O problema dos pressupostos epistemológicos do saber jurídico contemporâneo e a necessidade de sua superação


Porwilliammoura- Postado em 14 maio 2012

Autores: 
COBELLINI, Gisele

O saber jurídico tradicional traz dificuldades à operacionalização governamental da gestão estatal dos interesses sociais, revelando a falta de adequação dos mecanismos tradicionais de prestação de tutela jurisdicional oficial em face dos novos atores sociais e políticos que se embatem no cenário da globalização.

É necessário descobrir as estratégias ineficazes dos discursos jurídicos sustentados por juristas desconectados de seu tempo para tentar colocar o saber jurídico em meio aos atuais saberes conflitantes.

Considerações preliminares sobre a ciência jurídica contemporânea

O direito se expressa através de códigos, leis, constituições, ou seja, normas que regem a vida do indivíduo sujeito a deveres e direitos, reconhecido pela comunidade e protegido pelas instituições de que é integrante, inclusive pelo Estado. Assim, a sociedade encaminha seu processo de desenvolvimento, enfrentando delimitações inscritas pelas convenções forjadas em leis.

Compreender o direito significa conhecer as relações sociais de determinadas conjunturas; observar como se cria as leis; quais seus pressupostos e referências; quais os fatores que influenciam o seu surgimento e alcance; enfim, como se dá a constituição dos códigos de condutas e comportamentos sociais, dos quais se constitui a forma de interpretar as relações que a ciência jurídica mantém com a realidade que a circunda.

Com o passar dos tempos as concepções de mundo e de homem se desenvolveram  o que permitiu a análise histórica da evolução das investigações filosóficas e políticas, influenciando no surgimento das ciências sociais e humanas como proposta científica no século XVIII.

Nos séculos XII a IX a.C. a cultura grega se estruturou e se organizou através da mitologia, na qual o homem não era considerado responsável pelo desenvolvimento da sua vida, mas sim era jogado numa existência repleta de desafios que devia ordenar ou organizar para que pudesse viver razoavelmente. A mitologia transmite um dualismo estrutural, ou seja, o mundo real, físico ou social, que opõe-se ao mundo do sagrado que, mitologicamente, também era o real, apesar de transcendente. 

Com as transformações ocorridas, os séculos XVI e XVII viram-se marcados pelo Renascimento, numa tentativa de romper com valores e tradições do passado. No Renascimento houve um pensar crítico que resgatou a dimensão do homem a partir da natureza, produzindo um sensível progresso na ciência. Iniciando a fase da pesquisa, contestação e experimentação.

Dessa forma, o século XVIII foi levado a profundas transformações. A ordem absolutista, feudal e aristocrática desaparecia frente à afirmação de uma nova categoria social no cenário econômico e político, determinando uma nova ordem de valores e princípios, todos exaltando a figura do homem como indivíduo, e imerso em um mercado de capitais garantidor de sua felicidade e história.

O iluminismo pregava uma era em que a liberdade de oportunidades substituísse os privilégios hereditários, fundando-se no racionalismo, no antiabsolutismo, no anticlericalismo, no liberalismo e no Deísmo.

Assim, surgem algumas figuras teóricas como Hobbes, Locke, Rosseau, Montesquieu, etc. Também avultam preocupações teóricas advindas de alguns empresários com ideias socializantes sobre o mercado industrial e comercial emergente, os "Socialistas Utópicos", como George Owem, Charles Fourrier, entre outros.

Em meio a esse quadro cultural, o que se pode perceber é o florescer da filosofia positivista que em seguida a Augusto Comte se lançou como base de criação das ciências sociais, e, dentre elas, a ciência do Direito.

A ciência da sociedade pertence ao sistema das ciências naturais, que por sua vez, alcançou um estado fixo e homogêneo, no qual as ciências da natureza e do homem não passam de ramos de um mesmo tronco.

A ideia de que era impossível atingir as causas imanentes e criadoras dos fenômenos, aceitando os fatos e suas relações recíprocas como único objeto da investigação científica, atingiu o saber jurídico deste tempo.

Significa dizer que a burguesia, enquanto categoria social ascendente e com um projeto de poder e de sociedade nova vai propor valores e princípios informativos das associações civis pautados pela ordem do trabalho, da acumulação de riquezas e do individualismo, gerando a filosofia política e animando a organização do mercado econômico e das relações intersubjetivas, prometendo uma sociedade de opulência, ao mesmo tempo em que excluíram grande parcela dos indivíduos desta sociedade.

