Por uma interpretação aberta do Direito


Porbarbara_montibeller- Postado em 27 março 2012

Autores: 
GOMES, Matheus Barreto

RESUMO
O presente trabalho tem como escopo demonstrar que o Direito, enquanto elemento cultural, está atrelado à condição humana, bem como que todo o perceber humano se dar por vias da interpretação. A partir daí, evidenciar-se-á que a percepção do fenômeno Jurídico pela sociedade não prescinde do processo interpretativo, mas, também, que essa mesma interpretação do Direito e, por consecutivo, sua concretização, não pode mais ser vista como uma atividade exclusiva de parcela da sociedade, qual seja, dos operadores do Direito, mas, sim, deve ser atribuída a toda comunidade social. Ao cabo, assentes nas premissas traçadas, demonstrar-se-á como a maior amplitude dos intérpretes do Direito contribui para o fortalecimento da democracia e consolidação de uma sociedade aberta.

Palavras-chave: Direito, Hermenêutica, Interpretação, Democracia, Sociedade Aberta.

RÉSUMÉ
Le présent travail a pour but de démontrer que le Droit, en tant quélément culturel, est lié à la condition humaine, bien aussi que toute la perception humaine se donne par les voies de linterprétation. À partir de cela, on mettra en évidence que la perception du phénomène Juridique par la société ne se passe pas du processus interprétatif, mais aussi que cette même interprétation du Droit et, par conséquent, sa concrétisation, ne peut plus être aperçue comme une activité exclusive dune partie de la société, cest-à-dire, des opérateurs du Droit, mais doit plutôt être attribuée à toute la communauté sociale. À la fin, selon les prémisses tracées, on démontrera comment la plus grande partie des interprètes du Droit contribue pour le renforcement de la société ouverte.

Mots-clefs : Droit, Herméneutique, Interprétation, Démocratie, Société Ouverte.

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO; 2 O DIREITO E SEUS INTÉRPRETES. 2.1 A INTERPRETAÇÃO E A CONDIÇÃO HUMANA; 2.2 A SOCIEDADE E SEUS INTÉRPRETES; O DIREITO E O HOMEM; 3 HERMENÊUTICA E CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO; 3.1 EVOLUÇÃO HERMENÊUTICA DO DIREITO; 3.2 SOCIEDADE ABERTA E INTERPRETAÇÃO DO DIREITO; 4 ABERTURA INTERPRETATIVA E DEMOCRACIA; 4.1 A LEGITIMAÇÃO DEMOCRÁTICA PELA INTERPRETAÇÃO ABERTA DO DIREITO; 4.2 A INTERPRETAÇÃO ABERTA EM MOVIMENTO 5 CONCLUSÕES; REFERÊNCIAS
                                                               

1INTRODUÇÃO

O Direito é um fenômeno elaborado e percebido pelo logos.  Definitivamente, não é o Direito um fenômeno natural captado pelos sentidos do Homem, mas, sim, trata-se de uma instituição que não prescinde da inteligência humana, da racionalidade, sendo, pois, um elemento cultural, haja vista ser criado pelo Homem e para o Homem.

Enquanto elemento cultural, o Direito é multifacetário e cambiante, o que não faz soar tão despropositado a seguinte afirmação: O Direito não é, está sendo. Fenômeno fluído, o Direito serviu e foi servido pela Humanidade em sua escalada civilizatória. Sob este aspecto é analisado sob vários prismas, o que é visto nas escolas doutrinárias que criam a análise econômica do Direito; a análise sociológica; a análise jurídica dentre outras. O que não percebem, todavia, é que tratam do mesmo fenômeno, analisando-o sob um ponto de vista, é um olhar viciado sob uma estrutura que não é senão um amálgama cultural de per si.

O Direito é linguagem que encontra-se por toda parte. O pensamento Humano busca elaborar uma representação dessa linguagem e o faz por meio da interpretação. Dito isto, a pergunta que surge ao leitor é: quem deve interpretar o Direito? Pessoas escolhidas por um consenso? Pessoas escolhidas por critérios meritórios? Uma pessoa? Alguma pessoa? Todas as pessoas? Ninguém?

Em um Estado que se diz Democrático, a interpretação do Direito, algo que reflete diretamente na dinâmica da sociedade, vez que esse, como será demonstrado, só existe após ser interpretado, deve ser pluralista. De modo que, a legitimação da interpretação do Direito só será alcançada se no procedimento concretizador do mesmo se buscar, de forma ótima, abarcar todos os pontos de vista da sociedade regulada por ele.

Neste contexto, verifica-se que a Democracia, também elemento cultural, é cambiante e, dessa forma, não deve ser vista mais como a tirania da maioria, mas, sim, um mecanismo de respeito às posições das minoria que expõe suas vontades através do processo.

2. O DIREITO E SEUS INTÉRPRETES

2.1 A INTERPRETAÇÃO E A CONDIÇÃO HUMANA

O ser Homem implica, necessariamente, em ser intérprete. Desse modo, perante o mundo que se apresenta outra postura não é dada ao ser humano senão a de um constante interpretar.

Interpretam-se as coisas, os fenômenos naturais, os outros seres, bem como as entidades culturais criadas pelo homem, dentre as quais, identifica-se o Direito.

Neste sentido, são as palavras de Manoel Jorge e Silva Neto (2001, p.66):

A interpretação é um plano preconcebido de ação do homem tendente a modificar a realidade circundante através do pensamento, que se constitui um pressuposto para o agir. O pensamento, precedido pela alteração (estado conflitual em que elementos externos “roubam” a capacidade de interiorização do ser humano), desencadeador, por sua vez, da ação, configura fenômeno que não pode ser extirpado da natureza humana, porque o homem só é homem porque age após consumar a contemplação, o pensamento.

A idéia de que o Homem percebe o mundo por meio da interpretação é corroborada, notadamente, por Descartes (2006, p. 42) que atribui ao pensar e, pois, à capacidade de interpretar, a condição de essência do ser humano, eis suas palavras: “Por aí compreendi que eu era uma substância cuja essência ou natureza consiste exclusivamente no pensar e que, para ser, não precisa de nenhum lugar nem depende de nada material”.

Completa as lições de Descartes José Ortega y Gasset (1960, p. 86), vez que para este, deve-se ensimesmar-se ou, como quer aquele: pensar, mas, não só isto, deve-se agir após o pensar, pois o Homem está inserido em uma realidade circundante da qual não pode sés esquivar, eis suas lições:

Não a vida não é existir só a minha mente, existirem as minhas idéias: é totalmente o contrário. A partir de Descartes o homem ocidental tinha ficado sem mundo. Mas viver significa ter de ser fora de mim, no absoluto fora que é a circunstância ou o mundo: é ter de querendo ou não, enfretar-me e chocar-me, constantemente, incessantemente com quanto integra esse mundo: minerais, plantas, animais, os outros homens. Não há remédio. Tenho de atracar-me com isso tudo.

