Os crimes previstos contra os portadores de deficiências


PorJeison- Postado em 03 dezembro 2012

Autores: 
GOULART, Henrique Gouveia de Melo.

 

Introdução

 

O objetivo deste trabalho é o de analisar as diversas modalidades de crimes que podem ser praticados em face de portadores de necessidades especiais, destacando, principalmente, a vulnerabilidade da vítima em face do agressor.

 

Em 25 de outubro de 1989 foi publicada a Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989, que disciplinou o apoio às pessoas portadoras de deficiência e sua respectiva integração social, além definir crimes.

 

Esta lei só foi regulamentada mais de 10 (dez) anos depois, por meio do Decreto nº 3.298, de 20 de dezembro de 1999. Este Decreto, além de conceituar a deficiência, a deficiência permanente e a incapacidade[1], descreve as situações em que a pessoa é considera portadora de deficiência, senão vejamos:

 

Art. 4o É considerada pessoa portadora de deficiência a que se enquadra nas seguintes categorias:

 

I - deficiência física - alteração completa ou parcial de um ou mais segmentos do corpo humano, acarretando o comprometimento da função física, apresentando-se sob a forma de paraplegia, paraparesia, monoplegia, monoparesia, tetraplegia, tetraparesia, triplegia, triparesia, hemiplegia, hemiparesia, ostomia, amputação ou ausência de membro, paralisia cerebral, nanismo, membros com deformidade congênita ou adquirida, exceto as deformidades estéticas e as que não produzam dificuldades para o desempenho de funções; (Redação dada pelo Decreto nº 5.296, de 2004)

 

II - deficiência auditiva - perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais, aferida por audiograma nas freqüências de 500HZ, 1.000HZ, 2.000Hz e 3.000Hz; (Redação dada pelo Decreto nº 5.296, de 2004)

 

III - deficiência visual - cegueira, na qual a acuidade visual é igual ou menor que 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; a baixa visão, que significa acuidade visual entre 0,3 e 0,05 no melhor olho, com a melhor correção óptica; os casos nos quais a somatória da medida do campo visual em ambos os olhos for igual ou menor que 60o; ou a ocorrência simultânea de quaisquer das condições anteriores; (Redação dada pelo Decreto nº 5.296, de 2004)

 

IV - deficiência mental – funcionamento intelectual significativamente inferior à média, com manifestação antes dos dezoito anos e limitações associadas a duas ou mais áreas de habilidades adaptativas, tais como:

 

a) comunicação;

 

b) cuidado pessoal;

 

c) habilidades sociais;

 

d) utilização da comunidade;

 

d) utilização dos recursos da comunidade; (Redação dada pelo Decreto nº 5.296, de 2004)

 

e) saúde e segurança;

 

f) habilidades acadêmicas;

 

g) lazer; e

 

h) trabalho;

 

V - deficiência múltipla – associação de duas ou mais deficiências.

 

Esclarecidos os pontos iniciais, passemos então ao estudo dos crimes previstos na Lei nº 7.853/89 e, na sequência, outros crimes previstos no próprio Código Penal Brasileiro.

 

Dos crimes previstos na Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989

 

A Lei nº 7.853/89, de maneira peculiar, trouxe uma sistemática diferente daquela comumente empregada em outras leis definidoras de infrações penais, já que prevê a pena no caput do artigo, antes mesmo da definição da conduta delituosa.

 

Seu artigo 8º possui a seguinte redação:

 

Art. 8º Constitui crime punível com reclusão de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa:

 

I - recusar, suspender, procrastinar, cancelar ou fazer cessar, sem justa causa, a inscrição de aluno em estabelecimento de ensino de qualquer curso ou grau, público ou privado, por motivos derivados da deficiência que porta;

 

II - obstar, sem justa causa, o acesso de alguém a qualquer cargo público, por motivos derivados de sua deficiência;

 

III - negar, sem justa causa, a alguém, por motivos derivados de sua deficiência, emprego ou trabalho;

 

IV - recusar, retardar ou dificultar internação ou deixar de prestar assistência médico-hospitalar e ambulatorial, quando possível, à pessoa portadora de deficiência;

 

V - deixar de cumprir, retardar ou frustrar, sem justo motivo, a execução de ordem judicial expedida na ação civil a que alude esta Lei;

 

VI - recusar, retardar ou omitir dados técnicos indispensáveis à propositura da ação civil objeto desta Lei, quando requisitados pelo Ministério Público.

