O Princípio da Dignidade Humana Como Critério Para a Construção da Decisão Jurídica


PorJeison- Postado em 10 abril 2013

Autores: 
PINHEIRO, Samir Araújo Mohana.

 

Matriz de qualquer sistema jurídico contemporâneo, civilizado, o princípio da dignidade da pessoa humana passa a figurar no meio jurídico como um piso vital mínimo, conforme afirma Fiorillo[1], razão pela qual não pode olvidar-se, o intérprete da lei, de analisar as circunstâncias atinentes ao caso em concreto sem o necessário confronto entre os valores discutidos, ou controvertidos, em face da dignidade humana.

Assim, visto por muitos como o mais importante fundamento constitucional insculpido em nossa Carta, o princípio, em comento, é, ou deveria ser, irradiador de todo o pensamento jurídico interpretativo, visto ser inconcebível seu afastamento por qualquer aplicador da lei, seja do Executivo, do Legislativo ou mesmo do Judiciário. A interpretação das normas dissociadas do princípio, em análise, nega um dos próprios fundamentos da República (Art. 1º, III da CF/1988).

Alexandre de Moraes, em sua obra: Constituição do Brasil Interpretada releva bem os valores extraídos da norma:

A dignidade da pessoa humana é um valor espiritual e moral inerente a pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável da própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindo-se em um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que apenas excepcionalmente possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem todas as pessoas enquanto seres humanos[2].

Como bem relevado pelo ínclito jurista, a dignidade da pessoa humana é um arcabouço mínimo de valores indissociáveis de qualquer ser humano, e que deve ser assegurado em qualquer estatuto jurídico. Nesse sentido, as interpretações/decisões que margeiam a mínima e necessária estima merecedora por todos os seres humanos não encontram ressonância no ordenamento jurídico pátrio.

Mais além vão os insignes Paulo Hamilton Siqueira Júnior e Miguel Augusto Machado de Oliveira, em seu brilhante trabalho: Direitos Humanos e Cidadania, ao proclamarem:

Ademais, tornou-se a dignidade, pela leitura do art. 1.º da nossa Carta Magna, fundamento primeiro da nação, pois a cidadania é forma de exercício da soberania. Soberania é requisito essencial do Estado, não havendo este último sem o fundamento do primeiro[3].

Ou seja, os autores desejam demonstrar que, mesmo o constituinte tendo consignado a dignidade da pessoa humano no inciso III, não se concebe a ideia de cidadania sem o mínimo vital, qual seja: a dignidade da pessoa humana, levando-se, assim, a concluir-se que a dignidade da pessoa humana, na ótica dos citados autores, é o primeiro fundamento da República Federativa do Brasil.

Assim, levando-se em consideração que o nosso trabalho terá por objeto a inclusão da dignidade da pessoa humana como critério para a decisão jurídica, presume-se que essa decisão não se trata apenas de sentenças ou de acórdãos judiciais, mas, também, daquelas oriundas dos Poderes Executivo e Legislativo.

            A decisão oriunda do Poder Executivo

            As políticas públicas, levadas a cabo pelo Poder Executivo, são ações governamentais que possuem como finalidade precípua a realização do bem comum, e, por isso, a forma de concretização dos Direitos Fundamentais.

            Para a concretização de políticas públicas voltadas ao bem comum, o administrador público possui, ao seu dispor, algumas prerrogativas importantes ao desempenho de sua função, dentre essas podemos destacar a discricionariedade, em que, balizado pelos critérios da oportunidade e conveniência da Administração, o gestor tomará a melhor decisão em benefício da coletividade.

            Contudo, os manuais de Direito Administrativo sempre consignam a célebre frase: “não confundir discricionariedade com arbitrariedade”. É cediço que, em virtude da tripartição do Poder Estatal de forma independente e harmoniosa, não é permitido a nenhuma das Instituições que detêm parcela do Poder Estatal (Executivo, Legislativo e Judiciário) interferir um sobre o outro, exceto quando houver flagrante ilegalidade ou ofensa ao texto constitucional.

