O Direito Penal na sociedade do risco: um contributo à construção do paradigma penal das sociedades democráticas contemporâneas


PorJeison- Postado em 26 novembro 2012

Autores: 
SILVA, Luzia Gomes da.

 

Resumo: Trata-se do Direito Penal na sociedade do risco, com o intuito de contribuir para a construção do paradigma penal das sociedades democráticas contemporâneas. A partir da identificação e apresentação das três principais teorias já elaboradas para construir um modelo doutrinário de dogmática jurídico-penal condizente com os problemas inerentes à sociedade do risco a ser seguido pelo legislador: a Teoria da Função Penal restrita aos Direitos Individuais; a Teoria do Direito Penal de Risco e a Teoria da Dogmática Criminal Dualista, vertentes teoréticas que se diferenciam entre si em decorrência do critério jurídico-político adotado pelos idealizadores, a pretensão é discutir o tema para sistematizá-lo de forma a indicar os contornos de um novo paradigma penal das sociedades democráticas contemporâneas. Para nortear a pesquisa indaga-se se o Direito Penal pode ser flexibilizado para solucionar problemas emergentes na sociedade do risco, ou seja, se é salutar a renúncia à tradição penal iluminista para ampliar os bens jurídicos protegidos pelo Direito Penal. A busca de respostas a este e outros questionamentos levantados leva em consideração os riscos da sociedade moderna e a inevitável insegurança gerada no seio social.

Palavras-chave:  Direito Penal; paradigmas sociais; sociedade de risco.

Abstract: One is about the Criminal law in the society of the risk, with intention to contribute for the construction of the criminal paradigm of the democratic societies contemporaries. From the identification and presentation of the three main theories already elaborated to construct to a doctrinal model of legal-criminal dogmatic with the inherent problems to the society of the risk to be followed by the legislator: the Theory of the restricted Criminal Function to the Individual Rights; the Theory of the Criminal law of Risk and the Theory of the Criminal Dogmatic Dualist, theoretical sources that if differentiate between itself in result of the criterion legal-politician adopted for the idealizers, the pretension are to argue the subject systemize it of form to indicate the contours of a new criminal paradigm of the democratic societies contemporaries. To guide the research it is inquired if the Criminal law can be flexible to solve emergent problems in the society of the risk, that is, if it is to salutary the resignation to the illuminist criminal tradition to extend the legal goods protected by the Criminal law. The raised search of answers to this and other questionings take in consideration the risks of the modern society and the inevitable unreliability generated in the enter social.


Fundamentação Teórica:  Estado atual do conhecimento sobre o tema

As discussões e soluções propostas variam muito dependendo da própria visão singular do investigador sobre o objeto de estudo. O ponto de partida na identificação dos problemas fundamentais do Direito Penal não poderia ser outro senão o Direito Penal tradicional ou clássico no contraponto com a sociedade do risco e seus reflexos no Direito Penal, face à ideia de que a estrutura social emergente estaria pondo em xeque a legitimação do critério da individualização da responsabilidade penal, fazendo aflorar variações às clássicas teorias desse ramo do direito. O compromisso dos pesquisadores do assunto é impedir que o desenho da intervenção punitiva em construção se desvie infundadamente e de forma descontrolada dos conceitos originais do Direito Penal, levando-o ao simbolismo e ao esvaziamento prático: como proteger as futuras gerações sem quebrar as garantias individuais arduamente conquistadas?

Os estudos prévios à elaboração dessa pesquisa indicam a presença de inúmeras opiniões, teses e doutrinas que podem ser agrupadas em três teorias principais: a teoria da função penal restrita aos direitos individuais; a teoria do Direito Penal de risco e a teoria da dogmática criminal dualista. Essas vertentes teoréticas diferem-se entre si em decorrência do critério jurídico-político adotado pelos idealizadores, porém, todas, até mesmo a da restrição da missão penal, reconhecem que o Direito Penal na forma antropocêntrica delineada pelo iluminismo se tornou impotente para enfrentar as demandas das sociedades democráticas contemporâneas. Contudo, nãos e pode olvidar que a função da dogmática jurídico-penal não é preventiva e não pode ser utilizada como mero instrumento de política criminal. A solução de todo o impasse emergente seria muito simples se não existisse a idéia, diga-se ilusória, de que o Direito Penal deve servir de panacéia à contenção da criminalidade contemporânea.

Em breves linhas, a teoria da função penal restrita aos direitos individuais, a partir da Escola Penal de Frankfurt, sustenta que o Direito Penal clássico não pode servir de “instrumento de tutela dos novos e grandes riscos próprios da sociedade presente e, ainda mais, da sociedade do futuro”. Ao revés, argumentam seus seguidores que é preciso guardar e reforçar, se necessário, “o patrimônio ideológico do iluminismo penal, reservando ao Direito Penal o seu âmbito clássico de tutela (os direitos fundamentais do indivíduo) e os seus critérios experimentados de aplicação”. Desse modo, defendem que “para a proteção perante os megariscos da sociedade pós-industrial só pode ser pedido auxílio a outros ramos de direito (não penal) e, porventura, sobretudo, a meios não jurídicos de controle social”[1], a exemplo do direito sancionatório de caráter administrativo, da tutela jurídico-civil, das forças auto-reguladoras do mercado ou do direito de intervenção[2]. Na realidade a proposição é no sentido da inserção de uma punição intermediária entre o Direito Penal e o Direito Administrativo.

De outro lado está à teoria da funcionalização intensificada da tutela penal, também chamada de “Direito Penal do risco”. Essa teoria pretende criar um novo Direito Penal, fundado em três princípios básicos: a ampliação sistemática do campo de atuação do aparato penal, a tutela de bens jurídicos supra-individuais e a flexibilização de critérios de imputação. Consequentemente, implicaria no abandono dos princípios básicos que presidem a individualização da responsabilidade penal.

E como não poderia ser de outro modo, existe também uma teoria mista, chamada por Jorge de Figueiredo Dias de “via intermediária”[3]. Essa teoria pretende manter o Direito Penal tradicional, direcionada à proteção subsidiária de bens jurídicos individuais, e construir uma “periferia” jurídico-penal mais flexível e de menor intensidade garantística que o Direito Penal central, dirigida contra os megariscos[4]. Trata-se de um braço expansivo do núcleo duro do Direito Penal no sentido de convertê-lo num direito de gestão de riscos, de atuação anterior ao delito e, como decorrência, mais administrativizado.