Outra questão que deve ficar bem definida diz respeito ao fato de que o interpretar, fenômeno indissociável do ser humano se dá de formas variadas, não é possível afirmar a existência de uma interpretação correta para cada fenômeno que se apresenta ao ser humano.  É preciso ficar claro que, o método e o resultado da interpretação são resultantes das variáveis pré-compreensões de cada um.

Os valores morais, sociais, religiosos, éticos, dentre outros, incorporados por cada pessoa são consideráveis no processo interpretativo. Não é dado mais, em tempos correntes, buscar uma extirpação valorativa do pensar; contemplar; agir; interpretar.

O filósofo austríaco Karl Popper (1987, p. 186) compartilha da posição aqui defendida de que o interpretar é, senão, o mesmo que retirar um significado à partir de um lançar de olhar próprio e valorado, eis suas palavras: “A interpretação é principalmente um ponto de vista, cujo valor reside em sua fertilidade, em sua força de lançar luz sobre o material histórico, para levar-nos a encontrar novo material e para ajudar-nos a racionalizá-lo e unificá-lo”.

Cientes desse processo imanente ao Homem, outros filósofos, se posicionaram sobre a questão da interpretação e, conseqüente, busca da verdade, ainda que sapientes que se trata esta última de uma estrutura de contornos abertos e variáveis e por que não inalcançável.

Para Martin Heidegger (2006) a angústia é uma situação existencial do ser humano. É ela a resultante do processo interpretativo. É por meio dela que o Ser pode alcançar o dasein. Trata-se do momento em que este, despido de todos os seus estados de espírito – valores, pré-compreensões -, se vê na possibilidade de encontrar a verdade.

Outro filósofo a tratar da questão da interpretação fora Edmund Husserl (2006). Este, por sua vez, elucida que o ser humano está cercado por fenômenos, bem como, que estes para serem percebidos não prescindem de interpretação.

Nesta esteira, afirma que compete ao indivíduo/intérprete, feita a observação dos fenômenos, buscar o “eidos” daquele. Esse processo se dá por um método que o filósofo denomina de redução fenomenológica que é a “limpeza” da palavra representativa do fenômeno até se chegar à clareza desta, a sua essência, ao seu “eidos”.

Ressalte-se que o processo de redução fenomenológica não se dá de forma equânime, o que implica dizer que o “eidos” de um intérprete, muita vez, é o fenômeno de outro. A limpeza da palavra – processo interpretativo – já é um processo amplamente arraigado com os valores daquele que o faz[1].

Não por outro motivo, fácil concluir que o Direito, suas normas, seus princípios, tudo o mais que constitui sua estrutura estão postos empiricamente – textos jurídicos – ou metafisicamente – valores - no mundo, são, pois, na acepção de Husserl (2006) fenômenos passíveis de interpretação.

Observa-se que o processo interpretativo em Heidegger (2006) tem como última etapa o encontro com a verdade, já com Husserl (2006) a etapa final reside no “eidos”. Sucede que, tanto o este quanto aquele são instáveis e cambiantes.

É da maior importância perceber, ainda, que o processo interpretativo não é fechado, nada que já fora interpretado resta impassível de interpretação, até mesmo pelo ser que primeiro o interpretou. Não se pode olvidar que a interpretação é um processo coletivo de criação. Desde que o primeiro homem conseguiu ensimesmar-se e interpretar um fenômeno à partir daí esse fenômeno passa a ser interpretável por todos.

Ainda que soe como clichê, cabe, neste momento, a máxima de que: não há nada no mundo que não seja passível de interpretação, ou, mesmo, reinterpretação.

Ao tratar do tema Karl Popper (2004, p.13) assim asseverou:

A cada passo adiante, a cada problema que resolvemos, não só descobrimos problemas novos e não solucionados, porém, também, que aonde acreditávamos pisar em solo firme e seguro, todas as coisas são, na verdade, inseguras e em estado de alteração contínua

Não há, pois, como queriam os positivistas a garantia e a segurança do conceito único. A interpretação é um processo dinâmico, dialético, um constante ir e vir, a condição do homem é de incerteza substancial, não existe aquisição humana que seja firme.

A lição de José Ortega y Gasset (1960, p. 65) ilustra bem o que aqui pretende-se afirmar:

 Se a condição do homem é, pois, incerteza substancial, não existe aquisição humana que seja firme. “mesmo aquilo que nos parece mais conseguido e consolidado pode desaparecer em poucas gerações. Isso que chamamos “civilização”, - todas essas comodidades físicas e morais, todos esses descansos, todos esses abrigos, todas essas virtudes e disciplinas já “habitualizadas” com que constumamos contar – todas essas garantias são garantias inseguras que, a qualquer cochilo, ao menor descuido, escapam de entre as mãos dos homens e se desvanecem como fantasmas.

Valendo-se de outras palavras, Martin Heidegger (2006) atribui a esse estado de alerta do homem, esta condição de não se contentar com as verdades já postas e transmitidas, o nome de cuidado. Cuidado, pois, seria o permanente estado de atenção do indivíduo para que evite-se o estado de alienação. É, assim, perceber que o processo interpretativo não se esgota[2].

Colaciona-se, nesta esteira, as belas palavras de José Ortega y Gasset (x, p.64) ao tratar da efemeridade do saber e da segurança do Homem perante o mundo: “ao contrário, ser homem significa, precisamente, estar sempre a ponto de o não ser, significa ser vivente problema, absoluta e azarosa aventura ou como costumo dizer ser, por essência, drama!”.

E continua o autor a sua brilhante lição (1960, p.65):

 A sorte da cultura, o destino do homem, depende de que no fundo de nosso ser mantenhamos sempre vivaz esta dramática consciência e, como um contraponto murmurante em nossas entranhas, sintamos bem que para nós só é segurança a insegurança.

Não se pode olvidar, por oportuno, das lições acuradas de Boaventura de Souza Santos (2006, p.13), que tratando sobre a questão da crise do paradigma científico racionalista dominante, assim aduz:

A crise do paradigma da ciência moderna não constitui um pântano cinzento de cepticismo ou de irracionalismo. É antes o retrato de uma família intelectual numerosa e instável, mas também criativa e fascinante, no momento de se despedir, com alguma dor, dos lugares conceituais, teóricos e epistemológicos, ancestrais e íntimos, mas não mais convincentes e securizantes, uma despedida em busca de uma vida melhor a caminho doutras passagens onde o optimistmo seja mais fundado e a racionalidade mais plural e onde finalmente o conhecimento volte a ser uma aventura encantada.

