O Aborto do feto anencéfalo


Porbarbara_montibeller- Postado em 07 março 2012

Autores: 
SEGUNDO, Luiz Carlos Furquim Vieira

Resumo: No decorrer do presente trabalho será demonstrado  que a gestante que se encontra com comprovação médica de inviabilidade de vida extra-uterina por ser o feto anencéfalo, caso realize a interrupção da gravidez, não pode ser punida, pois sua conduta sequer configura um fato típico, porque recaindo sobre corpo sem vida para o Direito( conforme a lei 9.434/97), configurado está o crime impossível por absoluta impropriedade do objeto, excluindo-se a tipicidade da conduta.

Palavras-chave: Comprovação médica - inviabilidade  de vida extra-uterina - feto anencéfalo - interrupção da gravidez - crime impossível.

            Um dos temas mais polêmicos e debatidos no Direito nos últimos anos é o aborto do feto anencéfalo, isso porque nosso Código Penal nada dispõe em seu art. 128 ( que apresenta as causas especiais de exclusão do delito de aborto) e também aqueles que se propõem  a discutir o caso do feto anencefálico, muitas vezes apegam-se a questões morais, éticas ou religiosas de tal modo que deixam de solucionar a questão, aliás, em nada  contribuem.

Muitos  se esquecem de que a gestante é quem merece toda a atenção no caso em tela, pois esta é quem sofre com a gestação de um ser que sabe não ter outra opção após o parto a não ser enterrá-lo. Assim, o estudioso que pretender abordar a questão, deve buscar incansavelmente uma solução para que a mesma não seja criminalizada, pois, conforme tivemos a oportunidade de consignar:

A gravidez é um momento especial para mulher, sendo certo, que por muitas vezes esse período é imaginado desde os tempos de menina, assim, exigir que a mesma destrua o sonho de ser mãe, obrigando-a a uma gravidez de feto que se sabe não ter chance alguma de vida extra-uterina, é absolutamente violador do princípio da dignidade da pessoa humana [1].

Assim, não podemos admitir que a gestante que se encontre em gravidez por ser o feto anencéfalo seja criminalizada. Destarte, surge a indagação: Como justificar a prática do aborto do feto anencefálico?

        Há de se destacar inicialmente que no caso da interrupção da gestação do  feto anencéfalo temos o denominado aborto eugênico que é aquele em que há comprovação médica de ser feto portador de graves e irreversíveis anomalias que inviabilizam a vida extra-uterina.

        Antes de responder como justificar a pratica do aborto no caso de comprovação médica da inviabilidade de vida extra-uterina por ser o feto anencefálico, é necessário esclarecer o que significa anencefalia, desse modo, trazemos a lição de nosso querido amigo, o ínclito Dr. Pedro Lazarini Neto[2]:

A anencefalia (do grego an= sem; enkepalos= cérebro), ou seja, "sem cérebro", é anomalia congênita, uma anormalidade do desenvolvimento do embrião e do feto, constituindo-se, pois, em gravíssimo problema do sistema nervoso, advindo assim uma anomalia resultante de um defeito do tudo neural do embrião. Essa anomalia, letal, ocorre entre o 20º e o 28º dia após a concepção, entre a terceira e a quarta semana do desenvolvimento do feto. Todas as funções do cérebro são comprometidas. Ainda conforme observa Bruno Reis, é impossível a vida extra-uterina, bem como qualquer tipo de tratamento. O quadro é fatal em 100% dos casos.

 

        Ainda lembra José Aristodemo Pinotti citado por Guilherme de Souza Nucci[3] que "a maioria dos anencéfalos sobrevivem no máximo 48 horas após o nascimento. Quando a etiologia for brida amniótica podem sobreviver um pouco mais, mas é questão de dias".

        Destarte, a gestante que se encontrar em gestação em que há comprovação médica da inviabilidade de vida extra-uterina por ser o feto anencéfalo, caso realize o aborto, não deve ser criminalizada, pois, para nós, sua conduta configura CRIME IMPOSSÍVEL POR ABSOLUTA IMPROPRIEDADE DO OBJETO (art. 17 do Código Penal Brasileiro), pois as manobras abortivas recaem sobre objeto sem vida, pelo menos para o Direito.

        Crime impossível por absoluta impropriedade do objeto? As manobras abortivas recaem sobre objeto sem vida para o Direito? Sim, estamos neste caso diante de um inequívoco crime impossível por absoluta impropriedade do objeto, pois as manobras abortivas recaem sobre um corpo sem vida para o nosso Ordenamento Jurídico, porquanto o art. 3º da  Lei 9.434/97 dispõe que a morte ocorre com a cessação da atividade encefálica, logo, como o feto anencéfalo carece desta atividade, trata-se de um ser que para o Direito jamais viveu, demonstrando assim, a impropriedade absoluta do objeto que conduz a configuração do crime impossível.