Por fim, identifica-se uma tese que pretende a adequação do Direito Penal à sociedade do risco. Essa acomodação implicaria na releitura do conceito de bem jurídico protegido pelo Direito Penal, na inserção, ao lado da responsabilidade penal individual, do princípio da responsabilidade penal dos entes coletivos, e na construção típica dos delitos coletivos.

Isso tudo, vale dizer, a adequação do Direito Penal à sociedade do risco, demandaria: uma nova postura político-criminal que substitua a função restrita e minimalista do Direito Penal à tutela de bens jurídicos individuais por uma função promocional e propulsora de valores que orientam a ação humana no seio social; e uma nova dogmática jurídico-penal que aceite abandonar e substituir princípios tradicionalmente considerados como essenciais, a exemplo da individualização da responsabilidade penal e dar nova interpretação aos problemas relacionados à imputação objetiva, à causalidade, à autoria e ao erro e à culpa[5].

Essas teorias demonstram o Estado atual do conhecimento doutrinário sobre a dogmática jurídico-penal das sociedades democráticas contemporâneas.

Objetivos e hipóteses da investigação

Objetivos

O estudo em projeto tem como objetivo geral contribuir à construção de um novo modelo doutrinário de dogmática jurídico-penal condizente com os problemas inerentes à sociedade pós-industrial a ser seguido pelo legislador contemporâneo.

De forma específica, pretende-se:

a) colher dados para descortinar o sentido e o alcance do direito penal, fazendo-se breve recorte histórico;

b) identificar e apresentar as teorias que estão sendo criadas buscando um melhor modelo doutrinário de dogmática jurídico-penal condizentes com os problemas inerentes à sociedade do risco a ser seguido pelo legislador;

c) verificar se o Direito Penal do inimigo é compatível com o Estado Constitucional brasileiro; e

d) desenhar os contornos de uma nova dogmática jurídico-penal adequada à sociedade do risco, sem perder de vista que o compromisso dos pesquisadores do assunto é impedir que o desenho da intervenção punitiva em construção se desvie infundadamente e de forma descontrolada dos conceitos originais do Direito Penal, levando-o ao simbolismo e ao esvaziamento prático

 Problemática e hipóteses da investigação

Questão-problema

O Direito Penal do inimigo é compatível com o Estado Constitucional brasileiro?

Para parte da doutrina o direito penal é a panacéia para todos os males, tudo deve ser criminalizado, as penas devem ser aumentadas etc. Outros defendem a tese de que os riscos de hoje não podem ser resolvidos pelo direito penal, por exemplo, danos ao meio ambiente, alimentos contaminados, remédios ineficientes, leite com água, etc. e que ao invés de aplicar o direito penal (pena de prisão, por exemplo), seria preciso criar um direito administrativo sancionador (multas e outras restrições nesse sentido).

Indaga-se se o Direito Penal pode ser flexibilizado para solucionar problemas emergentes na sociedade do risco, ou seja, se é salutar a renúncia à tradição penal iluminista para ampliar os bens jurídicos protegidos pelo Direito Penal

Pergunta-se se o paradigma da doutrina jurídico-política do individualismo penal, ou seja, do direito penal liberal e extremamente antropocêntrico é capaz de resolver os problemas emergentes na sociedade do risco ou se no horizonte já é possível identificar sinais de que é preciso promover uma nova revolução nas definições básicas, mormente no que diz respeito às finalidades á aplicação das penas e das medidas de segurança e, pôr fim, à função do direito penal no sistema social contemporâneo.

Hipóteses

No Direito Penal tradicional, a função penal entra em ação como ultima ratio e no Direito Penal moderno traduz-se em uma verdadeira panacéia. A prevenção deixou de ser uma meta secundária da justiça penal para se transformar num paradigma penal dominante. A proteção dos bens jurídicos sempre teve como caráter o critério negativo, figurando como um conceito crítico para nortear o legislador penalista; hoje é considerada uma exigência para que sejam penalizadas determinadas condutas, convertendo-se em um critério positivo para justificar decisões criminalizadoras. A orientação das consequências classicamente entendida como um critério complementar para uma correta legislação converteu-se, no moderno Direito Penal, em uma de suas características e na meta principal, marginalizando da política jurídico-penal os princípios de igualdade e de retribuição justa do delito.

De qualquer modo, toda e qualquer análise envolvendo responsabilidade penal na sociedade do risco precisa partir de fatos reais, concretos, e, hoje, o Direito Penal apresenta-se inegavelmente caracterizado, em maior ou menor intensidade, como instrumento de proteção de bens jurídicos, fundado na idéia exacerbada de prevenção dos riscos e orientado para as conseqüências.

A pretensão é confirmar a hipótese que os caminhos trilhados pelo Direito Penal moderno não são os mais indicados e que um Direito Penal, de índole liberal e garantista é, ainda, viável, mesmo em uma sociedade do risco. Os contornos estão sendo desenhados a partir das discussões doutrinárias e dos erros e acertos das experiências práticas.

ESTADO DA ARTE

Destaque sobre as formulações doutrinárias consideradas mais relevantes para responder ao seguinte questionamento: “o Direito Penal do inimigo é compatível com o Estado Constitucional brasileiro?”

JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Derecho Penal del enemigo. España: Civitas, 2003.

Na síntese de Günther Jakobs: 1. No Direito Penal do cidadão, a função manifesta da pena é a contradição, no Direito Penal do inimigo a eliminação de um perigo. Os correspondentes tipos ideais praticamente nunca aparecerão numa configuração pura. Ambos os tipos podem ser legítimos. 2. No direito natural de argumentação contratual estrita, na realidade todo delinquente é um inimigo. Para manter um destinatário para as expectativas normativas, sem embargo, é preferível manter o status de cidadão para aqueles que não se desviam por princípio. 3. Quem por princípio se conduz de modo desviado não oferece garantia de um comportamento pessoal; por isso, não pode ser tratado como cidadão, mas deve ser combatido como inimigo. Esta guerra tem lugar com um legítimo Direito dos cidadãos em seu direito à segurança; mas a diferença da pena não é só direito também respeito do apenado; pelo contrário, o inimigo é excluído. 4. As tendências contrárias presentes no direito material - contradição versus neutralização de perigos - encontram situações paralelas no Direito Processual. 5. Um Direito Penal do inimigo claramente delimitado é menos perigoso, desde a perspectiva do Estado de Direito, do que mesclar todo o Direito Penal com fragmentos de regulações próprias do Direito Penal do inimigo. 6. A punição internacional ou nacional de vulnerabilidades dos direitos humanos depois de um câmbio político mostra traços próprios do Direito Penal do inimigo sem ser apenas por isso ilegítima[6].

