pronunciada pelo juízo competente ao final do devido processo legal. 
Desse modo, a imputação de um delito a alguém apenas indica a relação do ato-efeito com o agente-causa. Por outro lado, a responsabilidade penal importa na relação do agente com as conseqüências do delito, na forma determinada pela lei. 
Como já foi fartamente dito, a capacidade de imputação poderá ser plena (total), parcial ou nula, implicando imputabilidade, semi-imputabilidade e inimputabilidade, sabendo-se que existem modificadores que podem alterar a capacidade de imputação, previstos em nosso ordenamento jurídico, como por exemplo, a norma inserta no artigo 27 do Código Penal Brasileiro, que estabelece ser absolutamente nula a capacidade de imputação de atos criminosos praticados por menores de dezoito anos (art.27 do C.P.).
Estabeleceram nossos legisladores, embasados em critério biopsicológico a idade de dezoito anos como marco inicial para que alguém possa ser responsabilizado criminalmente. Trata-se de uma ficção jurídica que baseia a maturidade psíquica na idade cronológica, para os efeitos da responsabilização do agente. É uma presunção jures et jure: de direito e por direito que não admite discussão em contrário. Portanto, o menor de 18 anos, frente ao nosso código é inimputável e irresponsável por absoluta presunção legal, ficando sujeito a normas estabelecidas em legislação especial.
Outro exemplo, reside no fato de ser nula a capacidade de imputação dos agentes em estado de embriaguez completa pelo álcool ou substância de efeitos análogos, proveniente de caso fortuito ou por força maior (art.28, II, parágrafo 1º, C.P.), valendo ressaltar que se a embriaguez não for completa, ensejara apenas a semi-imputabilidade (art.28, II, parágrafo 2º. C.P.), tratada neste ensaio.
Por outro lado, cumpre registrar, no entanto, que o diagnóstico de alcoolismo cronificado é englobado no conceito geral de doença mental, devendo ser apreciado à luz do art.26 “caput” do Código Penal.
 
Aspectos Processuais Penais Relevantes
A questão da responsabilidade penal é assunto de elevada importância em direito, até mesmo por sua própria ambigüidade, pois de um lado nos remete a "ausência da penalização" e ao rótulo de doente mental concomitante ao tratamento de uma patologia que momentaneamente retirou a capacidade de discernimento do indivíduo. E de outro, um sujeito não mais possuidor do "direito de pagar" por um erro jurídico cometido no momento de uma manifestação sintomática. Resta-lhe então assumir a doença e conseqüentemente a discriminação desta ou lutar incessantemente por um tipo específico de cura que lhe é demandado. 
 
Assim, toda vez que houver dúvida quanto à integridade psíquica do autor de um crime, deve se determinar o “exame prévio” (incidente de sanidade mental), nos termos dos artigos 149 a 151 do Código de Processo Penal, que ora se transcreve, comi in verbis:
Artigo 149. Quando houver dúvida sobre a integridade mental do acusado, o juiz ordenará, de ofício ou a requerimento do Ministério Público, do defensor, do curador, do ascendente, descendente, irmão ou cônjuge do acusado, seja este submetido a exame médico-legal.
Artigo 150. Para o efeito do exame, o acusado, se estiver preso, será internado em manicômio judiciário, onde houver, ou, se estiver solto, e o requererem os peritos, em estabelecimento adequado que o juiz determinar.
Artigo 151. Se os peritos concluírem que o acusado era, ao tempo da infração, irresponsável, nos termos do artigo 26 do Código Penal, o processo prosseguirá, com a presença do curador.
O diagnóstico para comprovação de inimputabilidade é muito sutil, e deve ser sempre sendo formado de exames da estrutura de personalidade, entrevistas sociais, anamnese e posteriormente verificação do grau de periculosidade. Acontece, que tudo isto ocorre cronologicamente de forma distinta da temporalidade jurídica, o que poderá comprometer por vezes a possibilidade de uma certeza diagnóstica. 
Ademais, é importante salientar que o direito remete a inimputabilidade exclusivamente ao momento do ato cometido e em suas conseqüências esta pessoa nem sempre possui as mesmas manifestações sintomáticas da época do crime cometido. 
É exatamente por força deste aspecto, que muitas vezes não é muito bem esclarecido, que aponta para graves erros de diagnóstico, ensejando a dúvida no campo do jurídico entre a semi-imputabilidade e a inimputabilidade. 
Neste diapasão, é, também, importante lembrar o teor do artigo 182 do mencionado Código de Processo Penal, que libera o juiz de se limitar ao resultado da capacidade de imputação  avaliada pela perícia médica, pois, embora a prova pericial seja de extrema importância no processo, o Juiz, fundamentadamente, pode afirmar a sua convicção através de outras provas, visto que o nosso ordenamento jurídico acolhe o princípio do livre convencimento do Juiz[21] (art. 157 do CPP)"
Artigo 182. O juiz não ficará adstrito ao laudo, podendo aceitá-lo ou rejeitá-lo no todo ou em parte.
 