        Vejamos o referido artigo da Lei  9.434/97 :

Art. 3º A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina.

        Desse modo, para nós, a gestante encontra-se amparada pelo crime impossível por absoluta impropriedade do objeto, excluindo-se assim a tipicidade de sua conduta, pois recaindo esta sobre corpo sem vida, conclui-se que é impossível matar aquilo que para nosso Ordenamento Jurídico jamais viveu.

         Necessário ainda consignar que para Rogério Sanches Cunha[4]:

A doutrina ao que parece, procura legitimar essa espécie de abortamento (feto anencefálico), valendo-se de um contorcionismo jurídico alcançado pela interpretação sistemática com a lei 9.434/97, que determina o momento da morte com a cessação da atividade encefálica. Ora, se a cessação da atividade cerebral é caso de morte (não vida), feto anencefálico não tem vida intra-uterina logo, não morre juridicamente (não se mata aquilo que jamais viveu para o direito). A operação terapêutica caminha, desse modo, para a atipicidade.

        Cumpre esclarecer que não se trata de um contorcionismo jurídico como ensina o ilustre penalista, pois asseverar que as manobras abortivas recaem sobre objeto sem vida para o nosso Ordenamento Jurídico, conduzindo assim a configuração de crime impossível (que exclui a tipicidade da conduta), decorre de uma análise técnica e uma interpretação sistemática do nosso Ordenamento, visto que se para o Direito a morte ocorre com a cessação da atividade encefálica e o feto anencéfalo carece desta, conclui-se que é impossível fulminar a existência daquilo que para nosso Ordenamento Jurídico jamais esteve vivo.

        A princípio nossa posição pode chocar alguns (apesar de que para nós, não há qualquer choque), porém, o que choca na verdade, é a tentativa incansável de muitos em prolongar a discussão, trazendo para a questão dilemas éticos, religiosos ou morais, que em nada ajudam, aliás, atrapalham, pois, a gestante não encontra resposta definitiva para a sua tormentosa e cruel situação.

        É iníquo que o Direito Penal venha exigir que a gestante que tenha a devida comprovação médica da inviabilidade de vida extra-uterina por ser o feto anencéfalo continue a gestação, sob pena de cometimento do crime de aborto, pois após o "nascimento" deste ser, a gestante, infelizmente, só terá a opção de chorar e enterrá-lo. Não temos dúvida que tal exigência é inequívoca  violação do princípio da dignidade da pessoa humana.

        Desse modo, como dissemos em nossa pequena obra "Crimes Contra a Vida"[5]:

Mais uma vez reforçamos que a gestante que tenha a comprovação médica da inviabilidade de vida extra-uterina por ser o feto anencéfalo, caso venha a interromper a gravidez, para nós, está amparada pelo crime impossível, pois não é possível matar aquilo que para nosso Ordenamento Jurídico nunca viveu.

 

        Para encerrar nossa pequena explanação, deixaremos aqui duas frases imprescindíveis para uma reflexão acerca do caso em tela: a primeira é atribuída ao filósofo Edmund Burke "para que o mal triunfe basta que os bons não façam nada". A segunda frase é do professor da Faculdade de Direito de Paris,  Georges Ripert "quando o Direito ignora a realidade, a realidade se vinga ignorando o Direito".

[1] VIEIRA SEGUNDO, Luiz Carlos Furquim. Crimes Contra a Vida. São Paulo: Memória Jurídica, 2009. p.83.

[2] LAZARINI NETO, Pedro. Código Penal Comentado e Leis Penais Especiais Comentadas. 3.ed. São Paulo: Primeira Impressão, 2008.p.381.

[3]NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 7.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,2007.p.573.

[4]CUNHA, Rogério Sanches. Direito Penal: parte especial. São Paulo: Revista dos Tribunais,2008.v.3.p.42/43.

[5] VIEIRA SEGUNDO, Luiz Carlos Furquim. Crimes Contra a Vida. São Paulo: Memória Jurídica, 2009. p.86.

Bibliografia

CUNHA, Rogério Sanches. Direito Penal: parte especial. São Paulo: Revista dos Tribunais,2008.v.3.

LAZARINI NETO, Pedro. Código Penal Comentado e Leis Penais Especiais Comentadas. 3.ed. São Paulo: Primeira Impressão, 2008.

NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 7.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais,2007.

VIEIRA SEGUNDO, Luiz Carlos Furquim. Crimes Contra a Vida. São Paulo: Memória Jurídica, 2009.