Segundo Manuel Cancio Meliá, desde o ponto de vista aqui adotado se constata que aquele que pode denominar-se Direito Penal do inimigo não pode ser chamado de direito. Dito de outro modo: é algo distinto do que habitualmente se chama de Direito Penal em nossos sistemas jurídico-políticos. E este não é um fenômeno qualquer, uma oscilação político-criminal habitual. Ao contrário, realizar este diagnóstico significa ao mesmo tempo reclamar, mesmo que seja em outro plano metodológico, que as medidas repressivas que contém esses setores de regulação de Direito Penal do inimigo sejam trasladadas para o setor que em direito corresponde, e com isso também no âmbito de discussão política correto: as medidas em estado de exceção[7].

Ainda de acordo com Manuel Cancio Meliá, sem embargo, desde a perspectiva aqui adotada, essa definição é incompleta: somente se corresponde de maneira parcial com a realidade (legislativa, política e da opinião publicada). Em primeiro lugar, mesmos em levar a cabo um estudo de materiais científicos relativos à psicologia social, parece claro que em todos os campos importantes do Direito Penal do inimigo (cartéis de tráfico de drogas; criminalidade de imigração; outras formas de criminalidade organizada e terrorismo) o que sucede não é que se dirijam com prudência e comuniquem com friamente operações de combate, mas que se desenvolva uma cruzada contra malfeitores altamente perigosos. Se trata, portanto, mais de inimigos neste sentido pseudo-religioso que na acepção tradicional-militar do termo. Com efeito, a identificação de um infrator como inimigo por parte do ordenamento penal, por muito que pode parecer a primeira vista uma qualificação como outro, não é, na realidade, uma identificação como fonte de perigo, não supõe declarar-lo um fenômeno natural a neutralizar, mas, pelo contrário, é um reconhecimento de competência normativa dos agentes mediante a atribuição de perversidade, mediante sua demonização e que outra coisa é Lúcifer que um anjo caído. Neste sentido, a carga genética do punitivismo (a ideia do incremento da pena como único instrumento de controle da criminalidade) se recombina com a do Direito Penal simbólico (a tipificação penal como mecanismo de criação de identidade social) dando lugar ao Código do Direito Penal do inimigo. Em segundo lugar, este significado simbólico específico do Direito Penal do inimigo abre a perspectiva para uma segunda característica estrutural: não é apenas um determinado fato o que está na base da tipificação penal, mas também outros elementos, com tal de que sirvam à caracterização do autor como pertencente à categoria dos inimigos. De modo correspondente, no plano técnico, o mandato de determinação derivado do princípio de legalidade e suas complexidades já não são um ponto de referência essencial para a tipificação penal[8].

Manuel Cancio Meliá prossegue expondo que os fenômenos frente aos quais reage o Direito Penal do inimigo não tem essa especial periculosidade terminal (para a sociedade) que se predica deles. Ao menos entre os candidatos a inimigos das sociedades ocidentais, não parece que possa apreciar-se que haja algum - nem a criminalidade organizada, nem as máfias das drogas. Isso fica especialmente claro se se compara a dimensão meramente numérica das lesões de bens jurídicos pessoais sofridas por tais condutas delitivas com outro tipo de infrações criminais que se cometem de modo massivo e que entram, ao revés, plenamente na normalidade. Então, o que tem de especial os fenômenos frente aos quais responde o Direito Penal do inimigo? Que característica especial explica, no plano fático, que se reaja desse modo frente a precisamente essas condutas? Que função cumpre a pena neste âmbito? As respostas para estas perguntas estão em que se trata de comportamentos delitivos que afetam, certamente, elementos essenciais e especialmente vulneráveis da identidade das sociedades em questão. Mas não é nesse sentido que se entende a concepção antes examinada - no sentido de um risco fático extraordinário para esses elementos essenciais -, senão num determinado plano simbólico[9].

Para Günther Jakobs, as regras do Direito Penal do inimigo reconhecem dois pólos: de um lado o tratamento a posteriori dispensado ao cidadão de bem, isto é, espera até que este exteriorize seu ato contrário ao direito para só depois entrar em ação; por outro lado o tratamento dado ao inimigo, interceptado no estágio prévio, combatido por sua periculosidade. No Direito Penal do cidadão, a função penal embasa-se na contradição; no Direito Penal do inimigo o Direito Penal tem a finalidade de eliminar um perigo. Um Direito Penal do inimigo claramente delimitado, na concepção de Günther Jakobs é menos perigoso, na perspectiva do Estado de Direito, do que o entrelaçamento do Direito Penal com fragmentos de regulações próprias do Direito Penal do inimigo.

Manuel Cancio Meliá discorda de Günther Jakobs, compreendendo que o Direito Penal do inimigo não é um direito; é algo distinto do que se chama de Direito Penal nos sistemas jurídico-políticos. No seu pensar, o Direito Penal do inimigo se constitui numa reação de combate do ordenamento jurídico contra indivíduos especialmente perigosos que nada significa, já que de modo paralelo às medidas de segurança supõe-se apenas um processamento instrumental de determinadas fontes de perigo especialmente significativas. Com esse instrumento, o Estado não se comunica com seus cidadãos, mas apenas ameaça seus inimigos.

Com efeito, o Direito Penal do inimigo não pode ser valorado como parte do Direito Penal moderno, primeiro porque é inconstitucional (na acepção clássica dos movimentos constitucionalistas democráticos), segundo porque não contribui para a prevenção de delitos. Ademais, o Direito Penal do inimigo não estabiliza normas, isto é, não promove a esperada prevenção geral positiva, apenas endemoniza determinados grupos de infratores. Também não se trata de um Direito Penal de fato, mas de autor.

