A INCONSTITUCIONALIDADE DA SÚMULA VINCULANTE


PorMiriam Aidar Ribeiro- Postado em 04 agosto 2012

Autores: 
GUTIERREZ SOBRINHO, Emílio
CASSEB, Henrique Morgado

A INCONSTITUCIONALIDADE DA SÚMULA VINCULANTE

RESUMO

O presente artigo analisa a súmula vinculante frente à Constituição Federal do Brasil, buscando formar a convicção de que referido instituto jurídico não é compatível com ela. Tal incompatibilidade advém do fato de que a vinculação de provimentos judiciais nunca foi da tradição do direito brasileiro, cujas raízes estão fincadas no sistema jurídico de tradição romana, que tem a lei como sua força vinculativa. Portanto, da análise que este arrazoado fez, verificou-se que a súmula vinculante viola os princípios da legalidade, separação de poderes, acesso ao Poder Judiciário, devido processo legal, coisa julgada e independência do juiz. Objetiva este trabalho revelar os motivos da inconstitucionalidade da súmula vinculante, buscando assim, defender a ordem constitucional. Para bem cumprir o intento, escolheu-se como método de pesquisa o fenomenológico, já que foi realizada uma extensa análise de doutrinas, e o dedutivo, pois foram apresentados valores constitucionais que farão um leigo se convencer da inconstitucionalidade do instituto jurídico em análise. Bem se sabe que o conhecimento é ilimitado, mas também é sabido que para alcançar determinado propósito é preciso delimitá-lo, razão pela qual se promove um corte metodológico, evitando discutir os aspectos legislativos da súmula vinculante.

Palavras-chave: Súmula vinculante. Inconstitucionalidade.

THE UNCONSTITUTIONALITY OF THE BINDING PRECEDENT

ABSTRACT

This paper analyzes the binding precedent to show that it is not compatible with the Brazilian Federal Constitution. The conflict exists because the incidence of binding court order is not natural in the Brazilian legal system, which is affiliated with the legal system of the Roman tradition, which has the law as binding force. Therefore, analyzing the issue, it is understood that the binding precedent violates the principles of legality, separation of powers, access to the courts, due process of law, res judicata and the judge’s independence. The purpose of this paper is to tell the reasons of unconstitutionality of the binding precedent, defending the constitutional order. To achieve this purpose, the phenomenological method guided the research on the analysis of various doctrines, and also the deductive method was applied because some constitutional values were presented in order to convince a layman about the unconstitutionality of the institute. The knowledge is unlimited but in order to reach such purpose it is necessary to delimit it, therefore it is useful a methodological approach to avoid analyzing the legal aspects of the binding precedent.

Keywords: Binding precedent. Unconstitutionality.

INTRODUÇÃO

O presente artigo objetiva demonstrar a inconstitucionalidade da súmula vinculante, instituto jurídico introduzido no ordenamento brasileiro pela Emenda Constitucional n. 45 de 2004 e, ao depois, regulamentado pela Lei 11.417 de 2006. Ao longo das páginas a seguir arroladas, serão constatados diversos motivos que levam a defender a proposta apresentada.

Tais motivos, seguramente, indignarão aqueles que veem na Constituição da República Federativa do Brasil o recipiente que acondiciona os direitos e garantias individuais, que se constituem no elemento central de cultura jurídica. Essa indignação decorre de um fato bastante simples: o uso da súmula vinculante implica em atentado a esses direitos, constituindo-se, numa análise ampla, em violação ao Estado de Direito. Eis aqui uma razão para se entender o Brasil como sendo um lugar extremamente paradoxal, já que de um lado há uma carta política que garante amplos direitos, mas em seguida há que se conviver com um mecanismo jurídico que os mitigam e, a depender do caso, aniquila-os.

Com essa situação, tem-se o que a doutrina chama de antinomia jurídica. E como se pode resolver? De forma bastante fácil, pois não há dúvida de que devem prevalecer as disposições do texto constitucional, pois as violações ocorridas atentam contra cláusulas pétreas, que não podem ser abolidas, modificadas ou restringidas.