Resta claro, enfim, que não se pode mais colocar em cheque a condição humana de “ser que interpreta”. Deve-se, agora, lançar o olhar sobre quem interpreta e como interpreta na sociedade, haja vista que, como ver-se-á, a seguir, nem sempre essa condição de intérprete fora dado a todos os Homens.

2.2 A SOCIEDADE E SEUS INTÉRPRETES

Verifica-se que o Homem, ser que interpreta, o faz em um determinado espaço, bem como que, por tudo que aqui fora dito, este espaço interfere, sobremaneira, no processo interpretativo, seja pela via das tradições e valores arraigados em seu ambiente, como pela conformação e alocação social destes seres que interpretam.

Este espaço do qual se fala denomina-se sociedade, de modo que convém, antes, de adentrar-se mais especificamente no tema deste capítulo, tecer algumas considerações do que se convencionou chamar sociedade.

O homem, ser eminentemente social, passou a se agrupar por diversas razões, sejam elas, de segurança, de nutrição, de reprodução, mas, também, por razões de conveniência.

Forma-se, a princípio, a sociedade tribal, ou seja, pequenos agrupamentos formados por guerreiros, vivendo em postos fortificados, governados por chefes tribais ou reis. Como afirma Karl Popper (1987, p.187):

Não há um “modo tribal de vida” padronizado. Parece-me, contudo, que certas características podem ser encontradas na maioria dessas sociedades tribais, se não em todas elas. Refiro-me à sua atitude mágica ou irracional para com os costumes da vida social e à correspondente rigidez desses costumes.

A este modelo de sociedade, na qual, não havia reflexão sobre os assuntos pertinentes a esta; em que para todos os fenômenos eram atribuídos a conotação de magia; em que o indivíduo não era considerado em sim mesmo, mas somente no coletivo; em que presenciava-se uma estratificação das camadas da sociedade e uma ausência, quase que completa, de mobilidade social, Karl Popper (1987) dá o nome de sociedade fechada.

A sociedade passa, no decorrer da escalada civilizatória, mas, especificamente, à partir do desenvolvimento do comércio - onde as relações de troca ultrapassavam a esfera econômica - entre os povos, a perder tais contornos. Começa-se a consolidar instituições humanas como o idioma; os costumes, a moeda e a lei, que nada tinham de mágicos. O Homem passa a perceber que tais instituições não são fenômenos naturais, mas, sim, convencionais, de modo a notarem serem responsáveis por elas.

Para Karl Popper (1987, p. 204)

O surgimento da própria filosofia pode ser interpretado, acho eu, como uma resposta à queda da sociedade fechada e suas crenças mágicas. É uma tentativa para substituir a perdida fé mágica por uma fé racional; modifica a tradição de transferir uma teoria ou um mito, fundando uma tradição nova: a tradição de desafiar teorias e mitos e de discuti-los criticamente.

Passa-se, então, a um modelo de sociedade em que os indivíduos são confrontados com decisões pessoais, em que o indivíduo possui o valor em si próprio. Seria esta a sociedade democrática, ou, nas palavras de Karl Popper (1987) a sociedade aberta.

Feitas essas breves considerações e já cientes da importância da conformação social para o processo interpretativo, observa-se que, nos contornos da sociedade fechada não era dado a todos o direito de interpretar, ou, melhor dizendo, havia, naquela época, os intérpretes autorizados. Assim sendo, ainda que, involuntariamente, um indivíduo pertencente a essa sociedade fechada refletisse sobre um fenômeno posto, tais fenômenos percebidos e interpretados em nada contribuiriam para a formação da interpretação final, ou melhor dizendo, para a formação do consenso social, pois esta tarefa era feita por aqueles aos quais era dado o direito de interpretar.

Esta, inclusive, é a postura defendida por Platão, que na acepção de Karl Popper (1987) é o precursor do totalitarismo e, portanto, defensor de uma sociedade fechada. Afirma o filosofo austríaco (1987, p. 184):

O tratamento que Platão dá à felicidade é exatamente análogo ao que dá a justiça; e especialmente que é baseado na mesma crença de ser a sociedade, “por natureza”, dividida em classes ou castas. A verdadeira felicidade, insiste Platão, só se realiza pela justiça, isto é, conservando cada qual o seu lugar. O governante deve encontrar felicidade em governar, o guerreiro em guerrar e, podemos inferir, o escravo em ser escravizado. Fora disto, Platão diz freqüentemente que não está visando nem a felicidade dos indivíduos nem à de qualquer classe particular do estado, mas apenas à felicidade do todo...

Diante de uma sociedade aberta, tais fatos não ocorrem. O direito de interpretar é dado a todos que dela faz parte. Ademais, não só o direito de interpretar, mas, também, o direito de influenciar com sua interpretação para a formação do consenso social.

Alguns marcos históricos vieram durante os tempos amadurecendo esse processo de abertura social, pode-se, sem a pretensão de esgotar todos, haja vista não ser este o objeto do trabalho, elencar alguns deles: como dito anteriormente, a atividade mercantil dá o passo inicial deste processo que passa pelo advento da Filosofia ateniense; pelas incipientes Democracias grega e romana; recua no período da Idade Média; é retomado com o ressurgimento do Mercantilismo e fim da Idade Média, avança com as conquistas tecnológicas e com a ampliação do saber científico, avança, ainda, com o fim da Escravidão, alcançando contornos semelhantes com o que presenciamos atualmente a partir do advento do Humanismo que juridicamente é respaldado por um processo chamado de Constitucionalismo[3].

Vê-se, assim, que o Direito, mormente, após o advento do constitucionalismo passa a exercer papel fundamental neste processo de abertura social, seja, por instituir os valores a serem perseguidos pelo Homem, bem como por garantir que este processo de implementação de tais valores ocorra de fato.

O Direito passa, pois, a ser o garantidor da liberdade do cidadão agir, interpretar e influenciar com suas interpretações para a formação da interpretação social dos fenômenos postos.

2.3 O DIREITO E O HOMEM

Há um brocado jurídico que diz: “ubi societas ibi jus” (onde há sociedade, há direito). A brevidade desta frase, todavia, é diametralmente oposta a sua dimensão e alcance, em verdade, essas quatro palavras podem, de certa maneira, traduzir toda a relação entre a Humanidade e o Direito.

Como dito no início deste trabalho, o Direito é mais uma das construções humanas, precisamente, do saber, da racionalidade humana. Sucede, entretanto, que, diferentemente de outros objetos construídos pelo logos, quanto ao Direito não se pode determinar, ao certo, o marco inicial da sua existência.