O argumento de que os fenômenos sobre os quais o Direito Penal do inimigo reage são perigos que põem em risco a existência da sociedade esquece que a percepção dos riscos é uma construção social que não está relacionada com as dimensões reais de determinadas ameaças.

A partir da análise dessa doutrina, conclui-se que não pode haver um Direito Penal do inimigo, precisamente desde o ponto de vista de um entendimento da função penal com base na missão geral preventiva. A reação que reconhece excepcionalidade à infração do inimigo mediante uma mudança de paradigma de princípios e regras de responsabilidade penal é disfuncional de acordo com o conceito de Direito Penal. Desde esta perspectiva, o Direito Penal do inimigo cumpre uma função distinta da do Direito Penal do cidadão. O Direito Penal do inimigo praticamente reconhece, ao optar por uma reação estruturalmente diversa, excepcional, a competência normativa (a capacidade de questionar a norma) do infrator; mediante a demonização dos grupos de autores implícita em sua tipificação, da ressonância aos seus feitos.

DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: parte geral - questões fundamentais - a doutrina geral do crime. Coimbra: Coimbra Editora, 2004.

Sobre o que chama de “crise actual do paradigma penal”, Jorge de Figueiredo Dias expressa que o paradigma penal das sociedades democráticas do nosso tempo consubstancia-se nas teses da proeminência da política criminal no seio da ciência conjunta do direito penal, da natureza unicamente preventiva das sanções penais e da função do direito penal de exclusiva tutela subsidiária de bens jurídico-penais. As raízes longínquas deste paradigma devem procurar-se no pensamento filosófico ocidental a partir do século XVII e, pelo que directamente respeita ao âmbito jurídico-penal, no movimento do Iluminismo Penal; e exprimem-se por excelência no racionalismo cartesiano, na doutrina jurídico-política do individualismo liberal e na mundividência antropocêntrica e humanista que comandou o movimento a favor dos direitos humanos. No momento presente, porém, começa a perguntar-se com insistência crescente se um tal paradigma terá capacidade para persistir no século que iniciámos. Ou se, pelo contrário, existem no horizonte sinais da necessidade de uma nova revolutio nas concepções básicas, nomeadamente no que toca às finalidades a assinalar à aplicação das penas e das medidas de segurança, e, em definitivo, à função do direito penal no sistema social[10].

Acerca da “sociedade do risco”, Jorge de Figueiredo Dias explica que a pergunta formulada põe hoje o estudioso perante o topos que, na esteira do sociólogo Ulrich Beck, se tornou conhecido como o da sociedade do risco, ligado às problemáticas da pós-modernidade e da globalização. Esta ideia suscita ao direito penal problemas novos, ao pôr em evidência uma transformação radical da sociedade em que vivemos e que seguramente se acentuará no futuro. Ela anuncia o fim de uma sociedade industrial em que os riscos para a existência, individual e comunitária ou provinham de acontecimentos naturais (para tutela dos quais o direito penal é incompetente), ou derivavam de acções humanas próximas e definidas, para contenção das quais era bastante a tutela dispensada a clássicos bens jurídicos como a vida, o corpo, a saúde, a propriedade, o patrimônio, em suma, o catálogo próprio de um direito penal liberal e extremadamente antropocêntrico. Anuncia o fim desta sociedade e a sua substituição por uma sociedade exasperadamente tecnológica, massificada e global, onde a acção humana, as mais das vezes anônima, se revela susceptível de produzir riscos globais ou tendendo para tal, susceptíveis de serem produzidos em tempo e em lugar largamente distanciados da acção que os originou ou para eles contribuiu e de poderem ter como consequência, pura e simplesmente, a extinção da vida[11].

Prossegue explicando que para tutela destes riscos não está preparado o direito penal de decidida vertente liberal. Sobretudo se teimar em ancorar a sua legitimação substancial no modelo do contrato social rousseauniano, fundamento de princípios político-criminais tidos por tão essenciais como o da função exclusivamente protectora de bens jurídicos, o da secularização, o da intervenção mínima e de ultima ratio. Querer manter estes princípios significará a confissão resignada de que ao direito penal não pertence nenhum papel na protecção das gerações futuras; como, entre outros e principalmente, os temas dos atentados ao ambiente, da manipulação genética e da desregulação da actividade produtiva se vão encarregando de mostrar ou de prenunciar. A adequação do direito penal à sociedade do risco implica por isso uma nova política criminal, que abandone a função minimalista de tutela de bens jurídicos e aceite uma função promocional e propulsora de valores orientadores da acção humana na vida comunitária; e uma nova dogmática jurídico-penal disposta a abandonar e substituir princípios até aqui tão essenciais como os da individualização da responsabilidade penal e a considerar a nova luz questões como as da causalidade, da imputação objectiva, do erro e da culpa, da autoria[12].

Sobre o direito penal mínimo, Jorge de Figueiredo Dias afirma que esta via de resolução da crise não parece dar o lugar devido à necessidade de superação do dogma da razão técnico-instrumental, ela minimiza, em medida inaceitável, a função do Direito Penal no corpo social. Para controle das fontes dos novos riscos tornam-se indispensáveis normas de comportamento cuja violação, nos casos mais graves, exige uma punição penal. Esperar uma tutela capaz de meios não jurídicos de política social - como o fomento de formas de auto-proteção da vítima ou das forças auto-reguladoras do mercado afigura-se expectativa inconsistente. Corno inconsistente parece ser a esperança depositada em meios jurídicos não penais, nomeadamente na tutela jurídico-civil ou numa tutela jurídico-administrativa intensificada. Hipóteses diversificadas bem presentes hoje no espírito de todos mostram como a punição dos agentes responsáveis não pode bastar-se com sanções civis ou mesmo administrativas, ainda que intensificadas. Uma tal solução significaria pôr o princípio jurídico-penal de subsidiariedade e de ultima ratio de pernas para o ar, ao subtrair à tutela e às sanções penais precisamente as condutas tão gravosas que põem do mesmo passo em causa a vida planetária, a dignidade das pessoas e a solidariedade com as outras pessoas, com as que existem e com as que hão-de nascer[13].

Jorge de Figueiredo Dias rebate a postura doutrinária que defende a restrição da função penal à tutela de direitos individuais e a instituição de um direito extrapenal para proteção perante os megariscos da sociedade contemporânea, sob o argumento basilar de que ela minimiza, em medida inaceitável, a função do Direito Penal na sociedade.