            Com efeito, mesmo no uso poder discricionário, ou dos demais (regulamentar, hierárquico, disciplinar ou poder de polícia), não pode o administrador público afastar-se do primado basilar da dignidade humana.

Como exemplo, citamos os casos em que o Judiciário tem condenado o Estado ao fornecimento de medicamentos não disponibilizados pelo Sistema Único de Saúde. O fundamento é constitucional e trata-se de efetivação do direito à saúde assegurado ao cidadão. Esse direito fundamental é desdobramento do direito à vida e, portanto, o juiz promoverá a dignidade da pessoa humana quando reconhecer, acertadamente, que é dever do Poder Público assegurar a integralidade dos atendimentos prestados pelo nosso Sistema Único de Saúde, conforme preceitua os arts. 196 e seguintes do texto Magno.

Ademais, O Supremo Tribunal Federal, no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF – n. 45/2004, de relatoria do Ministro Celso de Melo, considerou que o Poder Judiciário pode intervir no mérito das políticas públicas quando configurada abusividade governamental, conforme ementa que transcrevemos:

Ementa: Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental. A questão da legitimidade constitucional do controle e da intervenção do poder Judiciário em tema de implementação de Políticas Públicas, quando configurada hipótese de abusividade governamental. Dimensão política da jurisdição constitucional atribuída ao Supremo Tribunal Federal. Inoponibilidade do arbítrio estatal à efetivação dos direitos sociais, econômicos e culturais. Caráter relativo da liberdade de conformação do legislador. Considerações em torno da cláusula da "reserva do possível". Necessidade de preservação, em favor dos indivíduos, da integridade e da intangibilidade do núcleo consubstanciador do "mínimo existencial". Viabilidade instrumental da argüição de descumprimento no processo de concretização das liberdades positivas (direitos constitucionais de segunda geração)[4].

É constitucionalmente assegurado ao Poder Judiciário, no exercício da judicatura, corrigir ações ou omissões do Poder Público, principalmente no âmbito do Poder Executivo, na busca da preservação, em favor dos indivíduos, da integridade e da intangibilidade do núcleo consubstanciador, do "mínimo existencial”, ou seja, aquilo que já foi citado como piso vital mínimo, ou mesmo: dignidade da pessoa humana.

Assim, não há restrições ao livre exercício do Poder Executivo, por parte Judiciário, no entanto, suas ações, apesar de discricionárias, serão sempre vinculadas a um mínimo ético, qual seja: a busca do bem comum, que possui como instrumento a realização de Políticas Públicas que devem estar sempre voltadas a conceder aos cidadãos condições de dignidade, tendo em vista que um Estado Democrático que se propõe a assegurar e a promover a dignidade humana deve eleger Políticas Públicas com a tônica delineada no aperfeiçoamento das condições digna do ser humano, e se assim não o fizer, estará passível de correição pelas vias legalmente possíveis.

            Decisões oriundas do Poder Legislativo

            As decisões oriundas do Legislativo, que mais intervém na vida dos cidadãos, é fruto de sua atividade típica: a legiferante.

            No entanto, ao elaborarem as normas que alimentam o ordenamento jurídico pátrio, os legisladores, seja na condição de constituinte derivado, ou seja, na elaboração de leis ordinárias e complementares, sempre estarão adstritos aos mandamentos da Carta da República, em virtude do sistema hierárquico das normas.

            O Processo Legislativo brasileiro, como bem delineado no art. 59 e seguintes da Constituição e nos regimentos internos das Casas Legislativas, possui uma série de procedimentos a serem observados com vista a garantir um processo sem máculas, culminando com uma lei justa e legítima.