Para aqueles que identificam o Direito enquanto instrumento econômico resta claro que a criação deste deu-se ao mesmo tempo em que se concebeu a idéia de propriedade privada. O Direito, assim, surgiria como um mecanismo garantidor a serviço dos detentores de alguns bens da vida para que estes pudessem mantê-los sob seus domínios ou reivindicá-los, caso fossem injustamente desapossados dos mesmos.

Outros intentam atribuir ao Direito à pecha de ser um mecanismo sancionador de um conjunto social. Há, ainda, aqueles que visualizam o Direito como instrumento de manutenção e imposição de Poder, seja ele político, econômico, social...

Ao buscar-se algumas das definições do Direito e, por conseguinte, o momento em que este passou a ser percebido no seio social, encontra-se um ponto em comum nas mais variadas percepções do fenômeno, qual seja: a imprescindibilidade do ser humano para sua existência. Neste sentido, no intento de, inicialmente, definir o momento em que o Direito surge e passa a influenciar o Homem em sua escalada civilizatória não se pode deixar de lado aquele dado, ao revés, deve-se colocá-lo como ponto de partida na busca pelo perceber o Direito.

Corrobora com o quanto aqui já dito as lições de Rodolfo Pamplona Filho e Pablo Stolze Gagliano (2004, p.30) que, na árdua tarefa de definir o Direito, assim, aduzem:

O primeiro passo, portanto, para conseguir conceituar o direito é reconhecer a sua característica, essencialmente humana, instrumento necessário para o convívio social.

(...)

Isso significa que não há falar em direito sem alteridade[4], isto é a relação com o outro, valendo ser invocado o brocado latino ubi homo, ibi jus (onde há homem, há direito), significativo de tal condição

Já é lugar comum que o ser humano desenvolveu-se e é, hoje, a espécie dominante sobre a face da terra devido dois fatores, quais sejam: a capacidade de realizar o “movimento de pinça” com as mãos, mas, mais ainda, pelo desenvolvimento da fala e, conseqüentemente, aprimoramento da linguagem.

Para José Ortega y Gasset (1960,p.57) o Homem diferencia-se das demais espécies pela capacidade de “ensimesmar-se” que, conforme aquele é : “a maravilhosa faculdade que o homem tem de liberta-se transitoriamente de ser escravizado pelas coisas”.

Faz Ortega y Gasset (1960, p.61-62), uma digressão histórica para trazer o momento em que o homem se dissocia do “mundo animal”. Para o mesmo, tal se deu no exato momento em que uma sinapse permitiu ao homem, ainda que por segundos, adentrar no mundo virtual e iniciar o germe do que veio a ser chamado ensimesmamento. Desde então, assevera o autor:

 São, pois, três momentos diferentes que ciclicamente se repetem ao longo da história humana em formas cada vez mais complexas e densas: I) O homem se sente perdido, naufragado nas coisas; é a alteração. II) O homem, com enérgico esforço, se recolhe à sua intimidade para formar idéias sobre as coisas e seu possível domínio; é o ensimesmamento, a vita contemplativa como diziam os romanos. III) o homem torna submergir no mundo para atuar nele conforme um plano preconcebido; é a ação.

O “ensimesmamento” de que fala Ortega y Gasset, bem como o atuar no mundo após esse recolhimento se dá pela via da linguagem, daí porque não ser contraditório afirmar que o ensimesmar-se em seus três níveis não prescinde da linguagem.

Nesta esteira, como dito linhas acima, parte-se, neste trabalho, do ponto de convergência das diversas definições do Direito. Feito isso, chega-se ao ponto em que três palavras – ainda que não expressamente - dominam o cenário de todas aquelas, são elas: Direito, Ser humano e Linguagem.

Ora, se já se sabe que o Direito é um fenômeno cultural e, pois, criação da racionalidade humana, ao definir-se a Humanidade pelo aperfeiçoamento da linguagem comunicativa, não é difícil notar que o Direito surge no momento em que a Humanidade pode ser definida como tal, o que leva à conclusão de que Direito e Linguagem são elementos indissociáveis. Além disso, não é desarrazoado afirmar que a Linguagem, assentando-se nestes pressupostos, é condição de possibilidade para o Direito.

Como assevera Eros Roberto Grau (2005, p.56): “o direito não apenas possui uma linguagem, mas é uma linguagem, na medida em que instrumenta uma modalidade de comunicação entre os homens, seja para ordenar situações de conflito, seja para instrumentalizar políticas”.

Com efeito, traçadas essas linhas, parte-se da concepção de que o Direito surge no exato momento que – se é que se pode dar exatidão a tal momento, notadamente pela sua complexidade – o primeiro grupo da espécie humana consegue, por meio da linguagem, impor restrições ao agir dos seres individuais em prol de outros seres ou em prol do ente rudimentar que se chama aqui de sociedade tribal.

3. HERMENÊUTICA E CONCRETIZAÇÃO DO DIREITO

3.1 AEVOLUÇÃO HERMENÊUTICA DO DIREITO.    

Como dito, o Direito é uma instituição construída pela racionalidade humana e como fenômeno posto na sociedade é passível de interpretação.

Não faz muito tempo, entretanto, em que entendia-se que interpretar o Direito era o mesmo que retirar o verdadeiro sentido e o real alcance da lei. O juiz não podia desobedecer à letra da lei sob o pretexto de penetrar em seu espírito; os códigos – afirmavam – nada deixavam ao arbítrio do intérprete, este já não tinha por missão fazer o direito, pois o direito já estava feito.

Neste sentido, afirma Tércio Sampaio Ferraz Jr (1980, p. 70) que: “a concepção de que o texto da lei é que é expressão da mens legislatoris leva Savigny a afirmar que interpretar é compreender o pensamento do legislador manifestado no texto da lei”

Posicionou-se sobre o tema André Ramos Tavares (2006, p.60) ao asseverar que: “Tradicionalmente, a interpretação era compreendida apenas como a descoberta do sentido do texto normativo, teoria condensada na célebre crítica de Gény de um fétichisme a la loi écrite et codifiée”.

Vê-se, aí, dois erros básicos: primeiro que o Direito se resume à lei – o jus  se reduz a lex -, segundo que o Direito já possui um significado em si mesmo, pronto e acabado.

Oportunamente, deve ressaltar-se que a palavra hermenêutica de que o presente estudo pretende-se valer em nada tem que ver com tradição hermenêutica inaugurada no Brasil por autores como Carlos Maximiliano, ou seja, uma hermenêutica que cria regras/métodos de interpretação. Essa hermenêutica calcada em métodos fica, sobremodo, debilitada.