CONCLUSÃO
È de comezinho conhecimento que, por força de normas do próprio direito natural ao juiz não é permitido julgar ou extrair convicção de ação penal instaurada contra ser humano enfermo, contudo, tal disciplinamento, na prática acaba não ocorrendo, exatamente pela dificuldade do diagnóstico que muitas vezes deixa dúvidas intransponíveis acerca da imputabilidade, ou mesmo do grau de inimputabilidade, se absoluta ou relativa, e muitos doentes acabam sendo julgados como se doente não fossem, reativando antigo dilema: delinqüente doente não se submete à tipologia penal, se não se aferir o estágio de insanidade, de ausência ou deficiência de autodeterminação, quando da prática do ato antijurídico, visando à definição de semi-imputabilidade ou de inimputabilidade. 
Por outro lado sabe-se que a reabilitação dos segregados implica na reestruturação em caráter macro de todo o sistema social, e em caráter micro da integridade do sistema penitenciário a que estamos submetidos.
Nesta reestruturação deve ser primordialmente afastada a hipocrisia de que em nosso país, as garantias constitucionais são respeitadas, e que na grande maioria das nações, no Brasil os direitos humanos têm sido observados, ou mesmo que os governos propiciam condições mínimas de sobrevivência (saúde, segurança, habitação e educação), e que o Estado se aproxima de seu fim, ou seja, realiza o bem estar de todos.
Por causa desta verdade sabida e experimentada, este trabalho, lamentavelmente não haverá de lograr os resultados práticos que propõe, mas, ainda assim, mesmo configurando-se em mero alerta, poderá contribuir para a conscientização de todos os operadores do direito, e, sobretudo dos detentores do poder, diretamente responsáveis pelas mazelas dos cárceres, deste nosso país, gigante pela própria natureza.
Ora se a precariedade das condições de manutenção dos sãos é patente, imagine-se como se haverá de fazer para a recuperação dos doentes, dos marginalizados e dos criminosos, quando já, se constata absolutamente evidenciada a falência do sistema prisional, e a inexeqüibilidade da vetusta Lei de Execução Penal.   
Embora, levando-se em conta que o bem comum é o objetivo primordial do Estado, mesmo assim, não se pode afastar a indagação, acerca da existência ou não de realmente interesse do Estado em recuperar ou reabilitar os delinqüentes são e os doentes encarcerados? 
A resposta negativa a esta indagação, nos faz perquirir se a sociedade civil – as ONG’s empresariais, os convênios médicos, assistenciais e previdenciários – podem; devem; e estarão preparados para substituir o Estado?
De novo a resposta evidentemente é negativa e nos leva a inquirir se enquanto o Estado não consegue realizar este ideal de bem comum, e a sociedade civil organizada não consegue substitui-lo, a Justiça deverá ser aplicada cegamente a todos, enfermos e delinqüentes, pela mesma fórmula? 
Por fim pergunta-se se as famílias, que estão a sobreviver abaixo da linha de miséria, têm meios para receber de volta ou amparar o condenado são, ou pior ainda o encarcerado doente que não teve nenhuma chance de reabilitação, em virtude da própria estrutura prisional? 
Para que não haja a absoluta exclusão do “fronteiriço” (assim chamado àquele que se encontrar no limiar entre a normalidade e a loucura), é extremamente necessária a promoção de meios de adaptá-lo, cuidá-lo e recuperá-lo, caso contrário, ao invés de “salvar” o doente, acabaremos, por mandá-los todos para o cárcere, atribulados com etiquetas, tais como a “hediondez” indevidamente colada ao tipo penal, com o único desideratum de esconder a absoluta ineficiência do Estado na solução dos seus conflitos e de suas mazelas.
Ora, se esta fórmula perdurar (indistinção entre o criminoso e o doente + elevação da pena + impedimento de progressão para o seu cumprimento), sucumbiremos todos, trancados em nossas próprias grades, amedrontados pelas atitudes dos sofredores doentes e delinqüentes que o sistema penal, não consegue sequer distinguir quanto mais recuperar. 
Cumpre gizar, finalmente, que somente a distinção entre a delinqüência e a semi-responsabilidade, implicará na estrita observância aos direitos humanos ou no respeito à cidadania, tão precária em nossa sociedade contemporânea.  
Desse modo, um dos vários caminhos que apontam de forma eficaz e bastante contributiva para a solução dos gravíssimos males do sistema penal brasileiro implica no estabelecimento de um sistema exclusivamente diferenciado para doentes (imputáveis e semi-imputáveis) e criminosos, pois, somente a partir desta distinção abre-se um túnel de luz para a solução da crise do sistema penitenciário, com efeitos benéficos para a sociedade, para a economia e para o direito. Conseqüentemente se consubstanciando em um fator de elevado reforço para a estabilidade social. 
Outrossim, não se pode deixar de registrar que em nosso país não existem estatísticas confiáveis sobre a situação dos sistemas, tanto de saúde mental como de cumprimento de penas e menos ainda da situação de simples criminosos ou de seres humanos doentes. Ademais, é triste registrar que a incapacidade do Estado, desestimula os advogados, os promotores de Justiça e os próprios juízes a fazerem uso da via da instauração do incidente de insanidade, e até mesmo de dependência de substâncias psicoativas. 
E este desestímulo reside no temor que se pretende fundado no fato de que estarão condenando quaisquer destes seres humanos a uma segregação perpétua e desassistida, num inadequado manicômio, até que a reavaliação da temida medida de segurança permita a revogação desta verdadeira pena. 
É lamentável saber que enquanto a sociedade civil organizada e os próprios operadores do Direito fazem vistas grossas à incapacidade do Estado, pelo tratamento desigual entre criminosos doentes e sãos, e fazem ouvidos moucos aos direitos do preso ou da obrigatoriedade de sua internação, mantendo-o em prisões superlotadas e infectas, acaba este, pela própria fraqueza, por ser engolido pelo sistema, tornando-se absolutamente irrecuperável, abandonado e, esquecido, até que a definitiva loucura (ou a própria morte) o extermine! 
O País, pela via de seu povo e do seu sistema judiciário e de saúde incapaz e omisso não pode assistir impassível que o semi-imputável, o fronteiriço, ou mesmo, o “doente mental” se torne absolutamente inapto e desarticulado para o convívio social, ou seja, arrastado para uma previsível morte, por inadequação do tratamento penal que lhe é dado. 
 

