O Acesso à Justiça e o princípio do processo devido em direito


Porbarbara_montibeller- Postado em 03 abril 2012

Autores: 
SOUZA, Wilson Alves

SUMÁRIO:1. Introdução. 2. Fundamento constitucional do princípio do processo devido em direito. 3. Amplitude do princípio do processo devido em direito. 4. Conclusões. 5. Referências bibliográficas.

 

 

 

 

 

 

1. Introdução.

 

 

O direito de acesso à justiça tem relação estreita com diversos princípios constitucionais processuais, impondo-se uma análise dessa relação para melhor compreensão do tema a partir do mais amplo desses princípios, que é o princípio do processo devido em direito.

 

 

2. Fundamento constitucional do princípio do processo devido em direito.

 

 

O princípio de processo devido em direito (processo justo, processo equitativo, due process of law) tem suas raízes históricas na Magna Carta, expedida na Inglaterra pelo Rei João Sem Terra em 1215, complementada pela Carta expedida por Eduardo III em 1354.[1]

 

Tal princípio está consagrado nas constituições democráticas, a exemplo da Constituição brasileira e da Constituição portuguesa[2].

 

 

3. Amplitude do princípio do processo devido em direito.

 

 

O princípio do processo devido em direito é o mais amplo dos princípios processuais constitucionais. Trata-se, pois, de princípio derivante (ou irradiante), na medida em que dele decorrem todos os demais princípios processuais. Desse modo, não se pode falar em processo devido em direito se, por exemplo, não se atende aos princípios da ampla defesa, da publicidade, do contraditório, do direito à produção da prova necessária e suficiente à defesa dos direitos por meios lícitos, da celeridade (sem comprometimento da segurança), da fundamentação das decisões, do processo em tempo razoável (sem comprometimento da segurança), da eficácia das decisões, etc.

 

Com efeito, o princípio do processo devido em direito é tão amplo que dispensaria a expressão dos demais princípios. Não que os demais princípios não existam em si memos, mas a realidade é que eles são princípios derivados (decorrentes) do princípio do processo devido em direito, de maneira que caso não estejam expressos são considerados implícitos, podendo-se, assim, concluir que caso alguns desses princípios derivados não sejam observados em determinado caso concreto também não se atendeu ao princípio do processo devido em direito.[3]

 

Doutrinariamente o princípio do processo devido em direito é visto sob dois enfoques: 1) o meramente processual (teoria processual; procedural due process); 2) o material (teoria substantiva; substantive due process).

 

A teoria processual leva em consideração apenas o processo em si mesmo, é dizer, preocupa-se apenas com as garantias processuais num determinado processo em que estão em jogo os direitos fundamentais à vida, à liberdade e à propriedade. Por outras palavras, segundo tal teoria o princípio do processo devido em direito estará atendido se princípios processuais previstos, como o direito de peticionar, o direito de ser intimado dos atos processuais, o direito à defesa, o direito ao contraditório, o direito a produzir provas lícitas, etc, forem observados.

 

A teoria substantiva parte da afirmação de que um processo devido em direito (processo justo ou processo equitativo) está centrado na justiça com relação aos direitos em si mesmos (os bens da vida no plano material, a partir dos direitos fundamentais). Isso significa dizer que o processo justo deve ser considerado a partir da criação da própria norma legislativa, ou seja, da lei justa ou da lei razoável.[4]Daí o combate às leis injustas, leis irrazoáveis, leis absurdas que privam desnecessariamente os direitos fundamentais dos cidadãos. Nesse sentido, desrespeitariam o princípio do processo devido em direito, por exemplo, leis que permitam a Administração expropriar bens sem prévia e justa indenização, que afastem a liberdade de imprensa, que autorizem o cerceamento da intimidade do cidadão, etc sem critérios de razoabilidade. Isso significa dizer que o juiz deve, ao resolver determinado caso, examinar os direitos materiais em jogo de modo a verificar a justiça e a razoabilidade da lei material em discussão, dando a solução mais justa ao caso.[5]    

 

De fato, parece-nos que as duas teorias, isoladamente, são insuficientes. Há uma necessária interligação entre os dois aspectos do princípio do processo devido em direito, ou seja, o processo não pode e não tem como ignorar o aspecto material que vem para dentro dele. Processo (dimensão processual) e mérito (dimensão material, em regra) formam um todo. Não há como dizer, de um lado, que determinada decisão foi justa sob o enfoque material, se no caso concreto o juiz não observou princípios processuais, decidindo, por exemplo, contra o réu sem lhe garantir defesa e sem lhe permitir produzir prova autorizada em lei, quando o caso exigia dilação probatória. De outro lado, não se pode falar em processo devido em direito se o juiz, por mais que tenha garantido todos os princípios processuais, decidiu o caso de modo a fazer prevalecer uma lei absurda, a exemplo de lei que permita a Administração expropriar bens sem prévia indenização fora de qualquer razoabilidade.

 

Destarte, um processo em que não se observou o princípio do processo devido em direito nas suas dimensões processual e material, também não se atendeu ao princípio do acesso à justiça, na medida em que o direito à jurisdição só faz sentido se o processo gerou uma decisão justa sob todos esses aspectos.[6]

 

4. Conclusões.

Ante tudo quanto o exposto, apresentamos as seguintes conclusões:

 

1. O direito de acesso à justiça tem relação estreita com diversos princípios constitucionais processuais, em especial com o princípio do processo devido em direito.