O processo interpretativo/hermenêutico de que se trata tem um caráter produtivo e não meramente reprodutivo, sem logicamente, se valer de discricionariedade e decisicionismo jurídico[5].

Para Tércio Sampaio Ferraz Jr (1980, p. 71): “O subjetivismo levado ao extremo exagerado, podemos dizer que favorece um autoritarismo”.

Nesta esteira, aduz Lênio Luiz Streck (2006, p. 284):

A Hermenêutica-juridico-filosófica pretende, pois, permanecer fiel às coisas mesmas, partindo da base do próprio caso jurídico concreto, da singularidade desses casos e não das hipóteses categóricas, de construções imaginárias ou de quaisquer outras posturas desse jaez.

É preciso entender, conforme leciona Tércio Sampaio Ferraz Jr (1980, p. 68), que “é hoje um postulado quase universal da ciência jurídica a tese de que não há norma sem interpretação, ou seja, toda norma é, pelo simples fato de ser posta, passível de interpretação[6]”.

Para Willis Santiago Guerra Filho (1997, p.37):

Do Judiciário de hoje, não é de se esperar uma posição subalterna frente a esses outros poderes, a quem caberia a produção normativa. O juiz não há de se limitar a ser apenas, como disse Montesquieu, la bouche de la loi, mas sim la bouche du droit, isto é, a boca não só da lei, mas do próprio Direito.

Com grande autoridade e fundado nas idéias de Hans-Georg Gadamer, André Ramos Tavares (2006, p. 59) aduz que no processo interpretativo do Direito:

O ponto de partida e sempre um problema que se inscreve na existência do sujeito e que supõe a sua “pré-compreensão” em relação tanto à “compreensão” do “texto” como do “problema”, dando lugar a uma estrutura circular entre a realidade existencial e o texto a interpretar (círculo hermenêutico).

Dito isto, cumpre frisar, ainda, que, ao lado da idéia de que o Direito não se encontra pronto e acabado é clara, em tempos correntes, a idéia que atribui ao Direito contornos de transdisciplinariedade. Explicando, o Direito não é visto mais somente como uma ciência que trata de sistema de regras e princípios hermeticamente fechados ao mundo circundante, ao revés, o Direito é influenciado por todo o contexto social seja ele econômico, social, cultural, ético, etc.

Elucida bem o que aqui se afirma André Ramos Tavares (2006, p. 40):

O jurista, no exercício de sua profissão, deveria saber apenas a lei, em seu formalismo tecnicista. O conteúdo (matéria) da lei não importa ao jurista, que sobre ele deverá abster-se de fazer considerações de ordem “política”, de justiça (da decisão do legislador), de adequação à realidade social. Basta, simplesmente, saber que a lei cumpriu o procedimento legislativo previsto, preenchendo todas as fases necessárias para seu advento. Os domínios da realidade tornam-se irrelevantes e dele o Direito se desvinculava.

Sucede, entretanto, que a complexidade social chegou a tal ponto que não é dado mais ao intérprete da lei esquivar-se do contexto social na qual aquela se insere, notadamente, por que a resultante dessa complexificação social fora justamente a confecção de normas mais abertas, no intuito de abarcar as mais variadas situações possíveis.

Tratando das normas constitucionais, o que não impede a sua aplicação as normas e ao Direito como um todo, André Ramos Tavares (2006, p. 43) aduz:

Percebe-se, portanto, que é a abertura das normas constitucionais que possibilita a evolução do Texto Constitucional, o acompanhamento do desenvolvimento da realidade, superando-se, assim, a mentalidade que se tinha acerca do sistema jurídico, como um sistema fechado, conforme vigorou no positivismo formalista, em que predominava a infantil crença de que as leis constantes do Codex eram aplicáveis a toda e qualquer situação, por mais nova, estranha ou rara que fosse.

Nota-se, enfim, que o Direito é uma estrutura aberta, amplamente mutável e o instrumento dessa mutação não é outro senão a interpretação. Esta, por sua vez não só declara o conteúdo da norma, mas, sim, acaba por concretizá-lo a cada aplicação, vez ser este cambiante as variáveis sociais, bem assim daquele ao qual é dado a tarefa de interpretar.

Assentes tais premissas, passa-se a tratar no próximo item sobre quem deve ser os intérpretes/concretizadores desse Direito, bem como deve-se dar esse processo.

3.2 SOCIEDADE ABERTA E INTERPRETAÇÃO DO DIREITO

Muito se falou aqui sobre a nova conformação da sociedade bem como do Direito. Agora é chegado o momento de casar ambos os conceitos.

Verificou-se que a sociedade inicialmente fechada passou por um processo de abertura. Ao lado dessa abertura social, acompanhamos uma evolução no conceito de Direito, bem como da sua interpretação.

Uma das características da sociedade fechada como se viu era o fato de existirem alguns intérpretes autorizados para os fenômenos percebidos, diferentemente não era com o Direito, quem definia o que era Direito eram tais intérpretes sem a colaboração de mais ninguém que não pertencesse a esse núcleo.

A despeito da abertura social, ainda se verifica na sociedade alguns resquícios de uma sociedade fechada e uma desses resquícios é a atribuição e o modo como se interpreta, ainda, o Direito.

Conforme enuncia Peter Härbele (2002, p.12), aduzindo sobre a interpretação constitucional, o que aplica-se integralmente ao Direito como um todo:

A teoria da interpretação constitucional esteve muito vinculada a um modelo de interpretação de uma “sociedade fechada”. Ela reduz, ainda, seu âmbito de investigação, na medida que se concentra, primariamente, na interpretação constitucional dos juízes e nos procedimentos formalizados.

Se se considera que uma teoria da interpretação constitucional deve encarar seriamente o tema “Constituição e realidade constitucional”- aqui se pensa na exigência da incorporação das ciências sociais e também nas teorias jurídico-funcionais, bem como nos métodos de interpretação voltados para atendimento do interesse público e do bem-estar geral -, então há de se perguntar, de forma mais decidida, sobre os agentes conformadores da “realidade constitucional”.

Em uma sociedade aberta e democrática a adoção de uma hermenêutica jurídica deve ser adequada a esta sociedade pluralista, em que, para além dos juízes, sejam intérpretes do Direito, também, ainda que atuando ao menos como pré-intérpretes, os cidadãos e grupos de interesse, órgãos estatais, o sistema público e a opinião pública

Com efeito, no desiderato de realizar uma passagem de uma sociedade fechada de intérpretes do Direito para uma interpretação jurídica pela e para uma sociedade aberta, propõe Peter Härbele (2002 p.13) a seguinte tese:

 No processo de interpretação constitucional estão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos (forças produtivas de interpretação), não sendo possível estabelecer-se um elenco cerrado ou fixado com numerus clausus de intérpretes da Constituição.