As ideias de Jorge Figueiredo Dias se aproximam, de algum modo, do pronunciamento de Günther Stratenwerth que sugere em substituição à proteção de bens jurídicos de natureza antropocêntrica, uma proteção jurídico-penal imediata de relações de vida de per si, porém, para o citado autor, “uma punição imediata de certa espécie de comportamentos como tais é feita em nome da tutela de bens jurídicos coletivos e só nesta medida se encontra legitimada”[14].

Para Jorge de Figueiredo Dias, as transformações do Direito Penal são exigências lógicas decorrentes das mudanças desencadeadas pela sociedade do risco. Seguindo-se essa linha de pensamento, o Direito Penal tradicional que na criminalidade visível da sociedade industrial cumpriu sua função de tutelar direitos individuais, não é suficientemente eficaz para solucionar os conflitos insurgentes de fenômenos mais complexos. Em suma, tal proposta tem por escopo reduzir ou flexibilizar algumas das garantias individuais consagradas, para regulamentar em sede criminal, matérias que antes eram atribuídas a outros ramos do direito.

HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. Introducción a la criminología y al Derecho Penal. Valencia, Tirant lo Blanch, 1989.

Para Winfried Hassemer e Francisco Muñoz Conde o contraste entre delinquente e vítima está claramente atenuado na legislação penal sobre, por exemplo, o tráfico de drogas, o Direto Penal econômico ou a proteção penal do meio ambiente. Nesta nova legislação, se incrimina cada vez com mais freqüência delitos sem vítimas. Precisamente, é característico do Direito Penal moderno excluir a vítima do Direito Penal material e substituir gradativamente a causa do dano pelo perigo, os delitos de resultado pelos de perigo abstrato, os bens jurídicos individuais por bens jurídicos universais. O que se tem, é a transformação do Direito Penal, que deveria castigar as mais graves lesões de interesses entre indivíduos, em instrumento condutor de finalidades políticas[15].

Conforme Winfried Hassemer e Francisco Muñoz Conde é freqüente, não apenas na linguagem cotidiana, mas também nas expressões técnicas, a associação de criminalidade e delito com a idéia de luta. O delito é concebido como um mal, a criminalidade como uma enfermidade infecciosa e o delinqüente como um ser perigoso. A opinião pública mostra uma atitude belicosa e com base nesse sentimento é que os governantes elaboram sua política. Quanto mais ameaçadores são considerados determinados delitos, quanto mais materialistas são as exigências que se impõem ao seu tratamento. Esta tendência está se generalizando notadamente sobre condutas terroristas e de tráfico de drogas, constituindo um Direito Penal para inimigos, isto é, para determinadas formas de criminalidade ou certos tipos de delinqüentes, os quais são privados inclusive das tradicionais garantias de Direito Penal material e de Direito Penal processual[16].

Ainda segundo Winfried Hassemer e Francisco Muñoz Conde duas condições favorecem esta tendência: um entendimento preventivo excessivamente unilateral dos fins do Direito Penal e a esperança, baseada na história da Filosofia, de que o delito pode ser alguma vez eliminado da face da terra. Ambas as condições, por mais que ideologicamente estejam afastadas uma da outra, possuem em comum uma confiança ingênua de que, por um lado, é possível modificar o curso da história pelo homem ou o processo evolutivo e, por outro, existe uma enorme impaciência frente à conduta desviada. Isso conduz, pois, a uma atitude intervencionista bastante radical, buscando mais a efetividade do Direito Penal do que sua formalização ou sua correção jurídica. A luta contra o delito é a meta mais urgente para um Direito Penal entendido preventivamente, é dizer, moderno como instrumento social funcional para a solução do problema. Mas esta luta contra o delito é também o programa de uma concepção da história da Filosofia, que aspira conseguir alguma vez uma sociedade na qual não sejam necessários nem o Estado nem o direito. Mesmo que ambas as posições partem de uma base ideológica e metódica diferente, favorecem, sem embargo, por igual, a mesma atitude intolerante, impaciente e ilimitada que a gente decente mostra diante do delinquente e o delito. Esta atitude que, ademais, vem sendo também denunciada e rechaçada nos últimos anos tanto desde pontos de vista sociais e humanitários, como também político, parece estar em consonância com o espírito do momento. O que não deixa de ser, de todas as formas, uma atitude agressiva para as pessoas e obstaculizadora de uma política criminal, ademais, é uma atitude falsa, por ser unilateral[17].

Mais adiante, Winfried Hassemer e Francisco Muñoz Conde constatam que: duas são as tendências claramente perceptíveis no Direito Penal contemporâneo que o estão transformando num mero instrumento de força e que, portanto, ao passo que precisam ser combatidas, exigem atitudes no sentido da busca de uma melhor solução: a funcionalidade e a desformalização. A funcionalidade ou funcionalização do Direito Penal decorre da sua transmudação para instrumento de política criminal. Preparada e apoiada pelas teorias funcionais de Direito Penal, dos fins da pena e da dogmática jurídico-penal, e inserida num contexto no qual a prevenção, a consideração das conseqüências e a utilização dos instrumentos jurídico-penais na persecução dos fins políticos foram convertidas nos critérios centrais de justificação do Direito Penal, a penetração da política criminal em Direito Penal é cada vez mais evidente. O Direito Penal era a intransponível barreira da política criminal, atualmente é considerado como uma prolongação de seu braço, um instrumento da política criminal[18].

Vejam-se alguns exemplos da utilização desvirtuada do Direito Penal tradicional como instrumento de política criminal e que caracterizam o “Direito Penal moderno”, na colação de Winfried Hassemer e Francisco Muñoz Conde o constante aumento dos delitos de perigo abstrato nos códigos penais; a penetração dos interesses preventivos em constelações jurídico-penais com alta necessidade política de solucionar o problema; a aparição de legislação simbólica, quando a necessidade de solução do problema não corresponde com as possibilidades jurídico-penais de solução adequada; e a ampliação da repressão e da expropriação em favor do Estado dos instrumentos e produtos de crime, notadamente por meio de tráfico de drogas, com o intuito de desmantelar as organizações criminosas. Sem se falar das leis especiais editadas para penalizar algum tipo de conduta ilícita de grande clamor público, em regra, em descompasso com os princípios do Direito Penal essencialmente garantidor de direitos individuais[19].