 

Esses delitos podem ser classificados como formais, eis que independem de algum resultado para sua consumação. São também crimes dolosos, eis que não previsão para a modalidade culposa.[2]

 

No que se refere à tentativa, esta é admitida na grande maioria das condutas. A exceção fica por conta dos chamados crimes omissivos próprios, ou seja, aqueles que se consumam instantaneamente. É o caso, exemplificadamente, das condutas “deixar de prestar assistência – inciso IV”, “deixar de cumprir – inciso V” e “omitir dados – inciso VI”.

 

Em todas as modalidades delitivas é cabível a suspensão condicional do processo, nos termos do artigo 89 da Lei nº 9.099/95, verbis:

 

Art. 89. Nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a um ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público, ao oferecer a denúncia, poderá propor a suspensão do processo, por dois a quatro anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena. (sem grifos no original)

 

Por fim, todos os crimes são de ação penal pública incondicionada[3].

 

Dos crimes previstos no Código Penal Brasileiro

 

Além das condutas previstas na Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989, o Código Penal também elenca uma série de delitos cujas vítimas são pessoas portadoras de deficiência.

 

O primeiro deles está no capítulo “DAS LESÕES CORPORAIS”. Trata-se do § 11º, que remete ao § 9º, ambos do artigo 129:

 

Lesão corporal

 

Art. 129. Ofender a integridade corporal ou a saúde de outrem:

 

Pena - detenção, de três meses a um ano.

 

(...)

 

§ 9o Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade: (Redação dada pela Lei nº 11.340, de 2006)

 

(...)

 

§ 11. Na hipótese do § 9o deste artigo, a pena será aumentada de um terço se o crime for cometido contra pessoa portadora de deficiência. (Incluído pela Lei nº 11.340, de 2006) (sem grifos no original)

 

Nos CRIMES CONTRA A HONRA, os delitos estão assim dispostos:

 

Calúnia

 

Art. 138 - Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime:

 

Pena - detenção, de seis meses a dois anos, e multa.

 

Difamação

 

Art. 139 - Difamar alguém, imputando-lhe fato ofensivo à sua reputação:

 

Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.

 

Injúria

 

Art. 140 - Injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro:

 

Pena - detenção, de um a seis meses, ou multa.

 

(...)

 

§ 3o Se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência: (Redação dada pela Lei nº 10.741, de 2003)

 

Pena - reclusão de um a três anos e multa. (Incluído pela Lei nº 9.459, de 1997)

 

Disposições comuns

 

Art. 141 - As penas cominadas neste Capítulo aumentam-se de um terço, se qualquer dos crimes é cometido:

 

(...)

 

IV - contra pessoa maior de 60 (sessenta) anos ou portadora de deficiência, exceto no caso de injúria. (Incluído pela Lei nº 10.741, de 2003) (sem grifos no original)

 

Outras duas hipóteses estão previstas nos CRIMES CONTRA A ORGANIZAÇÃO DO TRABALHO:

 

Frustração de direito assegurado por lei trabalhista

 

Art. 203 - Frustrar, mediante fraude ou violência, direito assegurado pela legislação do trabalho:

 

Pena - detenção de um ano a dois anos, e multa, além da pena correspondente à violência. (Redação dada pela Lei nº 9.777, de 29.12.1998)

 

(...)

 

§ 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço se a vítima é menor de dezoito anos, idosa, gestante, indígena ou portadora de deficiência física ou mental. (Incluído pela Lei nº 9.777, de 29.12.1998)

 

Aliciamento de trabalhadores de um local para outro do território nacional

 

Art. 207 - Aliciar trabalhadores, com o fim de levá-los de uma para outra localidade do território nacional:

 

Pena - detenção de um a três anos, e multa. (Redação dada pela Lei nº 9.777, de 29.12.1998)

 

(...)

 

§ 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço se a vítima é menor de dezoito anos, idosa, gestante, indígena ou portadora de deficiência física ou mental. (Incluído pela Lei nº 9.777, de 29.12.1998) (sem grifos no original)

 

Por fim, o Código Penal tipifica as condutas descritas como CRIMES CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL, a saber:

 

Estupro de vulnerável (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

 

Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

 

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

 

§ 1o Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

 

Favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual de vulnerável (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

 

Art. 218-B. Submeter, induzir ou atrair à prostituição ou outra forma de exploração sexual alguém menor de 18 (dezoito) anos ou que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, facilitá-la, impedir ou dificultar que a abandone: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

 

Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 10 (dez) anos. (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

 

Tráfico internacional de pessoa para fim de exploração sexual (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)

 

Art. 231. Promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de alguém que nele venha a exercer a prostituição ou outra forma de exploração sexual, ou a saída de alguém que vá exercê-la no estrangeiro. (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)

 

Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos. (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)

 

(...)