Vale dizer, os critérios de interpretação constitucional hão de ser tanto mais abertos quanto mais pluralista for a sociedade.

Com destreza peculiar, enuncia Peter Härbele (2002 p.19) que:

 “a investigação sobre os que participam do processo de interpretação é, de uma perspectiva sócio-constitucional, conseqüência do conceito republicano da interpretação aberta que há de ser considerada como objetivo da interpretação constitucional. Uma teoria da constituição que se concebe como ciência da experiência deve estar em condições de, decisivamente, explicitar os grupos concretos de pessoas e os fatores que formam o espaço público (Öffentlichkeit), o tipo de realidade de que se cuida, a forma como ele atua no tempo, as possibilidades e necessidades existentes”.

Ante o novo paradigma do Estado constitucional-democrático modelo jurídico adequado de uma sociedade aberta, é preciso reconhecer que a democracia não se desenvolve apenas no contexto de delegação de responsabilidade formal do Povo para os órgãos estatais, até o último intérprete formalmente competente, a Corte Constitucional.

Consoante Walber de Moura Agra (2005, p.195), abeberando-se das idéias de Habermas:

“A idéia de Habermas é estabelecer uma jurisdição constitucional com base em uma democracia participativa, que propicie a atuação efetiva dos cidadãos, o que seria um antídoto contra a ameaça de que os tribunais constitucionais se fechem em um ciclo autônomo de decisões. Essa jurisdição deve se basear em argumentos racionais, permitindo sempre a inclusão de participantes no debate público, com ligações intrínsecas com a sociedade. Ele constrói a legitimidade da jurisdição constitucional fundada no agir comunicativo, que busca formar uma teoria de justificação, cujas decisões judiciais sofrem injunções diretas do espaço público que, por sua vez, deve garantir a mais completa participação isonômica dos cidadãos e da sociedade civil organizada, formando um canal entre a população e os entes estatais”.

Aduz Walber de Moura Abra (2005, p. 198) que, podem traçar-se algumas simetrias entre Habermas e Härbele no sentido de que ambos têm o escopo de democratizar de forma mais incisiva as decisões da jurisdição constitucional, sendo essas expostas ao debate público, principalmente no concernente à ampliação dos intérpretes da Lex Mater.

Com Peter Härbele (2002 p.36) verifica-se que “numa sociedade aberta, ela se desenvolve também por meio de formas refinadas de mediação de processo público e pluralista da política e da práxis cotidiana, especialmente mediante a realização dos Direitos Fundamentais”.

Em outra obra Peter Härbele (2002, p. 65) enuncia:

“En todo ordenamiento jurídico abierto, plural y libertatorio del ser humano surge un amplio espectro de multíples formas que se institucionalizan como alternativas jurídicas y que ofrecen a su vez un espacio lo suficientemente amplio como para tomar decisiones, como para estabelecer los cauces de las libertades individuales y, en general, los de la propia racionalidad. Dichas formas presuponen una comunicación o lo más libre de cohibiciones posible – en sentido habermesiano -, es decir, que, por tanto”.

Aduz, ainda, Peter Härbele (2002, p.38-39) que:

 “Democracia é o domínio do cidadão, não do Povo, no sentido de Rosseau. A democracia do cidadão está muito próxima da idéia que concebe a democracia a partir dos direitos fundamentais e não na concepção segundo a qual o Povo soberano limita-se a apenas assumir o lugar do monarca. Portanto, existem muitas formas de legitimação democrática, desde que se liberte de um modo de pensar linear e eruptivo a respeito da concepção tradicional de democracia. Alcança-se uma parte significativa da democracia dos cidadãos (Bürgerdemokratie) com o desenvolvimento interpretativo das normas constitucionais”.

Não se esquiva Peter Härbele (2002 , p.44-45) do fato de que, à luz dos novos participantes do processo de interpretação constitucional, uma Corte Constitucional como o Bunderverfassungsgericht, que afere a legitimidade de interpretação de outro órgão, deve-se valer de diferentes métodos, tendo em vista exatamente os participantes da interpretação submetida à sua apreciação. Assim o controle da legitimidade e da participação democrática deveria variar proporcionalmente ao interesse da opinião pública.

Neste passo, Walber de Moura Agra (2005, p.290) elucida:

“Quando os julgados do Supremo Tribunal Federal encontram respaldo na comunidade dos intérpretes da Constituição, auferem maior legitimidade, o que justifica maior extensão em sua incidência. Essa democratização das decisões do STF, permitindo maior participação de seus intérpretes, igualmente estabelece links com a sociedade, contribuindo para democratizar as decisões com a população em geral”.

Consoante, enfim, Peter Härbele (2002, p.48-49):

 “devem ser desenvolvidas novas formas de participação das potências públicas pluralistas enquanto intérpretes em sentido amplo da Constituição. O direito processual constitucional torna-se parte do direito de participação democrática. A interpretação constitucional realizada pelos juízes pode-se tornar, correspondentemente, mais elástica e ampliativa sem que se deva ou se possa chegar a uma identidade de posições com a interpretação do legislador. Igualmente flexível há de ser a aplicação do direito processual constitucional pela Corte Constitucional, tendo em vista a questão jurídico-material e as partes materialmente afetadas. Em resumo, uma ótima conformação legislativa e o refinamento interpretativo do direito constitucional processual constituem as condições básicas para assegurar a pretendida legitimação da jurisdição constitucional no contexto de uma teoria Democrática”.

Das idéias de Peter Härbele extrai-se, pois, a imprescindibilidade de ampliação democrática no debate constitucional que é a resultante jurídica de uma sociedade que se diz aberta.

Acrescentam valor ao debate as idéias de Willis Santiago Guerra Filho (1997, p. 33):

Daí a necessidade de que se constitua o que, tomando de empréstimo uma expressão de Karl Popper, se chamou de “sociedade aberta dos intérpretes da Constituição”, a fim de que se estabeleça um amplo debate entre os defensores das diversas concepções a respeito de como melhor compatibilizar os valores em conflito, e isso sempre com a preocupação de sempre preservá-lo todos, em seu conteúdo mínimo. Como na pós-modernidade, com o elevadíssimo grau de complexidade e novidade dos problemas sociais que aí se apresentam, não há mais por que recorrer a nenhuma receita ideológica previamente elaborada para se obter soluções, só mesmo com procedimentos é que se forja da melhor maneira tais soluções, abrindo a possibilidade de cada posição divergente demonstrar a parcela de razão que lhe cabe e a superioridade de uma frente às demais, em dada situação particular.