Portanto, entende-se que a Emenda Constitucional 45, ao criar a súmula de efeito vinculante, violou a regra constante no artigo 60, § 4°, IV da Constituição Federal, isto porque o novel instituto, no caso concreto, pode suprimir diversos direitos constantes no rol do artigo 5° da Lei Maior.

Por essa razão, a proposta que originou a emenda sequer poderia ter sido discutida, votada, aprovada e nem promulgada. Essa proposta, sob o rigor de nossa Lei Fundamental, deveria ter sido barrada pelo controle preventivo de constitucionalidade. Como não o foi, resta divulgar essas violações para formar a convicção geral de que a súmula vinculante não é o melhor caminho para resolver os problemas do sistemajudiciário brasileiro, pois é nessa direção que seguem os defensores da medida. Eles alegam que a súmula vinculante é o instrumento correto para acabar com a morosidade do sistema.

Ver-se-á nas conclusões que isso não é verdadeiro. Mesmo que fosse, não se justifica, por nada, a violação do Magno Texto, principalmente no que se refere aosdireitos e garantias fundamentais. Para o bem do princípio da supremacia da constituição, nada pode violar o texto.

CONCEITO, NATUREZA JURÍDICA E FINALIDADE

A súmula vinculante é um enunciado emitido pelo Supremo Tribunal Federal, que, além de demonstrar a interpretação pacificada acerca de determinada matéria jurídica de cunho constitucional, é de observância obrigatória para todos os demais órgãos do Poder Judiciário e para a Administração Pública de todas as esferas.

Desse conceito pode-se dizer que a súmula vinculante tem natureza jurídica de ato normativo, dotado de generalidade e abstração. A natureza normativa é explicada pela gênese da súmula vinculante, cuja origem está na jurisprudência, que no dizer de Miguel Reale (1995, p. 168) é norma aplicada ao caso concreto. Ora, se a súmula decorre da jurisprudência e se ela é norma, também o será a súmula. A generalidade ea abstração se dão porque a súmula é aplicável contra todos, indistintamente, tal qual a lei.

Sabe-se que o Poder Judiciário do Brasil, devido à sua morosidade, é ineficiente. Aqui, demora-se muito para que uma determinada demanda seja sentenciada em definitivo. Essa situação advém de diversos fatores, dentre os quais excessos de recursos e problemas estruturais, tais como falta de juízes e servidores aptos.

Nessas circunstâncias, a maneira encontrada para amenizar essa situação foi a criação da súmula de efeito vinculante. A rapidez na entrega da prestação jurisdicional ocorrerá porque um juiz ao se deparar com uma causa, cujo conteúdo esteja sumulado, não poderá fazer mais nada, senão aplicar o enunciado vinculante.

Nessa linha de pensamento, encontra-se Marcelo Vicente de Alkmin Pimenta (2007, p. 349): A súmula vinculante, inserida no Texto Constitucional pela Emenda n. 45/2004, apresenta-se como um instrumento que busca dar maior eficiência ao Judiciário, uma vez que o Supremo Tribunal Federal poderá criar regras aplicáveis a todos os juízes sobre como atuar em casos recorrentes na justiça brasileira. A medida objetiva fazer com que os processos julgados obedeçam a um padrão de decisão definidos pela instância superior, o que funcionará, em tese, para diminuir a morosidade de Justiça.

Portanto a súmula vinculante serve, no cenário apresentado, como “filtro” capazde eliminar a morosidade, e concorrer para um decréscimo significativo no volume de processos (CARVALHO, 2008, p. 526). Isso tudo seria muito bom se não houvesse violações à nossa Constituição Federal, que instituiu um modelo jurídico que não comporta a existência da súmula vinculante.

Disso, é possível dizer que sua criação não tem viés jurídico, mas puramentepolítico, ou seja, foi uma opção no intuito de se resolver os problemas estruturais do Poder Judiciário, no qual existem cerca de 86,6 milhões de processos judiciais emtramitação, os quais serão analisados por um número, proporcionalmente, pequeno de juízes - cerca de 16.500 magistrados, conforme ficou demonstrado no relatório Justiçaem números de 2010 do CNJ (Conselho Nacional de Justiça). Sai mais barato bloquear ações judiciais do que investir no aperfeiçoamento da estrutura judiciária.

