Inconstitucionalidade da criminalização do aborto


PorJeison- Postado em 25 março 2013

Autores: 
CARVALHO, Gustavo Dantas.

 

1 – Introdução

 

A questão da criminalização do aborto (na realidade, abortamento, que é a conduta, enquanto que o aborto é o resultado) tem especial importância para a sociedade atual, eis que os motivos desta conduta ser considerada típica devem ser estudados a fundo. Afinal, ao criminalizar tal conduta, uma pergunta faz-se necessária: é justo tratar como criminosa e levar a julgamento perante um tribunal do júri uma mulher que pratica o aborto?

 

O presente estudo parte do princípio da intervenção mínima para demonstrar que a criminalização da conduta de abortamento é meramente simbólica, motivada por ideias irracionais e sem apoio científico ou constitucional, uma vez que a matéria é de saúde pública, e não de política criminal.

 

2 – Intervenção mínima do direito penal e criminalização simbólica.

 

Sabe-se que o direito penal é a ultima ratio, somente sendo legítima a utilização do sistema punitivo penal quando respeitado o princípio da intervenção mínima, pelo qual o direito penal deve se manter subsidiário e fragmentário.

 

É subsidiário pois, em abstrato, só é legítima a criminalização da conduta quando ineficazes os demais ramos do direito para a regulamentação da situação. Ademais, é fragmentário pois, diante do caso concreto, deve haver uma lesão significante ao bem jurídico tutelado.

 

Neste sentido, esclarecedoras as palavras da Ministra Rosa Weber quando do julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF – 45:

 

“O direito penal moderno apresentar-se-ia como ultima ratio, de forma que deveria ser mínima a sua intervenção nas relações sociais, consoante seus preceitos de: a) idoneidade, a criminalização como meio útil para resolver o problema social; b) subsidiariedade, demonstração de inexistência de alternativas para a regulação da conduta indesejada; e c) racionalidade, comparação dos benefícios e dos custos sociais decorrentes da criminalização.”

 

Desrespeitados estes requisitos para que a conduta seja etiquetada como criminosa, haverá inevitável violação ao princípio da lesividade, caindo-se, assim, no indesejável “direito penal simbólico”.

 

Cancio Meliá ensina que o direito penal simbólico persegue a construção de uma identidade social mediante o punitivismo exacerbado de certas condutas, ou seja, o fato é criminalizado como forma de demonstrar que a sociedade não o aceita, ainda que a lei seja de difícil aplicação, in verbis:

 

O Direito Penal simbólico não só identifica um determinado “fato”, mas também (ou: sobretudo) um específico tipo de autor, que é definido não como igual, mas como outro. Isto é, a exigência da norma penal – deixando de lado as estratégias técnico-mercantilistas, a curto prazo, dos agentes políticos – persegue a construção de uma determinada imagem da identidade social, mediante a definição dos autores como “outros”, não integrados nessa identidade, mediante a exclusão do “outro”. E parece claro, por outro lado, que para isso também são necessários os traços vigorosos de um punitivismo exacerbado, em escala, especialmente, quando a conduta em questão já está apenada. Portanto, o Direito Penal simbólico e o punitivismo mantêm uma relação fraternal. A seguir, pode ser examinado o que surge de sua união: o Direito Penal do Inimigo[1].

 

3 – Motivos da criminalização.

 

O Labeling Approach ensina que o crime não é uma qualidade intrínseca da conduta, mas sim uma conduta qualificada como criminosa pelo controle social.

 

Assim, faz-se necessário estudar as razões da criminalização da conduta. Inicialmente, nota-se que o etiquetamento da conduta de abortamento como criminosa tem como fundamento a proteção à vida.

 

Obviamente, a vida, como bem fundamental à sociedade, merece proteção estatal, mas a questão que se coloca é: quando que o feto passa a ser efetivamente vida?

 

Buscando uma resposta no ordenamento jurídico pátrio, nota-se que o critério utilizado pelo legislador para se definir o momento da morte na Lei de Transplante de Órgãos (Art. 3° da Lei 9.434 de 1997) é a morte encefálica, que é a “completa e irreversível parada das funções do cérebro”[2].

 

Art. 3º A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina.

 

A contrario sensu, haverá vida quando o feto houver desenvolvido atividade cerebral equivalente à pessoa humana. Faz-se necessário, então, destacar o que diz a literatura médica.

 

Conforme leciona Keith L. Moore e T. V. N. Persuad, no livro Embriologia Clínica, somente durante a quarta semana se inicia a formação do tubo neural[3], que é a estrutura aonde, posteriormente, serão desenvolvidos o cérebro e a medula espinhal.

 

Somente ao fim da oitava semana é que ocorrem os primeiros movimentos voluntários dos membros, momento pelo qual pode-se dizer que há alguma, ainda que mínima, atividade encefálica.

 

Moore e Persuad ensinam que “o aspecto externo do embrião é muito influenciado pela formação do encéfalo, coração, fígado, somitos, membros, orelhas, nariz e olhos. Com o desenvolvimento destas estruturas, o aspecto do embrião muda de tal modo que, ao final da oitava semana, ele tem características indubitavelmente humanas”.