É, pois, no Judiciário que se realiza a Democracia e, por consecutivo, a abertura da sociedade, de modo que a interpretação do Direito deve ser visto, além de resoluções de problemas eminentemente jurídicos, uma esfera de decisão política.

4. ABERTURA INTERPRETATIVA E DEMOCRACIA.

4.1 ALEGITIMAÇÃO DEMOCRÁTICA PELA INTERPRETAÇÃO ABERTA DO DIREITO.                                                                    

Percebe-se, em tempos correntes, com a complexificação da sociedade, que mecanismos antes válidos e legítimos para a sustentação da Democracia, tornaram-se não eficazes ou insuficientes para que a mesma pudesse resistir.

A Democracia da sociedade pós-moderna não pode ser mais vista nos moldes concebido por Rousseau. Diz-se isto, haja vista que naquela época o centro político do Estado concentrava-se prioritariamente no Poder Legislativo. Este poder representava o povo, bem como deveria defender o povo dos outros poderes que naquela época eram mal-vistos, vez que o Executivo fazia pouco tempo estava nas mãos dos monarcas absolutistas e o Judiciário não era outra coisa senão o guardião daquele status quo.

Recentemente, verifica-se um processo de deslocamento do pólo de tensão política do Estado, é dizer, o pólo de tensão, que no Estado Liberal se manteve no Legislativo e no Estado Social, no Executivo, migra, agora, para o Judiciário[7]. Além disso, verifica-se que no atual estágio da evolução do Estado Moderno, ou como querem alguns, pós-moderno, os poderes do dito Estado Democrático de Direito dialogam muito mais entre si, de modo a exercerem um controle democrático recíproco.

Neste sentido são as palavras de Willis Santiago Guerra Filho (1997, p. 36):

Compreende-se, então, como o centro de decisões politicamente relevantes, no Estado Democrático contemporâneo, sofre um sensível deslocamenteo do Legislativo e Executivo em direção ao Judiciário.

Contínua o mestre cearense (1997, p. 34): “O Estado Democrático de Direito, então, representa uma forma de superação dialética da antítese entre os modelos liberal e social ou socialista de Estado”.

Ora, cientes dessa mudança de eixo, não é temerário afirmar que o espaço para a realização da democracia acompanha também esse deslocamento. É dizer, ganha o Direito a atribuição de ser um instrumento de consolidação da democracia.

Com efeito, uma vez definido que o Direito só se realiza por vias da interpretação, conclui-se que será por meio da interpretação e, por consecutivo, pela configuração do quadro de seus intérpretes que se estruturará um caminho social democrático. Desse modo, quão mais variados forem os intérpretes do Direito, mais este terá legitimidade democrática.

Convém ressaltar, ainda neste contexto, a posição de Ana Paula Barcellos (2005 p. 265), que valendo-se das lições de Jurgen Habermas afirma que a legitimação do direito nas sociedades contemporâneas deve ser construída a partir do consenso obtido por meio da comunicação e diálogo públicos, e não a partir de argumentos autoritativos ou consensos materiais prévio.

Para Ana Paula Barcellos (2005 p. 264-265): “A deliberação pública está aberta a qualquer resultado final no que diz respeito ao conteúdo, justificando-se na medida em que o procedimento seja adequado”.

Convém, por oportuno, colacionar o magistério de Willis Santiago Guerra Filho (1997, p.28):

No mundo pós-moderno, tão complexo e diferente daquele em que se viveu até há pouco, não há lugar para “grandes fórmulas” legitimadoras (ou “grandes narrativas”, grands récits, com diz Lyotard, em La condition post-moderne), elaboradas no passado, com apoio em “verdades”, fornecidas pela ciência, para dar soluções aos problemas que hoje se nos apresentam, com um projeto de realização de utopias. No mundo atual, portanto, não haveria mais lugar para revoluções em seu sentido clássico, ou melhor, “moderno”

Ainda com o multicitado autor (1997, p.28):

“Hoje em dia vale mais apostar no que Felix Guatarri chama de “revoluções moleculares”, aquelas que ocorrem na interação entre pessoas, quotidianamente influenciando-se umas às outras para, por seus próprios meios, encontrarem orientação no mundo, reagindo a ele, o que termina formando um encadeamento que ocasiona, de repente, grandes transformações, revoluções, sem que mesmo se perceba direito, como a queda da ditadura aqui no Brasil, ou do “muro de Berlim”, na Alemanha.

Com a Democracia não é diferente, ou seja, deve a construção da Democracia ser realizada por meio “revoluções moleculares”. Essas ocorreram nas microrelações, é dizer, o processo de interpretação do Direito seja ele realizado no processo ou fora dele é um grande exemplo das revoluções moleculares democráticas. A Democracia, dessa forma, não deve ser festejada somente em épocas de eleição, mas, sim, deve sê-la, diuturnamente, e esse deve ser também o papel do Judiciário nas tomadas de decisão.

Nesta esteira, resta demonstrado como a interpretação democrática do Direito serve para legitimar e consolidar o Estado Democrático de Direito.

Verifica-se, pois, que o Direito, passível de interpretação, é reiteradamente reconstruído a cada problema que se apresenta. Isso porque, uma vez que os valores não podem mais ser dissociados do processo de interpretação, bem como que tais valores são cambiantes, intérprete a cada momento é confrontado com uma situação nova a ser interpretada.

4.2 AINTERPRETAÇÃO ABERTA EM MOVIMENTO

Neste último tópico demonstrar-se-á algumas formas e instrumentos de abertura interpretativa do Direito.

Como dito, A legitimação das decisões judiciais devem ter como essência procedimentos que procuram resguardar o desenvolvimento do regime democrático de forma que possibilite a participação mais ampla possível dos cidadãos. Figura imprescindível, portanto, no desenrolar procedimental destes processos será o amicus curae, e, aqui, propõe-se a imperiosidade de sua presença em todos os procedimentos judiciais.

Ensina, Fredie Didier Jr (2007, p. 356) que:

É o amicus curae verdadeiro auxiliar do juízo. Trata-se de uma intervenção provocada pelo magistrado ou requerido pelo próprio amicus curae, cujo objetivo é o de aprimorar ainda mais as decisões proferidas pelo Poder Judiciário. A sua participação consubstancia-se em apoio técnico ao magistrado.

Prossegue o professor Fredie Didier Jr (2007, p.357) seu magistério, no que concerne à intervenção do amicus curae em sede do Supremo Tribunal Federal:

A intervenção do ‘amigo do tribunal’ serve, nestes casos, para proporcionar ao Supremo Tribunal Federal “pleno conhecimento de todas as suas implicações ou repercussões dos seus julgamentos. A relevância social de alguns tipos de causa é fator para uma adequação objetiva da tutela jurisdicional, que deve ter suas peculiaridades procedimentais modificadas de acordo com as características do objeto do processo. A ouvida/manifestação do amicus curae é uma das manifestações desta adequação; sobretudo uma especialização procedimental, que não se confunde com qualquer espécie de fenômeno interventivo.