 

§ 2o A pena é aumentada da metade se: (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)

 

(...)

 

II - a vítima, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato; (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

 

Tráfico interno de pessoa para fim de exploração sexual (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)

 

Art. 231-A. Promover ou facilitar o deslocamento de alguém dentro do território nacional para o exercício da prostituição ou outra forma de exploração sexual: (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)

 

Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos. (Redação dada pela Lei nº 12.015, de 2009)

 

(...)

 

§ 2o A pena é aumentada da metade se: (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009)

 

(...)

 

II - a vítima, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato; (Incluído pela Lei nº 12.015, de 2009) (sem grifos no original)

 

Conclusão

 

As políticas de apoio ao portador de deficiência são uma realização da chamada igualdade material, que se traduz no jargão “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida em que eles se desigualam[4]”.

 

Na seara criminal, é ainda mais patente essa preocupação com a vulnerabilidade da vítima. As agravantes ou causas de aumento de pena refletem uma especial cautela para com os portadores de deficiências.

 

Finalizamos, assim, com as belas palavras do Professor Eudes Quintino de Oliveira Júnior[5]

 

Assim, direta ou indiretamente, a vulnerabilidade vai ingressando no Código Penal e exigindo um espaço para explorar sua dimensão. Muitas são as necessidades e fragilidades do homem que vão surgindo de acordo com a utilização da inteligência racional. Assim, o indivíduo é visto como um bem que deve ser conservado para a própria perpetuação da humanidade. As imperfeições fazem parte da natureza humana, mas se apresentam como obstáculos a serem superados. Do contrário, não se justifica a grandiosidade do ser humano. A sabedoria, a experiência, a solidariedade são atributos que se desenvolvem no homem justamente para buscar o aprimoramento de sua existência. A lei, em razão de seu espírito cogente, apresenta-se como um espaço hábil para o desenvolvimento das práticas que buscam a valorização do homem e sua realização na sociedade em que vive. Salienta o filósofo argentino BLANCO a respeito da definição de homem no sentido de “animal racional”:

 

“Por conseguiente la definicion del hombre como “animal racional” nos es empobrecedora del hombre, porque no quiere decir que lo único que hace el hombre es “pensar ideas”, sino que ló definimos como racionalidad es la nota fundante que hace posibles todas las demás, que vienen a ser fundadas. Entonces, si yo quiero dar la definición ideal – por género y diferencia específica -, bastará com que exprese la nota fundante: la racionalidad, sin que tenga que agregar las notas o propiedades que se derivan de ella, lo que sucederia si definiera al hombre como “animal ético”, “animal religioso”, o “animal social”.[6]

 

Notas:

[1] Art. 3o Para os efeitos deste Decreto, considera-se:

I - deficiência – toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano;

II - deficiência permanente – aquela que ocorreu ou se estabilizou durante um período de tempo suficiente para não permitir recuperação ou ter probabilidade de que se altere, apesar de novos tratamentos; e

III - incapacidade – uma redução efetiva e acentuada da capacidade de integração social, com necessidade de equipamentos, adaptações, meios ou recursos especiais para que a pessoa portadora de deficiência possa receber ou transmitir informações necessárias ao seu bem-estar pessoal e ao desempenho de função ou atividade a ser exercida.

[2]Parágrafo único do Art. 18 do Código Penal – “Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente”.

[3]Art. 100 do Código Penal – “A ação penal é pública, salvo quando a lei expressamente a declara privativa do ofendido”.

[4]Esta definição de igualdade que predomina em toda doutrina nacional, decorre de discurso escrito por Rui Barbosa para paraninfar os formandos da turma de 1920 da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, em São Paulo. Intitulado Oração aos Moços, onde se lê: "A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real".

[5]O CONCEITO DE VULNERABILIDADE NO DIREITO PENAL – disponível em http://www.unorp.br/

downloads_blogs/o_conceito_de_vulnerabilidade.pdf. Acesso em 27 nov 2012.

[6]BLANCO, Guilermo P. Curso de antroplogia filosófica. Buenos Aires: Educa, 2004, p.372, apud OLIVEIRA JÚNIOR, Eudes Quintino de, Op. Cit.

 

Disponível em: http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.40930&seo=1