[1] O autor é Advogado especializado em Direto Penal e Processual Penal, foi Magistrado e Defensor Público, é Poeta e Escritor.
[2] Independentemente de serem os mesmos detentores de especialidade em psiquiatria.
[3] “Condição sem a qual não...”
[4] Vide Art. 59 do Código Penal.
[5] Ramo da medicina que se ocupa do diagnóstico, da terapia medicamentosa e da psicoterapia de pacientes que apresentam problemas mentais.
[6] Em clínica médica é o meio e modo de se examinar um doente, especialmente de se verificarem os sinais e sintomas; propedêutica, semiótica, sintomatologia.
[7] Vide o sitio do IBEMOL – Instituto Brasileiro de Ensino e Pesquisa em Medicina e Odontologia Legal na rede mundial de computadores no seguinte endereço: http://www.ibemol.com.br/forense2000/321.asp.
[8] Immanuel Kant (1724/1804), filósofo alemão, em geral considerado o pensador mais influente dos tempos modernos. Autor da “Critica da razão pura”.
 
[9] Ciência que trata dos estados e processos mentais.
[10] Diz-se de ou indivíduo cujas condições mentais ou emocionais estão próximas da linha divisória entre o que se considera normal e anormal.
[11] A Pena é a sanção aflitiva imposta pelo Estado, mediante ação penal, ao autor de uma infração (penal), conforme dispõe o artigo 59, Caput, do Código Penal, possui natureza mista, uma a de retribuição, de ameaça de uma mal contra o autor de uma infração penal, outra, a  preventiva, no sentido de evitar a prática de novas infrações.
[12] Nesse sentido, temos as palavras de Hans-Heinrick Jescheck, para quem "culpabilidade é reprovabilidade da formação de vontade”.
 
[13] "...a causa dos males, cuja origem se pretende imputar à intempestividade das reformas" (Rui Barbosa). "Senhor, não lhes imputes este pecado" (Palavras de Estevão, protomártir do cristianismo; Atos dos Apóstolos, 7, 60 , trad. de João Ferreira de Almeida).
[14] Aspecto normativo.
[15] Vide BETTIOL, Giuseppe. Direito Penal. Tradução brasileira Paulo José da Costa 
Júnior e Alberto Silva Franco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1976. Cf. Direito Penal, vol.II, p.11.
[16] In BUSTOS RAMÍREZ, Juan. Manual de Derecho Penal Español – Parte general. 
Barcelona: Ariel Editorial, 1984, p.360.
[17] Psicólogo clínico, supervisor, consultor sobre pacientes borderlines. Presidente da Associação Wilhelm Reich do Brasil
[18] Médico, pioneiro no tratamento dos doentes mentais, nasceu a 20 de abril de 1745, em Saint André, Sul da França, e faleceu a 25 de outubro de 1826, em Paris. 
[19] Especialista em psiquiatria forense. Autor do livro Loucura e Crime
[20] Professor de Medicina Legal na Universidade de São Paulo e Autor de vários livros de ética médica.
 
[21] CPP. Art. 157 -