2. O princípio do processo devido em direito é o mais amplo dos princípios processuais constitucionais, caracterizando-se como princípio derivante (ou irradiante), na medida em que dele decorrem todos os demais princípios processuais.

 

3. Doutrinariamente o princípio do processo devido em direito é visto sob dois enfoques: 1) o meramente processual (teoria processual; procedural due process); 2) o material (teoria substantiva; substantive due process).

4. Um processo em que não se observou o princípio do processo devido em direito nas suas dimensões processual e material, também não se atendeu ao princípio do acesso à justiça, na medida em que o direito à jurisdição só faz sentido se o processo gerou uma decisão justa sob todos esses aspectos.

 

5. Referências bibliográficas.

 

 

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003.

CASTRO, Carlos Roberto de Siqueira. O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova constituição do Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1989.

DANTAS, San Tiago. Igualdade perante a lei e due process of law: contribuição ao estudo da limitação constitucional ao poder legislativo. Revista Forense. Rio de Janeiro: Forense, março, vol. CXVI, 1948.

FREITAS, Juarez. Da substancial inconstitucionalidade da lei injusta. Rio de Janeiro: Vozes, 1989.

LINARES, Juan Francisco. El “debido proceso” como garantía innominada en la constitución argentina. In Anales de la Facultad de Ciencias Jurídicas y Sociales de la Universidad de La Plata. LaPlata: Tomo XIV, 1943.

NERY JUNIOR. Nelson. Princípios do processo civil na constituição federal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992.

PASSOS, J. J. Calmon de. O devido processo legal e o duplo grau de jurisdição. In Revereor. Estudos jurídicos em homenagem à Faculdade de Direito da Bahia. 1891 – 1981. São Paulo: Saraiva, 1981.

 

SILVEIRA, Paulo Fernando. Devido processo legal. 2ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1997.



 


[1]  O art. 39 da Magna Carta expressava o seguinte: “Nenhum homem livre será detido ou aprisionado, ou privado dos seus bens, ou posto fora da lei ou exilado, ou privado de sua posição. E nós não procederemos ou mandaremos proceder contra ele, senão por julgamento regular pelos seus iguais e de harmonia com a lei do país”. Mas, como anotado por J. J. Gomes Canotilho, a expressão “de harmonia com a lei do país”, por não ser clara, fora substituída pela Carta apresentada por Eduardo III em 1354 pela fórmula processo devido em direito, semanticamente mais rica, apesar de mais indefinida”. In Direito constitucional e teoria da constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003, p. 492. 

[2]A Constituição brasileira consagra expressamente tal princípio no seu art. 5º, LIV, que dispõe: “Ninguém será privado da liberdade ou dos seus bens sem o devido processo legal”. A Constituição portuguesa também prescreve expressamente tal princípio no art. 20º, 4, nos seguintes termos: “Todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo”.

[3]Nesse sentido, NERY JUNIOR. Nelson. Princípios do processo civil na constituição federal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1992, pp. 25-26. Relacionando o princípio do processo devido em direito com outros princípios processuais constitucionais, conferir SILVEIRA, Paulo Fernando. Devido processo legal. 2ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 1997, pp.138-175.

[4]DANTAS, San Tiago. Igualdade perante a lei e due process of law: contribuição ao estudo da limitação constitucional ao poder legislativo. Revista Forense. Rio de Janeiro: Forense, março, 1948, vol. CXVI, pp. 357 e segts.; LINARES, Juan Francisco. El “debido proceso” como garantía innominada en la constitución argentina. In Anales de la Facultad de Ciencias Jurídicas y Sociales de la Universidad de La Plata. LaPlata: Tomo XIV, 1943, pp. 495 e segs; CASTRO, Carlos Roberto de Siqueira. O devido processo legal e a razoabilidade das leis na nova constituição do Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1989, pp. 369 e segs.; FREITAS, Juarez. Da substancial inconstitucionalidade da lei injusta. Rio de Janeiro: Vozes, 1989, pp. 72 e 105-106.

[5]Como salientado por Juan Francisco Linares, “toda norma constitucional de competencia legislativa queda integrada por una norma implícita que dice: ‘Todas las leys del Congreso e Legislaturas provinciales deben ser razonables ‘”. E adiante reafirma que “la garantía de la razonabilidad obliga al Legislador a dictar leyes que observen una mesura y proporcionalidad tal que no restrinjan absurdamente la liberdad del individuo. Vale decir, que obliga al órgano estatal – digamos ao Legislador – a observar cierta política jurídica estimativa en las imputaciones normativas que realiza cuando legisla, o sea, cuando crea derecho dentro de los marcos constitucionales de su arbítrio”. LINARES, Juan Francisco. El “debido proceso”…, cit., pp. 641 e 646.

[6]Relacionando o princípio do processo devido em direito com as idéias de imparcialidade e independência do julgador e, estas todas com o princípio do acesso à justiça, diz J. J. Calmon de Passos que “a nada conduzir, em concreto, assegurarem-se a imparcialidade e a independência do juiz se também não for garantido o acesso ao julgador, como direito subjetivo deferido a todo e qualquer sujeito submetido ao império de determinada ordem jurídica”. O devido processo legal e o duplo grau de jurisdição. In Revereor. Estudos jurídicos em homenagem à Faculdade de Direito da Bahia. 1891 – 1981. São Paulo: Saraiva, 1981, p. 86