            Assim, ainda durante o período de tramitação da pretensa norma, nas Casas Legislativas, elas são confrontadas com os ditames constitucionais, com vista a aferir o seu grau de compatibilidade com a Lei Maior, e o resultado do referido confronto é um só: aquelas normas que forem vista como incompatíveis com o Ordenamento Constitucional, não poderão, sequer, serem apreciadas pelos Plenários da Casa, sendo rejeitada ainda no âmbito das Comissões de Constituição e Justiça.

            Ou seja, no exercício da atividade legiferante o Poder Legislativo não pode dissociar-se do primado da dignidade da pessoa humana, devendo as leis, ou qualquer outro ato normativo elaborado e aprovado, no âmbito deste Poder, considerar os postulados mínimos de dignidade que possuem todos os seres humanos, sob pena de alçarem ao Ordenamento Jurídico uma norma incompatível com a Ordem Constitucional.

Outrossim, dado o caráter pétreo de que goza o princípio da dignidade da pessoa humana, em nosso Ordenamento Jurídico, prescindimos de maiores delongas acerca da possibilidade da referida norma ser uma Emenda a Constituição, visto não ser concebível, nem possível, ser acrescentada ao texto constitucional nenhuma norma que contrarie cláusulas pétreas.

            Decisões oriundas do Poder Judiciário

            As decisões judiciais não são legitimadas pelo só fato de ser resultado do confronto entre as provas e os argumentos levados ao processo pelas partes, com respeito ao processo legal, e com observância ao pleno exercício, em simétrica paridade, do contraditório e da ampla defesa, ou seja, pela sua formação discursiva e democrática.

            Alexandre de Moraes, acerca das decisões do Poder Judiciário infere que:

A legitimidade democrática do Poder Judiciário baseia-se na aceitação e respeito de suas decisões pelos demais poderes por ele fiscalizado e, principalmente, pela opinião pública, motivo pelo qual todos os seus pronunciamentos devem ser fundamentados e públicos[5].

Com efeito, as decisões judiciais não podem traduzir apenas a posição da parte que melhor apresentou seus argumentos, muitas vezes por está assistido por um causídico que possui o dom da oratória (o discurso não pode funcionar como instrumento de coação). Neste prisma, a decisão judicial perde legitimidade na medida em que se distancia do que é estabelecido pelas regras e princípios constitutivos do direito vigente, e aqui destacamos a dignidade da pessoa humana.

O Poder Judiciário, dentro do sistema organizacional do Estado Brasileiro, é a instituição que não pode desnudar-se, um só instante, na perseguição constante da realização da dignidade humana, isto devido ao fato de receber a parcela do Poder Estatal responsável pelo zelo e aplicabilidade das normas constitucionais e legais. De tal modo, o Poder Judiciário deve legitimar-se a cada dia, a cada sentença, a cada postura frente à sociedade em conflito e frente aos demais poderes do Estado.

O processo de construção de uma decisão judicial não pode, ou pelo menos não deveria, ser algo mecânico e frio. O magistrado, diante da querela deve, sem sombra de dúvidas, buscar a aplicabilidade da norma, no entanto, deve buscar uma análise sistêmica do ordenamento jurídico, não afastando-se do seu principal primado: a Justiça. O Magistrado Vicente de Paula Ataíde Júnior bem traduziu como deve comportar-se o magistrado no momento do decisum:

(...) Ele (o Juiz) entende que, acima de tudo, o julgamento que proferirá é capaz de influenciar vidas e que, portanto, a cognição judicial implica em conhecimento do ser humano que está relacionado com a lide[6].

Para uma decisão judicial justa e legítima, o magistrado deve imiscuir-se de uma carga de sensibilidade mínima, com a finalidade de que no exercício da função traduza aquilo o que realmente a sociedade anseia dele: realização de Justiça.

Ademais, dentre os métodos de interpretação das normas jurídicas, aquele que merece maior prestígio, no meu singelo modo de pensar, é o que ensina que os conteúdos normativos devem ser interpretados de maneira sistêmica, tendo em vista que o sistema jurídico é um todo indivisível que possui como finalidade única a realização de justiça.