A desformalização dos instrumentos do Direito Penal básico, também chamado de Direito Penal clássico, Direito Penal tradicional, Direito Penal liberal, é um dos caminhos pelos quais se pode realizar a funcionalização do Direito Penal, eliminando ou diminuindo as barreiras tradicionais do Direito Penal garantista que podem limitar os fins políticos. Precisamente, esta é uma das razões que se são aduzidas em favor da solução privada e rápida do conflito. Ainda não se pode afirmar que a desformalização enriquece em alguma medida o Direito Penal ou, pelo contrário, diminui suas garantias formais[20].

Winfried Hassemer e Francisco Muñoz Conde, contrários ao Direito Penal do inimigo, se preocupam com o fato de que um Direito Penal funcionalizado pela política criminal encontra facilmente a justificação utilitária de suas intervenções junto à opinião pública, além do que se pode adaptar harmonicamente com os demais instrumentos políticos de solução dos problemas. O prognóstico, em face destas constatações, é o de que tal tendência funcionalizante do Direito Penal será mantida. O perigo de uma funcionalização do Direito Penal é o de eliminar ou reduzir as garantias de uma elaboração formalizada do conflito porque pode perturbar os fins e interesses políticos.

O fato é que a ânsia de desformalização do Direito Penal tem levado o legislador a editar normas gerais indeterminadas, produzidas por quatro vias distintas: pelo crescente aumento do emprego de conceitos vagos e de cláusulas gerais nos preceitos legais; abstendo-se ou fazendo apenas referências sem especificar os fundamentos entre a criminalização e a descriminalização de alguns âmbitos de comportamentos ilícitos; e deixando ao cargo do julgador o poder discricionário de decisão, oferecendo-lhe conceitos com ampla margem interpretativa.

Consideram, os citados autores, que é compreensível que, diante das condições de uma transformação social acelerada e de uma mudança rápida das idéias normativas, o legislador penal caia na tentação de oferecer programas de decisões flexíveis. Contudo, isso não lhe concede o direito de desformalizar o Direito Penal a ponto de abandonar as garantias formais fundamentais do princípio da legalidade.

Os problemas apontados acerca do Direito Penal contemporâneo induzem à conclusão de que se está diante de um Direito Penal com efetividade preventiva. Porém, as categorias necessárias para dar uma resposta adequada aos problemas da modernidade social não são as categorias próprias do Direito Penal, pois que não se trata de compensar a injustiça, mas de prevenir o dano; não se trata de castigar, mas de controlar; não se trata de retribuir, mas de assegurar; não se trata do passado, mas do futuro. É obvio que o Direito Penal está ao final ou às margens da elaboração destes problemas.

Diante do exposto, verifica-se que, em face dos riscos advindos das relações sociais contemporâneas, desenvolveu-se a idéia de que o Direito Penal deveria ser estendido para atender também as situações e as necessidades da sociedade do risco. De fato, o que se percebe é que há uma tendência no sentido de transformar o Direito Penal em um instrumento de política criminal.

Para os citados autores, defensores da função penal restrita aos direitos individuais, o Direito Penal não deve se preocupar com os bens jurídicos supra-individuais. Defendem a necessidade de se resgatar e fazer prevalecer os princípios de um Direito Penal garantidor, como necessidade mesmo de preservação de um Estado de Direito, rompendo-se com a irracionalidade da reação punitiva, e que se constitua em um passo no sentido do rompimento com a cruel fantasia que sustenta o sistema penal. Com efeito, sugerem a criação de outro ramo do direito para proteger a sociedade dos megariscos, como sugere a Escola de Frankfurt, a exemplo do direito de intervenção e do direito sancionatório. Ambos seriam administrativizados.

O impasse está criado e é preciso questionar se o Direito Penal está preparado para tutelar esses riscos, se é possível sua adequação ou se deve ser substituído por outro ramo do Direito.

JESUS, Damásio Evanglista de. Lei dos juizados especiais criminais anotada. São Paulo: Saraiva. 2. ed. 1996.

Sobre os sistema criminal brasileiro, Damásio Evangelista de Jesus escreve que valem-se disso os partidários do Movimento de Lei e Ordem, advogando medidas repressivas de extrema severidade. Preventivo, o Direito Penal de hoje descreve normas incriminadoras relacionadas a um sem-número de setores da atividade humana, pouco importando a natureza do fato, seja eleitoral, seja ambiental, seja referente ao consumo, seja referente à informática, etc. Atribui-se-lhe a tarefa de disciplinar os conflitos antes mesmo que sejam regulamentados pelas disciplinas próprias dessas áreas. Com isso, perde o caráter de intervenção mínima e última, de ser um direito fragmentário e subsidiário, adquirindo a natureza de um conjunto de normas de atuação primária e imediata. Não é mais a última razão. É a primeira. A sanção penal, por força disso, passa a ser considerada pelo legislador como indispensável para a solução de todos os conflitos sociais. É o remédio para todos os males. É a punição generalizada de Michel Foucault. Essa nova fisionomia da legislação penal brasileira produz efeitos negativos. A natureza simbólica e promocional das normas penais incriminadoras, num primeiro plano, causa a funcionalização do Direito Penal, transformando-o na mão avançada de correntes extremistas de política criminal. É o que está acontecendo no Brasil, onde movimentos de opinião partidária do princípio da lei e ordem pressionam os congressistas à elaboração de leis penais cada vez mais severas e iníquas. Sob outro aspecto, esse movimento faz com que o Direito Penal e o Direito Processual Penal percam a forma. Quanto ao estatuto penal, os tipos incriminadores passam a ser descritos com a inclusão de normas elásticas e genéricas, enfraquecendo os princípios da legalidade e da tipicidade. No afã de combater e extinguir o delito, filosofia penal vencida e ultrapassada, novas leis são incessantemente editadas. inflação legislativa. Esquizofrenia legislativa. Entram em vigor, na mesma data de sua publicação, leis a granel, umas sobre outras, malfeitas, sem técnica, formando um emaranhado confuso e contraditório. No campo do processo penal, encurta-se a distância entre a investigação e o procedimento instrutório, desaparecendo o limite entre as fases investigatória e judicial. Na área penitenciária, amontoam-se detentos na mais miserável promiscuidade. É o império do Movimento de Lei e Ordem, responsável pela funcionalização do Direito Penal e da perda da forma deste e do Direito Processual Penal[21].