DA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

É de conhecimento geral que, fundamentalmente, existem duas famílias do Direito, a romana e a anglicana. O direito de tradição romana (jus civile) se vincula aoprimado da lei, enquanto o direito de tradição anglicana (common law) se vincula aos costumes, porque nessa família o direito legislado não é essencial e, por vezes, quase inexistente, razão pela qual se verificou a necessidade de as decisões judiciais das cortes superiores terem, em relação às cortes inferiores, efeito vinculante, como forma de garantir a estabilidade do Direito e, por consequência, segurança jurídica.

Conclui-se, portanto, que o efeito vinculante é necessidade do sistema da common law, porque lá não há direito legislado, sendo certo que os precedentes têm natureza de fonte direta do direito. Pelo inverso, tal efeito não é necessidade dos sistemas de natureza romana, porque nesses somente a lei, em sentido formal, tem o atributo da obrigatoriedade ampla.

O constituinte reformador, então, “misturou as estações” ao enxertar no sistema brasileiro um elemento específico de outro, o que provocou a violação ao princípio da legalidade. É o que se infere do entendimento de Kildare Gonçalves Carvalho, (2008, p. 525): O questionamento inicial da adoção da súmula vinculante no modelo de direito codificado, como o do Brasil, ao contrário do modelo do precedente judicial anglo-saxão (common law), está em que o nosso sistema se baseia essencialmente na primazia da lei, e não da decisão judicial.

No sistema jurídico de natureza romana, como o brasileiro, o que vale abstrata e genericamente é a lei, tanto que a Constituição do Brasil no inciso II do artigo 5°preconiza que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, consagrando, dessa maneira, o princípio da legalidade, que traz mensagem constitucional clara: os comandos de proibição (deixar de fazer) e de obrigação (fazer) só podem ser veiculados por meio de uma lei (ARAUJO; NUNES JÚNIOR, 2007, p. 134-135).

Ora, nesse passo, a simples existência da súmula vinculante contraria o texto constitucional, que garante aos indivíduos submissão apenas em relação à lei, em seu sentido formal. Somente a lei pode criar, modificar ou restringir direitos, e isso é da essência de nosso modelo democrático de Estado. Lei em sentido formal é aquela que é aprovada pelo Poder Legislativo, após o devido processo que compreende as fases de iniciativa, deliberação, aprovação nas casas legislativas, promulgação, sanção e publicação.

Considerar a constitucionalidade da súmula é transformá-la em lei – porque produz os mesmos efeitos – mas ignorando o processo legislativo exigido pela Constituição Federal no artigo 61. Além disso, considerá-la constitucional importa em jogar ao léu o entendimento sobre o fim a que se destina o princípio da legalidade, tão bem descrito por Celso Ribeiro Bastos (ARAUJO; NUNES JÚNIOR, 2007, p. 393): [...] o princípio da legalidade mais se aproxima de uma garantia constitucional do que de um direito individual, já que ela não tutela, especificamente, um bem da vida, mas assegura, ao particular, a prerrogativa de repelir as injunções que lhe sejam impostas por uma outra via que não seja a lei.

Desse modo, o instituto se torna uma contradição, pois a o texto da Constituição afirma que os indivíduos só se obrigam à lei como forma de conter abusos de um grupo sobre outro, mas depois tenta subjugá-los pela súmula vinculante, que tem os mesmos efeitos daquela, mas não a mesma facção, sendo uma emanação de uma corte jurisdicional e não dos legítimos representantes do povo ou dos Estados, deputados federais e senadores. Há, portanto, patente violação ao princípio da legalidade.

DA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES

Como decorrência lógica da violação ao preceito da legalidade, a súmula vinculante provoca, também, agressão ao basilar princípio de um Estado Democrático de Direito: o princípio da separação de poderes, que institui um sistema que distribui, por meio de competências, os afazeres do estado, visando descentralizar o poder, para que ele não ficasse restrito a este ou a aquele órgão, para assim evitar uma ditadura.