 

É inegável, no entanto, que, para efeitos da criminalização do abortamento, a influência da religião, particularmente a cristã, tem especial importância para que o legislador tenha considerado o momento da concepção como o início da vida.

 

Interessante notar que o conceito religioso de início da vida varia conforme a religião adotada. Por exemplo, para o Islamismo, o início da vida somente ocorre em torno de 120 dias após a concepção, momento em que o feto tem os “ossos revestidos de carne”[4]. Assim, doutrinadores islâmicos entendem que é possível a utilização de métodos contraceptivos até este momento de formação do feto.

 

Neste ponto, deve-se atentar para o fato de que o Brasil é um estado laico, o que significa que nenhum argumento religioso pode ser utilizado na esfera pública sem tradução racional. Ou seja, para que a ideia seguida pela religião católica de que a vida começa com a concepção seja considerada válida na esfera pública, deve haver uma explicação científica que a fundamente, não sendo suficiente a palavra de Deus.

 

Portanto, revela-se totalmente inapropriada a utilização de argumentos religiosos, tal qual o início da vida ocorrer com a concepção, para justificar a criminalização do aborto, pois tal argumento não possui qualquer tradução científica, sendo inviável a sua utilização na esfera pública.

 

4 – Criminalização necessária?

 

Não se defende aqui que não deve haver a criminalização da conduta de abortamento, apenas que não pode haver criminalização irracional e injustificada de tal fato.

 

Deve-se partir do pressuposto de que a Constituição de 1988 garante o direito à intimidade de todos os cidadãos.

 

Nesta esteira, a doutrina constitucionalista defende o princípio da máxima efetividade, pelo qual à norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe conceda.

 

Assim, quando a Carta Política dispõe que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas”[5], deve-se interpretar tal preceito da forma mais ampla possível.

 

Portanto, pode-se afirmar que a proteção à intimidade, particularmente da mulher, é ampla o suficiente para que seja dela a livre decisão acerca do seu planejamento familiar e opção de ter ou não um filho.

 

Neste sentido, a Suprema Corte Norte Americana, no célebre caso Roe v. Wade, decidiu que o aborto é um direito fundamental garantido pela Constituição dos Estados Unidos, como decorrência do direito à privacidade.

 

Interessante notar a diferença metodológica de interpretação constitucional entre o Brasil e os Estados Unidos. O caso acima citado foi fundamentado no direito ao devido processo legal (em sua acepção substantiva) previsto na Ammendment XIV[6], bem como na Ammendment IX[7], que no Brasil é equivalente à norma do art. 5°, §2° da Constituição de 1988[8]. Em nosso ordenamento jurídico, há resistência em interpretar o direito ao planejamento familiar como decorrência do direito à intimidade, expressamente previsto no art. 5°, X, que possui sensível carga de especificidade quando comparada com a cláusula do devido processo legal, que fundamenta a inconstitucionalidade da criminalização irrestrita do aborto no ordenamento jurídico norte-americano.

 

Atenta à esta possível dificuldade, a Carta Cidadã garante que o planejamento familiar é livre decisão do casal, cabendo ao Estado propiciar os recursos para o exercício de tal direito:

 

Art. 226, § 7º - Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.

 

Ora, a Constituição Brasileira não só garante o direito à intimidade, como também o direito ao livre planejamento familiar, sem que o Estado possa intervir arbitrariamente neste direito. Resta evidente, portanto, que a criminalização absoluta do abortamento viola tais preceitos constitucionais, sendo incompatível, portanto, com a norma hierarquicamente superior.

 

Por óbvio que deve haver a proteção à vida e à própria gestação da mulher, o que de fato ocorre no Código Penal Brasileiro nos seguintes dispositivos:

 

Aborto provocado pela gestante ou com seu consentimento

 

Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque:

 

Pena - detenção, de um a três anos.

 

Aborto provocado por terceiro

 

Art. 125 - Provocar aborto, sem o consentimento da gestante:

 

Pena - reclusão, de três a dez anos.

 

Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da gestante:

 

Pena - reclusão, de um a quatro anos.

 

Parágrafo único. Aplica-se a pena do artigo anterior, se a gestante não é maior de quatorze anos, ou é alienada ou debil mental, ou se o consentimento é obtido mediante fraude, grave ameaça ou violência.

 

É indubitável a necessidade do disposto no art. 125, eis que privar da mulher o seu direito de ter filho é um dos crimes mais bárbaros que podem existir em uma sociedade.

 

No entanto, a provocação do aborto em si mesma (art. 124) ou a provocação do aborto, mediante técnica apropriada, com o consentimento da gestante, em ambos os casos dentro de um prazo razoável, não configura fato verdadeiramente criminoso, o que há é o punitivismo simbólico.

 

Mas então, qual seria este prazo razoável em que a conduta do abortamento não configura o crime?