Esta é a visão clássica do Direito Penal, fragmentário e subsidiário, onde se concedia relevo ao denominado controle social formal. Nos últimos anos, entretanto, passou a surgir, em aparições constantes, um novo Direito Penal brasileiro, já atuante em outros países: simbólico, promocional, excessivamente intervencionista e preventivo.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradutores: Ana Paula Zomer; Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

Sobre o garantismo penal, teoria que fundamenta o Direito Penal mínimo e comprova a incompatibilidade do direito penal do inimigo com o Estado Constitucional, Luigi Ferrajoli, responsável pela sua sistematização e difusão, expõe que a palavra “garantismo” pode ser compreendida sob três acepções: normativa, epistemológica e política[22].

Para Luigi Ferrajoli, segundo um primeiro significado, garantismo designa um modelo normativo de direito: precisamente, no que diz respeito ao Direito Penal, o modelo de estrita legalidade, próprio do Estado de Direito, que sob o plano epistemológico se caracteriza como um sistema cognitivo ou de poder mínimo, sob o plano político se caracteriza como uma técnica de tutela idónea a minimizar a violência e a maximizar a liberdade e, sob o plano jurídico, como um sistema de vínculos impostos à função punitiva do Estado em garantia dos direitos dos cidadãos. É,consequentemente, garantista todo sistema penal que se conforma normativamente com tal modelo e que o satisfaz efetivamente. Tratando-se de um modelo limite, dever-se-á, por outro lado, falar muito mais que de sistemas garantistas ou antigarantistas tout cort, de graus de garantismo; e, ademais, distinguir sempre entre o modelo constitucional e o efetivo funcionamento do sistema. Diremos, por exemplo, que o grau de garantismo do sistema penal italiano é decididamente elevado caso se considerem os seus princípios constitucionais, enquanto é posto em níveis baixíssimos, caso se considere a sua prática efetiva. E mensuraremos a adequação de um sistema constitucional, sobretudo pelos mecanismos de invalidação e de reparações idôneos, de modo geral, a assegurar efetividade aos direitos normativamente proclamados: uma Constituição pode ser muito avançada em vista dos princípios e direitos sancionados e não passar de um pedaço de papel, caso haja defeitos de técnicas coercitivas - ou seja, de garantias- que propiciem o controle e a neutralização do poder e do direito ilegítimo[23].

Acerca da acepção epistemológica, expressa que em um segundo significado, garantismo designa uma teoria jurídica da validade e da efetividade como categorias distintas não só entre si, mas, também, pela existência ou vigor das normas. Neste sentido, a palavra garantismo exprime uma aproximação teórica que mantém separados o ser e o dever ser no direito; e, alias, põe como questão teórica central, a divergência existente nos ordenamentos complexos entre modelos normativos (tendentemente garantistas) e práticas operacionais (tendentemente anti-garantistas), interpretando-a com a antinomia - dentro de certos limites fisiológica e fora destes patológica - que subsiste entre validade (e não efetividade) dos primeiros e efetividade (e invalidade) das segundas. Uma aproximação tal não é nem puramente normativa nem puramente realista: a teoria que esta é hábil a fundar, precisamente, é uma teoria da divergência entre normatividade e realidade, entre direito válido e direito efetivo, um e outro vigentes. Esta perspectiva crítica não é externa, ou política ou metajurídica, mas interna, científica e jurídica, no sentido de que assume como universo do discurso jurídico o inteiro direito positivo vigente, não lhe obliterando as antinomias, mas evidenciando-as e. assim, retirando a legitimidade, do ponto de vista normativo do direito válido, os contornos antiliberais e os momentos de arbítrio do direito efetivo. Ela é, de outra parte, incomum na ciência e na prática jurídica, em que um equivocado juspositivismo confirma frequentemente comportamentos dogmáticos acríticos e contemplativos no que diz respeito do direito positivo, e sugere ao jurista a tarefa de cobrir-lhe ou fazer-lhe enquadrar as antinomias, mais que explicitá-las e denunciá-las. E assim o é mais ainda na cultura política e no senso comum, onde prevalece frequentemente o obséquio ao direito vigente, qualquer que seja, e aos seus modos mesmo ilegais de funcionamento prático. Em contraste com as imagens edificantes dos sistemas jurídicos oferecidas a partir de suas representações normativas, e com a confiança a priori difusa da ciência jurídica na coerência entre normatividade e efetividade, a perspectiva garantista requer, ao contrário, a dúvida, o espírito crítico e a incerteza permanente sobre a validade das leis e de suas aplicações e, ainda, a consciência do caráter em larga medida ideal - e, em todo caso não realizado e a realizar - de suas mesmas fontes de legitimação jurídica[24].

Sobre o âmbito político do garantismo, assevera que este ponto de vista foi próprio do pensamento iluminista e da ciência da legislação, por este elaborada nas origens do moderno Estado de Direito; é comum, de outra parte, a toda perspectiva não conservadora, seja ela reformadora ou revolucionária. Mais em geral, a assunção de um ponto de vista externo ou político não encoberto sobre aquele interno ou jurídico forma o pressuposto de toda a doutrina democrática dos poderes do Estado, e não só dos poderes penais. Em um duplo sentido: porque o externo é o ponto de vista de baixo ou ex pane populi, e o interno é o ponto de vista do alto ou ex parte principis;e porque aquele exprime os valores extra ou meta ou pré-jurídicos fundadores, ou mesmo os interesses e as necessidades naturais - individuais e coletivas - cuja satisfação representa a justificação ou a razão de ser das coisas artificiais; que são as instituições jurídicas e políticas. Entretanto, o atrofiamento de um autónomo ponto de vista externo, ou pior, a sua explícita confusão com aquele interno, forma a conotação específica de todas as culturas políticas autoritárias, de vários modos comuns reunidos nas ideias de autofundação e de autojustificação do direito e do Estado corno valores em si: não meios, mas eles mesmos o fim. Acrescento que o ônus da justificação externa é idôneo para fundar doutrinas políticas que permitam justificações não absolutas ou totais, mas contingentes, parciais, a posteriori e condicionadas, não só, do Direito Penal, mas mais em geral do Direito e do Estado[25].