Considerando que a súmula vinculante, tal qual a lei, é dotada do atributo da observância obrigatória nos graus da generalidade e da abstração, só se pode considerar que o Supremo Tribunal Federal está legislando. Logo, a autorização para editar a súmula vinculante, que lhe foi dada pelo legislador reformador ao implantar, no texto constitucional, o desditoso artigo 103-A esbarra na regra do artigo 60, § 4°, III do mesmo diploma, que em sendo cláusula pétrea não poderia, jamais, sofrer modificação alguma, por menor que fosse.

Nesse ponto é bastante lúcida a lição de Lênio Luiz Streck (1998, p. 51) que entende que ao editar uma súmula vinculante, oponível  erga omnes, o Supremo Tribunal Federal assume funções legiferantes, agregando o produto legislativo à prévia interpretação.

No mesmo sentido, Carvalho (2008, p. 526) afirma: [...] a súmula vinculante possibilita que o Supremo Tribunal Federal defina o alcance, em abstrato, das normas editadas pelo Congresso Nacional, cujos efeitos irão atingir não só os litigantes, mas a sociedade em geral, comprometendo o próprio objeto do ato legislativo, a lei, esta sim, de caráter geral, abstrato e obrigatório. Por isso é que a súmula vinculante contraria o princípio da separação de poderes, já que é da competência do Poder Legislativo a função de legislar.

O jusfilósofo português Antônio Castanheira Neves (1983, p. 315) também entende haver infração ao princípio da separação de poderes, dizendo que “[...] ao ser atribuída aos supremos tribunais, através dos assentos, a função legislativa, o sentido com que a lei deve ser entendida e aplicada veio estabelecer-se não só uma mediação, como até uma interposição.”

Com a súmula vinculante depara-se com uma grande incongruência, definida muito bem nas palavras de Evandro Lins e Silva, que diz que os juízes não têm legitimidade democrática para criar o Direito, porque o povo não lhes delegou esse poder, concluindo que: “editar leis ou súmulas com força impositiva, obrigatória, com força de lei parece contrariar disposições transparentes da constituição (SILVA, 1998, p. 77)”.

A teoria da separação dos poderes foi desenvolvida para coibir o abuso de direito; evitar que o controle do Estado ficasse preso a uma única pessoa ou únicogrupo. É que se denota do entendimento de Chaïm Perelman (1998, p. 21): É para evitar tais abusos que Montesquieu preconiza, como ideal político, a doutrina da separação dos poderes, não devendo ao poder legislativo ser concedido nem ao poder executivo, que dele poderia aproveitar-se para contrariar seus adversários, nem aos juízes, que, por ocasião dos litígios, poderiam formular regulamentos que favorecessem, por razões muitas vezes inconfessáveis, algumas das partes.

Entende-se que a violação ao princípio da separação de poderes provoca a ruptura do Estado Democrático de Direito, porquanto, no caso em análise, confere-se ao Supremo Tribunal Federal grande concentração de poder, o que vem de encontro ao sentido que referido princípio expressa.

DA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DO ACESSO AO PODER JUDICIÁRIO

Uma das maiores conquistas do homem que vive em sociedade organizada é o direito de bater às partes do Poder Judiciário para deduzir suas pretensões à base de alegações e formulação de conjunto probatório, esperando do Estado, personificado na pessoa do juiz, uma resposta, uma conclusão acerca daquela lide da qual faz parte.

O direito de acessar o Poder Judiciário, em sua evolução histórica, constitui-se em um mecanismo civilizatório, voltado a evitar que o indivíduo que tivesse uma pretensão resistida fizesse justiça com as próprias mãos, como ocorria nos tempos mais remotos. Portanto, podemos verificar que o acesso ao Poder Judiciário tem extrema utilidade pública, razão pela qual as sociedades, com exceção daquelas que se pautam por arbitrariedade, tendem a consagrá-lo como um direito fundamental.