Por fim, conclui-se, no ponto, que princípios gerais, como a dignidade da pessoa humana, devem ser variáveis sempre presentes na complexa equação da sentença, sob pena do seu resultado padecer de um insanável “erro de cálculo”.

Considerações Finais

            A dignidade da pessoa humana é variável, assim como consignado no início do texto, que deve está presente em todas as complexas equações que interpretam a lei, e a aplicam ao caso em concreto. 

            Na verdade, o princípio da dignidade da pessoa humana assume um caráter subjetivo, quando da interpretação/aplicação da norma, sendo, neste ponto, diferente da cidadania, que também deve ser considerada pelo aplicador da lei, contudo, é mais aferível, objetivamente, as condições que se reúnem para outorgar a pessoa a condição de cidadão. A cidadania, ao nosso modo de sentir, é o reconhecimento formal aos direitos da pessoa humana, já a dignidade humana, é aquele piso vital mínimo indissociável de qualquer ser humano, a bem da verdade, o reconhecimento da dignidade da pessoa humana como princípio inafastável do ordenamento jurídico pátrio, é a humanização do Direito, e a busca incessante de justiça.

            De tal modo, é fácil de perceber que a dignidade da pessoa humana não está presente apenas no art. 1º, III da CF, pois ela irradia-se por todo texto constitucional, e consequentemente por todas as normas infra-constitucionais. É inquestionável que faz parte da órbita dos direitos irradiados pela dignidade humana aqueles que tratam da saúde (arts. 196 a 200 da CF); do direito a educação, cultura e desporto (arts. 205 a 217 da CF); do direito ao planejamento familiar (art. 226, § 7º da CF ), e porque não dizer da decisão judicial fundamentada (art. 93, IX da CF), bem como os princípios da Administração Pública (art. 37, caput, da CF), visto tratarem-se de regras básicas de respeito aos cidadãos, que uma vez desrespeitadas possuem o condão de agredir o homem no seu âmago e naquilo que lhe é mais caro: sua dignidade mínima, enquanto pessoa humana.

            Assim, conclui-se ser inadmissível a interpretação de qualquer norma do nosso ordenamento jurídico que margeie o princípio da dignidade da pessoa humana, visto tratar-se de uma verdadeira caixa de ressonância que serve para legitimar as decisões oriundas do Estado, e, é a trilha por onde devem caminhar aqueles que perseguem a realização do justo.

Referências Bibliográficas

Fiorillo, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 64.

Moraes, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2005. p. 129.

SIQUEIRA JÚNIOR, Paulo Hamilton; OLIVEIRA, Miguel Augusto Machado de. Direitos Humanos e Cidadania. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 144.

SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Informativo n. 345, 26 a 30 de abril de 2004. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo345.htm>. Acesso em: 10.01.2011

ATAÍDE JÚNIOR, Vicente de Paula. O Novo Juiz e a Administração da Justiça: Repensando a Seleção, a Formação e a Avaliação dos Magistrados no Brasil. Curitiba: Juruá, 2006. p. 73.

Notas:

[1] Fiorillo, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 64.

[2] Moraes, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2005. p. 129.

[3] SIQUEIRA JÚNIOR, Paulo Hamilton; OLIVEIRA, Miguel Augusto Machado de. Direitos Humanos e Cidadania. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 144.

[4] SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Informativo n. 345, 26 a 30 de abril de 2004. Disponível em: <http://www.stf.jus.br/arquivo/informativo/documento/informativo345.htm>. Acesso em: 10.01.2011.

[5] MORAES, ob. cit. nota 2.

[6] ATAÍDE JÚNIOR, Vicente de Paula. O Novo Juiz e a Administração da Justiça: Repensando a Seleção, a Formação e a Avaliação dos Magistrados no Brasil. Curitiba: Juruá, 2006. p. 73.

 

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