Portanto, a sociedade constituiu-se de uma ordem natural que segue leis invariáveis. No campo da filosofia política, só existe ordem e acordo possíveis submetendo os fenômenos sociais às leis naturais invariáveis. Assim como ocorria com as normas jurídicas, transformando os órgãos jurisdicionais em operadores que deveriam subsumir os fatos sob aquelas fórmulas gerais e colocar em ação a mecânica da lógica dedutiva.

Para Cruet, os juristas franceses deste tempo acreditavam que o direito era resumido na lei escrita e que o trabalho do advogado e do magistrado é desprender os fios das demandas e ligar seus elementos às regras estabelecidas pelas leis, isto é, resolver os problemas. Isso implicará a demarcação de tendências que dominaram o século XIX e transformaram o saber jurídico ora em dogmática jurídica, enquanto ciência positiva da norma, ora em sociologia, e ora em psicologia da vida do direito.

Com a vinda do Código Civil Francês, em 1804, percebe-se a exaltação do espírito racionalista-matemático que inaugura um dos períodos mais ferrenhos de dogmatismo jurídico, o da Escola da Exegese, que sustentava que os axiomas sobre decisão judicial não eram sempre racionais e válidos. Portanto, mesmo que os textos legais variem de Estado para Estado ou de época para época, suas conseqüências devem ser impostas de maneira uniforme, graças à exegese e à dedução.

Qualquer que seja o obstáculo dessa identificação do direito a um sistema dedutivo, tais como obscuridade, o silêncio ou s insuficiência da lei, seriam superados pela doutrina e jurisprudência, centralizando soluções científicas para as dificuldades.

Conforme Roberto Vernengo a escola exegética não só presumi a tese ontológica de que o direito é um modo de vontade que identifica a vontade de algum legislador real, identificando a exegese como paleografia (investigação de documentos escritos, dos quais se supõe descansar a versão original do texto obscuro a desvendar).

A concepção que orienta a escola exegética é baseada na ideia de que as leis se amoldam a um universo significativo e auto-suficiente, do qual se pode concluir, por atos de derivação racional, soluções para os conflitos jurídicos, supondo a figura de um juiz neutro. A interpretação de lei é, para a escola exegética, um ato de conhecimento e não de vontade.   

Disso surge a crença num modelo de direito que rende culto ao formalismo, ao valor segurança, em prejuízo da equidade.

Podemos afirmar que a escola exegética corresponde ao modelo da ideologia burguesa, construindo um sistema jurídico com segurança nas arbitrariedades do absolutismo e feudalismo que a precedeu, pondo-se como fiadora do desenvolvimento do capital nascente. Encontrando ainda uma crença ideologizada na falácia da autoridade.

A modalidade de raciocínio, vigente nos dias de hoje, leva a uma série de vícios e costumes no que tange ao enfraquecimento das demandas sociais e populares que chegam aos tribunais. Porém, importante é avaliar o desenlace de formas interpretativas e operativas do direito enquanto saber, que romperam com o paradigma da Escola da Exegese. Trata-se de uma concepção mecânica da interpretação das leis que permite ao juiz se esconder atrás da vontade do legislador.

Ao contrário de um sistema significativamente hermético, o direito passa a ser considerado, como um meio pelo qual o legislador se serve para alcançar certos fins e promover valores, indicando regras de conduta que digam o que é permitido ou proibido para alcançar esses resultados.

Em decorrência desses fatores, os juízes não poderão contentar-se com deduções dos textos legais, precisam observar e interpretar de acordo com a vontade do legislador (o qual guiou a redação), pois o que conta é o fim perseguido.

A cultura jurídica Ocidental vai encontrar, a partir destas considerações, um espaço institucional de procriação no âmbito da Teoria Geral do Direito, recomendando, a construção de uma linguagem e conhecimento rigoroso à ciência do direito. Dessa maneira pode se estabelecer o movimento do pensamento jurídico contemporâneo voltado à criação de um saber que garanta a certeza e segurança jurídica a seus operadores: o saber dogmático/ dogmatizado/ dogmatizante.