Entretanto, este direito pode sofrer restrições, na medida em que a súmula vinculante tem potencial para impedir a instauração de processo judicial ou impedir o seu regular trâmite, já que se o STF editar uma súmula sobre determinada matéria a que algum litigante proponha ação em sentido contrário, o juiz deverá indeferir sua petição inicial sob a alegação de falta de condição de ação, precisamente, falta de possibilidade jurídica do pedido.

Essa situação, seguramente, é incompatível com o artigo 5º, XXXV, da Constituição Federal, que consagra o princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário. Na dicção constitucional, esse princípio vem nos seguintes termos: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Logo, respeitando-se o rigor da Constituição da República, ninguém pode condicionar o uso desse direito, por qualquer que seja o motivo, sendo certo que nem mesmo a lei pode fazê-lo. Se a lei não pode restringir, a súmula também não.

Ocorre que a súmula vinculante vai de encontro a esse entendimento, visto que tem potencial para restringir a incidência do princípio em questão. Isso se caracteriza em um tremendo absurdo, porquanto o princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário é uma garantia individual, que, como tal, jamais deveria sofrer restrições, posto que garantias individuais têm de ser interpretadas da forma mais ampla possível, conforme ditam as basilares regras de hermenêutica jurídica.

Até o aparecimento da dita súmula, qualquer que fosse a pretensão, o indivíduo teria o amplo direito de jurisdicioná-la, sendo-lhe garantido um processo escorreito. Agora, o direito de acessar o judiciário existe, desde que não vá de encontro com a súmula vinculante. Dessa forma, abriu-se uma grave exceção para o exercício desse sagrado direito. Claríssima, para nós, a violação, ainda que em tese, aos ditames do artigo 5°, XXXV da Constituição Federal.

Não existe direito se o cidadão não puder deduzir sua pretensão em juízo. O direito morre quando as portas da justiça não se abrem ao indivíduo. Dessa maneira, portanto, cria-se um estado de insegurança jurídica, pois pode ocorrer a criação de súmula vinculante casuística, prejudicial a determinado grupo, retirando-lhe inclusive o direito de ir reclamar na justiça, já que os juízes e órgãos jurisdicionais abaixo do Supremo Tribunal Federal não poderão sentenciar de forma contrária à súmula, ainda que discordem dela.

Os defensores do instituto aqui atacado poderão argumentar que tais conjecturas se fazem por demais pesadas, ao que se responde: em matéria de direito individual, deve-se considerar todas as hipóteses para se evitar lesões.

DA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DO DEVIDO PROCESSO LEGAL

É preciso considerar, ainda, que violando a regra do livre acesso ao Poder Judiciário, viola-se o princípio do devido processo legal, que compreende outros princípios importantíssimos ao sistema jurídico brasileiro, conforme entendimento de Luiz Guilherme da Costa Wagner Júnior (2008, p. 41): “esse princípio, então, se materializa em vários outros princípios, como o do contraditório e o da ampla defesa, da isonomia, da publicidade”.

A doutrina majoritária entende que o devido processo legal é importantíssimo, pois assegura às partes litigantes o direito ao processo justo, assegurando-lhes os meios jurídicos para a consecução desse fim.

Ora, com a súmula vinculante, tal princípio não tem utilidade, porque o juiz, ao receber demanda sumulada, não poderá fazer mais nada, senão aplicar, de imediato, a súmula vinculante. Não há, portanto, processo algum. Não há, portanto, possibilidade de o litigante formular provas ou mesmo contestar o teor da súmula.

Não haverá processo. Haverá apenas uma decisão já estabelecida. É nesse sentido o entendimento de José Anchieta da Silva (1998, p. 76), para quem adota a súmula, não haverá qualquer processo. Haverá apenas uma decisão. Os cidadãos sobre cujas cabeças recairá o tal efeito vinculante, estarão reduzidos à figura do personagem de Kafka, no seu clássico “O Processo”.

Aqui vale uma despretensiosa reflexão: com a Constituição Federal de 1988, o Brasil se tornou, após o violento período da Ditadura Militar (1964-1985), um Estado libertário, focado nas questões sociais e, acima de tudo, na prevalência dos direitos e garantias individuais, que se revelam cláusulas pétreas, impossíveis de serem modificadas ou restringidas.