Para Luigi Ferrajoli, o garantismo penal pode ser compreendido sob três acepções: no plano normativo, designa um modelo normativo de direito, quanto ao direito penal, de extrema legalidade, próprio do Estado de Direito; no plano epistemológico se caracteriza como um sistema cognoscitivo ou de poder mínimo; e no plano político como uma técnica de tutela capaz de minimizar a violência e de maximizar a liberdade e no plano jurídico, como um sistema de vínculos impostos à potestade punitiva do estado em garantia dos direitos dos cidadãos. Em conseqüência, é garantista todo o sistema penal que se ajusta normativamente a tal modelo e satisfaz de maneira efetiva.

A teoria do garantismo penal propõe ao ordenamento jurídico penal uma redução dos mecanismos punitivos do Estado ao mínimo necessário, ao contrário do que pretendem os defensores do direito penal máximo, também chamado de “direito penal do inimigo”, justificando-se a intervenção penal somente em casos extremamente necessários para a proteção dos cidadãos.

Obviamente, todas as inovações derivadas do atropelo que a realidade mais recente impôs ao regramento criminal foram e persistem como objeto de discussões acaloradas, mas o que mais fomenta o debate científico é exatamente a necessidade de preservação do sistema de garantias que inspirou o direito penal moderno.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo utilizou a técnica de pesquisa bibliográfica, já que está centrado na análise dos textos jurídicos elaborados pela doutrina, nos documentos normativos e na jurisprudência, esta última apresentada a título de exemplos ilustrativos, com o intuito de justificar e fundamentar o tema a ser investigado, pois não se pode bem fundamentar um trabalho jurídico sem a apresentação dos conhecimentos construídos pela doutrina, além das leis ou decisões jurisprudenciais incidentes.

Tratou-se, de uma investigação do tipo qualitativo, que foi realizada de modo a percorrer todas as fases da leitura: exploratória, seletiva, analítica e reflexiva/interpretativa, possibilitando a formulação de um juízo de valor a respeito das obras estudadas.

A sociedade atual, muitas vezes motivada pela mídia, demanda um direito penal cada vez mais intervencionista para equilibrar a insegurança das relações complexas, quando o correto é minimizar o universo das normas punitivas.

No Brasil, faz-se o discurso do direito penal da intervenção mínima, mas este não se coaduna com a política criminal implantada.

Ao invés disso, parte-se para um destemperado processo de criminalização, no qual a primeira e única resposta estatal, em face de um conflito social, é o emprego do direito penal máximo e simbólico, cujo rigorismo severo acaba tornando sua aplicação ineficaz, muito embora seja difundido que somente criminalizando é possível a construção de um direito penal forte e eficaz, quando, na verdade, se pretende camuflar a ineficiência do poder público em vigiar o cumprimento do dever de concretizar-se o cuidado mínimo.

REFERÊNCIAS

DIAS, Jorge de Figueiredo. Direito Penal: parte geral - questões fundamentais - a doutrina geral do crime. Coimbra: Coimbra Editora, 2004.

FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradutores: Ana Paula Zomer; Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. Introducción a la criminología y al Derecho Penal. Valencia, Tirant lo Blanch, 1989.

JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Derecho Penal del enemigo. España: Civitas, 2003.

JESUS, Damásio Evanglista de. Lei dos juizados especiais criminais anotada. São Paulo: Saraiva. 2. ed. 1996.

SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María. La expansión del Derecho Penal: aspectos de la política criminal en las sociedades postindustriales. 2. ed., rev. e ampl. España: Civitas, 2001.

Notas:

[1] DIAS, Jorge de Figueiredo. Op. cit., p. 130-131.

[2] No essencial, a posição da teoria da função penal restrita aos direitos individuais corresponde às teorias de Winfried Hassemer e seu direito de intervenção, seguido por Felix Herzog, Cornelius Prittwitz, Francisco Muñoz Conde, Miguel Reale Junior, dentre outros, ou por Luiz Flávio Gomes e seu direito sancionador e outras vertentes similares.

[3] DIAS, Jorge de Figueiredo. Op. cit., p. 133 e 134.

[4] Teoria aderida e defendida por Jesús-María Silva Sánchez.

[5] “A adequação do Direito Penal à sociedade do risco implica por isso uma nova política criminal, que abandone a função minimalista de tutela de bens jurídicos e aceite uma função promocional e propulsora de valores orientadores da acção humana na vida comunitária; e uma nova dogmática jurídico-penal disposta a abandonar e substituir princípios até aqui tão essenciais como os da individualização da responsabilidade penal e a considerar a nova luz questões como as da causalidade, da imputação objectiva, do erro e da culpa, da autoria” (grifos do original) (DIAS, Jorge de Figueiredo. Op. cit., p. 128).

[6] JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Derecho Penal del enemigo. España: Civitas, 2003. p. 55-56.

[7] JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Op. cit., p. 16-17.

[8] JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Op. cit., p. 87-80..

[9] JAKOBS, Günther; MELIÁ, Manuel Cancio. Op. cit., p.93-94.

[10] DIAS, Jorge de Figueiredo. Op. cit., p. 126-127.

[11] DIAS, Jorge de Figueiredo. Op. cit., p. 127-128.

[12] DIAS, Jorge de Figueiredo. Op. cit., p. 128.

[13] DIAS, Jorge de Figueiredo. Op. cit., p. 131-132.

[14] DIAS, Jorge de Figueiredo. Op. cit., p. 142-143.

[15] HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. Introducción a la criminología y al Derecho Penal. Valencia, Tirant lo Blanch, 1989. p. 31.

[16] HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. Op. cit.,p. 37.

[17] HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. Op. cit.,p. 38.

[18] HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. Op. cit., p. 173.

[19] HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. Op. cit., p. 173.

[20] HASSEMER, Winfried; MUÑOZ CONDE, Francisco. Op. cit., p. 174-175.

[21] JESUS, Damásio Evanglista de. Lei dos juizados especiais criminais anotada. São Paulo: Saraiva. 2. ed. 1996. p. 1.

[22] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Tradutores: Ana Paula Zomer; Fauzi Hassan Choukr, Juarez Tavares e Luiz Flávio Gomes. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. p. 683 e ss.

[23] FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 684.

[24] FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 684-685.

[25] FERRAJOLI, Luigi. Op. cit., p. 685-686.

 

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