 

A resposta a esta pergunta já foi aqui exposta. Se somente a partir da oitava semana há alguma atividade encefálica, antes disso não há vida, seguindo o critério legal previsto na Lei de Transplante de Órgãos e Tecidos, logo, não há necessidade de proteção à gravidez, eis que não há, ainda, bem jurídico a ser tutelado.

 

Nota-se que a justificativa para criminalização desta conduta ocorre por simples punitivismo, pois o legislador apenas quer demonstrar que não aprova tais fatos, ainda que não haja justificativa (ou constitucionalidade) na qualificação da conduta como criminosa.

 

5 – Questão de Saúde pública ou de Justiça pública?

 

É indubitável que há, em grande número, a prática de abortamentos no Brasil. Trata-se de uma realidade da vida de nossa sociedade.

 

Ocorre que, em razão da criminalização da conduta, a sua prática ocorre de forma desregulamentada e perigosa, em clínicas ilegais que não atingem um mínimo de salubridade e segurança, eis que não há fiscalização sobre ela, o que é de extrema necessidade para o procedimento em questão.

 

Segundo a Organização Mundial de Saúde, o número de abortos inseguros realizados na América Latina e Caribe subiu de 3.9 milhões de 2003 para 4.2 milhões em 2008[9].

 

Este é um alarmante dado que revela que a proibição da prática do abortamento não possui qualquer eficácia social, o que confirma a tese de que a criminalização é simbólica e busca apenas demonstrar uma suposta identidade social de um povo.

 

Assim, especialmente levando-se em conta que o Estado – no Brasil, o SUS – acaba sendo responsável por cuidar da saúde de mulheres com complicações decorrentes de abortamentos realizados em condições precárias, a criminalização da conduta acaba por se revelar extremamente custosa à população, que sustenta o sistema público através do pagamento de impostos.

 

O abortamento não deve ser tratado como problema criminal, mas sim uma verdadeira questão de saúde pública.

 

Outro ponto que se mostra relevante é o fato de que os crimes dolosos contra a vida são julgados pelo Tribunal do Júri, cuja competência originária é fixada pelo art. 5°, inciso XXXVIII, “d”.

 

Portanto, a mulher que praticou o abortamento, no sistema legal atual, será levada a julgamento, de forma extremamente constrangedora e com uma imensa exposição pública da sua intimidade, perante um Conselho de Sentença que sequer necessita fundamentar a sua decisão para levar esta mulher a uma condenação penal.

 

6 – Conclusão

 

Conclui-se que é inconstitucional a criminalização genérica do crime de aborto, eis que viola a intimidade da mulher e o livre planejamento familiar.

 

A justificativa para que seja considerada criminosa tal conduta deve ser racional e científica, o que não ocorre na realidade brasileira.

 

Pode-se resumir toda a tese aqui exposta com uma pergunta:

 

É justo levar uma mulher que chegou à condição extrema de ter que optar por realizar um aborto ao banco dos réus de um tribunal do júri?

 

Não, não é justo.

 

7 – Referências

 

World Health Organization. Unsafe abortion: global and regional estimated of incidence of mortality due to unsafe abortion and associeated mortality in 2008 - 6th ed.

 

MOORE, Keith L. e PERSUAD, T. V. N. Embriologia Clínica. 6ª Edição. Rio de Janeiro: Guanabara, 2000.

 

JAKOBS, Gunther e MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo. 4ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010

 


[1] JAKOBS, Gunther e MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo. 4ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, pag. 88.

[3] MOORE, Keith L. e PERSUAD, T. V. N. Embriologia Clínica. 6ª Edição. Rio de Janeiro: Guanabara, 2000, pag 85.

[4]"AL MUMINUN"

(OS FIÉIS)

Revelada em Makka; 118 versículos.

23ª SURATA

12 Criamos o homem de essência de barro(988).

13 Em seguida, fizemo-lo uma gota de esperma, que

inserimos em um lugar seguro.(989)

14 Então, convertemos a gota de esperma em algo que se

agarra, transformamos o coágulo em feto e convertemos o

feto em ossos; depois, revestimos os ossos de carne;

então, o desenvolvemos em outra criatura.(990)

 Bendito seja

Deus, Criador por excelência.

15 Então morrereis, indubitavelmente.(991)

16 Depois sereis ressuscitados, no Dia da Ressurreição.

[5] Art, 5°, inciso X

[6] All persons born or naturalized in the United States, and subject to the jurisdiction thereof, are citizens of the United States and of the state wherein they reside. No state shall make or enforce any law which shall abridge the privileges or immunities of citizens of the United States; nor shall any state deprive any person of life, liberty, or property, without due process of law; nor deny to any person within its jurisdiction the equal protection of the laws. 

[7] The enumeration in the Constitution, of certain rights, shall not be construed to deny or disparage others retained by the people.

[8]Art. 5°, §2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

[9] World Health Organization. Unsafe abortion: global and regional estimated of incidence of mortality due to unsafe abortion and associeated mortality in 2008 - 6th ed.

 

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