A participação do amicus curae assegura o caráter dialógico do processo, em que a manifestação de juristas e órgãos da sociedade civil servem para democratizar as decisões dos órgãos jurisdicionais e, assim, fundamentar a legitimidade de tais decisões..

Assevera, com propriedade, Walber de Moura Agra (2005, p.292):

“A função do amicus curae, figura que nasceu no direito anglo-saxônico, é colaborar com o órgão que exerce a jurisdição, fornecendo-lhe o maior número possível de informações para que a decisão possa ocorrer de forma consciente. Sua atuação é uma prática difundida nos Estados Unidos, configurando-se na oportunidade que uma pessoa não envolvida no processo nem como parte nem como terceiro interveniente tem para fornecer subsídios com o intento de dirimir eventuais dúvidas que surjam durante o julgamento”.

Alguns tribunais e, recentemente, o Supremo Tribunal Federal valeu-se da figura do amicus curae  para democratizar a interpretação do Direito. Tal participação deu-se no julgamento da Ação direta de inconstitucionalidade que julgou a constitucionalidade ou não da utilização de embriões humanos inviáveis na pesquisa de células troncos.

Enfim, a sociedade fora convocada a participar por meio de tal instituto jurídico. De um lado, um representante da parcela da sociedade que defendia a constitucionalidade da lei esclareceu pontos de extrema relevância ao julgamento da ação – demonstrando a transdiciplinariedade do Direito - e de outro o procurador que representava a parcela que defendia a inconstitucionalidade da mesma lei.

Ao fim, o que se viu fora um debate amplo e uma decisão fundamentada que em suma simbolizava que Democracia também é feita pela interpretação do Direito que é sempre de alguém ou de uma comunidade interessada.

5 CONCLUSÕES

O Direito, atualmente, não é mais uma instituição humana acessível somente à parcela desta. No momento em que a este é atribuído a função de implementar e consolidar a Democracia, passa a ser o Direito acessível e, portanto, interpretável a todos que fazem parte dessa sociedade que se quer aberta.

Não é dado aos magistrados cerram-se em suas torres de marfins distantes do contexto social existente, ao revés, devem estes voltarem seus olhares aos clamores das ruas, à verificação de que a sociedade pós-moderna se complexificou a tal ponto em que não se prescinde de instrumentos informativos de outrem para compreendê-la e, assim, melhor interpretá-la.

O caminho para a abertura interpretativa do Direito se dá no ambiente em que este é formado, qual seja, o processo. É dizer, será por meio da inserção de mecanismos democráticos, como já se vê com o instituto jurídico do amius curae, que o Direito alcançara a legitimidade democrática.

É, enfim, pela interpretação do Direito que se consolida e se promove a sociedade aberta. 




[1]Semelhante é o pensamento de José Ortega y Gasset (1960, p 80), vez que este afirma que nesta tarefa deve-se buscar a realidade das coisas, na realidade radical, ou seja, na primeira dimensão de realidade própria ao ser humano, na raiz, pois, nenhum conhecimento de algo é suficiente se não detectarmos onde este algo a ser analisado se faz presente, aparece em nossa vida, ou seja, onde ele começa a existir. A realidade, portanto, é tudo aquilo que já existe, tudo aquilo que temos de contar, porque queiramos ou não, temos de contar.

 

[2]Peremptoriamente, ressalta José Ortega y Gasset (1960, p. 74): “Sem retirada estratégica a si mesmo, sem pensamento alerta, a vida humana é impossível”.

[3]Como afirma Manoel Jorge e Silva Neto (2006) já na Idade Antiga, encontram-se fatos que levam a crer em uma iniciativa de resguardo de certos direitos do homem. Partindo-se para Idade Média, resta claro o propósito de assegurarem alguns direitos do homem, notadamente, os direitos de liberdade e propriedade, arautos da Magna Charta Libertatum de 1215 do Rei João Sem Terra. Enfim, com o advento da Revolução Gloriosa de 1688 vê-se mais um avanço na proteção dos direitos fundamentais. É a Revolução Francesa (1789), entretanto, que pode ser apontada como marco histórico do constitucionalismo clássico, por tudo que significou político e socialmente.

[4]Consoante José Ortega y Gasset (x): deve-se conceituar alteridade como o outro, do latim alter, ou seja, o conjunto de fatores exteriores ao ser que sobre ele impõe sua força cogente. São, pois, o conjunto de objetos e acontecimentos que governam a atividade do ser humano de fora pra dentro.

[5]Não se pretende afirmar com esse poder criador/produtor do intérprete, que este venha poder dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa, isto é, a hermenêutica nem de longe pode ser considerada relativista. Ao contrário, é a partir da hermenêutica filosófica que falaremos da possibilidade de respostas corretas ou, se se quiser, de repostas hermeneuticamente adequadas a Constituição. 

[6]Ainda com Tércio Sampaio Ferraz Jr (1980, p. 72-73): “Quando dizemos que interpretar é compreender outra interpretação (a fixada na norma), afirmamos a existência de dois atos: um que dá a norma seu sentido e outro que tenta captá-lo. Portanto, para que possa haver interpretação jurídica é preciso que ao menos um ato doador de sentido seja fixado. Daí um dos pressupostos da hermenêutica do direito ser o caráter dogmática do seu ponto de partida. O dogma inicial pode ser colocado em diferentes níveis, hierarquizados ou não. Por exemplo, parte-se da norma positiva, vista como dogma, mas também podemos questioná-la do ponto de vista da sua justiça, caso em que uma concepção de justiça passa  a ser o novo ponto de partida; ou podemos questioná-la do ângulo da sua efetividade, caso em que a possibilidade de produção de efeitos passa a ser o ângulo diretor e ponto de partida do postulado; ou podemos ainda reconhecer o pontos de partida pluridimensionais , compatíveis entre si. O importante é que a interpretação jurídica tenha sempre um ponto de partida tomado como indiscutível

[7]Relevante, neste sentido, o dizer de Campilongo, citado por Lênio Streck (2005 p.257), para quem, no Estado Democrático de Direito, a Função Judiciária passa a integrar o circuito de negociação política: “garantir as políticas públicas, impedir o desvirtuamento privatista das ações estatais, enfrentar o processo de desinstitucionalização dos conflitos – apenas para arrolar algumas hipóteses de trabalho – significa atribuir ao magistrado uma função ativa no processo de afirmação da cidadania e da justiça distributiva”. 

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