Onde estão os entendimentos sobre cláusula pétrea? Nesse passo, como pode existir um mecanismo jurídico que contraria tudo isso? Certamente à base de coerção, que avilta a cultura jurídica insculpida no Texto Magno. Deve-se entender, pelas razões aduzidas e de uma vez por todas, que a súmula vinculante contraria os legisladores originários, que queriam dar ampla proteção aos indivíduos, por meio do Poder Judiciário, seja não restringindo o acesso a ele, seja garantindo ao litigante o devido processo, nos termos aqui abordados.

Os constituintes do Brasil, em 1988, quiseram evitar o que se repetiu na Ditadura Militar, isto é, amplo cerceamento de defesa e o afastamento do Poder Judiciário para aqueles que se encontravam nos porões da polícia política, sendo alvo de terríveis torturas. Tais pessoas não tinham a quem se socorrer.

DA VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA INDEPENDÊNCIA DO JUIZ

Dois elementos essenciais constituem o ponto central da liberdade de um país: o júri e a autonomia e independência dos juízes. Tais palavras não são do autor deste presente texto, mas sim de Rui Barbosa. Esse entendimento sempre foi usual e corrente no meio jurídico pátrio. Sempre se defendeu essa tese. Tanto que o sistema jurídico brasileiro sempre consagrou o princípio da liberdade ampla dos juízes para proferir julgamentos. Liberdade consubstanciada na independência para proferir sentença, de acordo com a convicção que formou no curso do processo.

A doutrina, majoritariamente, entendeu que a liberdade dos juízes se traduzia em garantias à sociedade e ao Estado livre, pois dificilmente se impõe ao magistrado, quando do julgamento, razões das quais discorda. Ao juiz sempre foi deferido o direito de adotar a razão jurídica que entendesse mais adequada ao caso concreto, privilegiando o sentido de justiça, inerente à sua função. Por essa razão, sempre se disse que o juiz está (ou estava), vinculado, única e exclusivamente à lei e à sua consciência.

Todavia, com a instituição da súmula de efeito vinculante, essa idéia passou a sofrer gravíssima restrição, pois com ela, juízes, desembargadores e até mesmo os ministros dos tribunais superiores ao proferirem seus julgamentos, estarão, em muitos casos, vinculados não mais à sua consciência, mas sim à súmula vinculante, que pode trazer a razão para o julgamento de determinada lide, bem como dizer ao magistrado qual prova deve prevalecer em determinado processo.

Percebe-se que a súmula de efeito vinculante, por esse prisma, ataca de forma aguda o sistema jurídico, o que compromete o ideal que existe sobre o Estado Democrático de Direito, que, em humilde opinião, deve zelar pelos direitos constantes na Lei Fundamental.

Por essa razão, Sílvio Nazareno Costa (2002, p. 196), quando da discussão da emenda constitucional que incluiu o nefasto artigo 103-A da Constituição Federal, afirmou: “[...] por restringir, ainda que apenas em determinados casos, a independência que se deve desfrutar o juiz para o exercício da atividade jurisdicional, é materialmente inconstitucional”.

A súmula vinculante ofende a independência pessoal, interna e funcional do juiz. Essa independência é o instrumento do Estado Democrático de Direito, que visa preservá-lo de ingerências que possam ocorrer dentro da magistratura (GOMES, 1997).

Com a súmula de efeito vinculante, o juiz se torna mero burocrata. Mero cumpridor de ordens superiores. Portanto, a magistratura, com exceção do Supremo Tribunal Federal, perde a qualidade de ente jurisdicional, passando a ter um viés administrativo, deixando de dizer o direito no caso concreto para inscrever no “processo” uma decisão pronta e acabada, pouco importando as alegações das partes. Não foi para esse fim que a Constituição Federal organizou a magistratura. E evidentemente que não foi essa a intenção do legislador originário.

Por óbvio que isso não se coaduna com os preceitos de direito que versam sobre a matéria. O juiz não pode, em qualquer grau de jurisdição, ser submetido a esse tratamento. Por certo que tal situação passa ao largo da Constituição Federal e da tradição de nosso direito.

Muito embora se esteja tratando a presente questão dos pontos de vista principiológico e finalístico, torna-se importante frisar a consequência do bloqueio do princípio em análise: destruição da justiça.

Deve-se ter em mente que o direito é fato social e como tal está em constante mutação. Essas mudanças são sentidas, primeiramente, pelo juiz de primeiro grau, pois é ele quem primeiro toma conhecimento sobre determinada demanda. São das discussões ocorridas nesses juízos que o direito evolui, pois esses juízes aplicam o direito na medida certa, a depender da lide. E o fazem por estarem próximos da comunidade, vivenciando os problemas dos jurisdicionados.

Os juízes sempre procederam assim, porque garantida estava a sua independência. Com o instituto da súmula vinculante, isso tende a mudar, pelas razões vistas anteriormente.

Portanto, entende-se que o referido instituto impede a evolução do direito. Engessa a interpretação legislativa. Submete toda a magistratura ao que acordarem as onze pessoas que compõem o Supremo Tribunal Federal. Isso é um completo absurdo, pois com o devido respeito, os ministros daquela corte não são infalíveis e nem sempre têm razão naquilo que fazem. O STF não é o Monte Olimpo.

CONCLUSÃO

Do que foi exposto, é possível verificar, claramente, que a súmula vinculante não é somente inconstitucional. Ela contraria, sobremaneira, a tradição do direito brasileiro, que desde a proclamação da República se estabeleceu sobre três alicerces: o primado da lei, o direito de deduzir suas lides em juízo e a consagração da separação dos poderes, que sempre foi muito defendida nas sociedades livres que surgiram após a revolução francesa.

Com este arrazoado, ficou muito bem evidenciado que o instituto da súmula vinculante não guarda qualquer compatibilidade com esses valores. Ao contrário, ele, se ainda não o fez, tem forte potencial para suprimi-los.

A súmula vinculante é um completo absurdo. Simplesmente ela é uma autorização, irregular, para o Poder Judiciário legislar. Que segurança jurídica existe nessa situação? Nenhuma, pois em sendo o Supremo Tribunal Federal o órgão competente para criá-la, e se ao fazê-la, todos os demais órgãos do Poder Judiciário deverão aplicá-la cegamente, a quem, então, poderá se socorrer aquele indivíduo que se vê prejudicado por ela? Na prática, a ninguém. Este sujeito está desamparado.

Tal situação é inconstitucional, pois a idéia do legislador originário, ao confeccionar a Constituição da República, foi de distribuir os poderes para órgãos distintos, visando a que um não pudesse se sobrepor a outro e que todos se vigiassem mutuamente.

A súmula de efeito vinculante amplia, demasiadamente, o poder do Supremo Tribunal Federal. Ao menos em tese, essa situação poderá redundar em uma ditadura de juízes, ou melhor, de ministros. É o que ocorre quando os poderes se concentram na esfera de um só órgão.

Tal raciocínio parece inverossímil, porém, entende-se que questões delicadas como essa, que aborda a supressão de um poder constituído por outro e restrição a direitos individuais (dentre os quais destacam-se as garantias da legalidade e do devido processo legal), devem ser tratadas de maneira muito rigorosa, cuidando-se para que o menor direito não seja violado.

Tal posicionamento não é retrógrado. Não se trata de ser contrário aos constantes aperfeiçoamentos do direito, entende-se, inclusive, que é necessária a sua evolução, acomodando-se às necessidades sociais, porém, é entendido também que a evolução não pode prejudicar os direitos e garantias constantes nos incisos do artigo 5° da Constituição da República, que, como se sabe, traz conteúdo mínimo, mas de observância obrigatória. Tais disposições são consideradas cláusulas pétreas, de modo que não podem sofrer restrição, mas sim devem ser interpretadas de modo abrangente, para que atinjam ao fim a que se propuseram, que é limitar a atuação dos poderes estatais, defendendo o indivíduo de qualquer arbitrariedade.

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