Questão do menor sob guarda e a inconstitucionalidade do art. 16, §2º, da Lei 8.213/91


Pormathiasfoletto- Postado em 15 outubro 2012

Autores: 
VIANINI, Lídia Guimarães

 

 

"Eduquem as crianças e não será necessário castigar os homens". (Pitágoras)

O Direito de Seguridade Social, antes conhecido como direito previdenciário, se preocupa com três vertentes, quais sejam, a assistência social, saúde e previdência. Os dois primeiros não são vinculados a nenhuma contribuição, pois é uma prestação obrigatória do Estado para a Sociedade. Já o último, a previdência social, tem condão de assegurar as pessoas que passam sua vida útil contribuindo com parte de seu ganho capital.

Desta forma, podemos concluir que, o sistema previdenciário é uma contra prestação estatal àqueles que realizaram pagamentos ao Instituto Nacional de Seguridade Social-INSS, visando garantir seus direitos em eventual necessidade e também os direitos de seus beneficiários. Este último, é o caso do menor sob guarda.

O menor sob guarda se encontrava elencado como beneficiário de seu guardião, no caso de sua morte, na antiga redação do art. 16, §2º, da Lei 8.213/91. Ocorre que com a alteração trazida pela Lei nº 9.528, de 10.12.97, o menor sob guarda deixou de ser dependente de seu guardião.

A definição da Pensão por morte se encontra no art. 74 da Lei 8.213/91:

Art. 74. A pensão por morte será devida ao conjunto dos dependentes do segurado que falecer, aposentado ou não, a contar da data:

I - do óbito, quando requerida até trinta dias depois deste;

II - do requerimento, quando requerida após o prazo previsto no inciso anterior;

III - da decisão judicial, no caso de morte presumida.

A pensão por morte será devida aos dependentes do segurado que se encontram elencados no art. 16, da Lei 8.213/91:

Art. 16. São beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependentes do segurado:

I - o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido;

II - os pais;

III - o irmão não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido;

§ 1º A existência de dependente de qualquer das classes deste artigo exclui do direito às prestações os das classes seguintes.

§ 2º .O enteado e o menor tutelado equiparam-se a filho mediante declaração do segurado e desde que comprovada a dependência econômica na forma estabelecida no Regulamento.

§ 3º Considera-se companheira ou companheiro a pessoa que, sem ser casada, mantém união estável com o segurado ou com a segurada, de acordo com o § 3º do art. 226 da Constituição Federal.

§ 4º A dependência econômica das pessoas indicadas no inciso I é presumida e a das demais deve ser comprovada”.

 

A alteração trazida pela 9528/97 é inconstitucional por ferir o Princípio da Proteção Integral de Criança e do Adolescente, art. 227, da Constituição Federal, por ferir o Princípio da Isonomia, art. 5º, caput, da Constituição Federal, além, ainda, de ser contrário ao art. 33, §3º, do Estatuto da Criança e do Adolescente.

A guarda confere ao guardião, através de sentença judicial ou em virtude de lei, os deveres e direitos para que o menor tenha garantidas as suas necessidades, até que complete a maioridade civil, ou seja, 18 (dezoito) anos:

Art. 33. A guarda obriga a prestação de assistência material, moral e educacional à criança ou adolescente, conferindo a seu detentor o direito de opor-se a terceiros, inclusive aos pais.

(...)

§ 3º A guarda confere à criança ou adolescente a condição de dependente, para todos os fins e efeitos de direito, inclusive previdenciários.

A principal função deste instituto é colocar menor sobre a responsabilidade de alguém que lhe propicie o que o detentor do poder familiar não pôde.

Nas palavras de Ana Maria Milano:

No sentido jurídico, guarda é o ato ou efeito de guardar e resguardar o filho enquanto menor, de manter vigilância no exercício de sua custodia e de representá-lo quando impúbere ou, se púbere,  de assisti-lo, agir conjuntamente com ele em situações ocorrentes. (MILANO, p. 47, 2000)

A guarda é instituto de suma importância por versar sobre direitos da criança e do adolescente desamparado. Sabe-se ainda, que a família é a base da formação social, merecedora de atenção do constituinte originário. Por isso, encontra-se elencada no art. 227, da Constituição Federal.

Art. 227 - É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

O artigo supramencionado preceitua a Proteção Integral da Criança e do Adolescente, colocando sociedade e Estado como responsáveis de todos os seres em formação, por serem considerados indefesos e incapazes de prover com seu próprio sustento.

O artigo 5º, caput, da Constituição da República de 1988, é explícito quando em seu texto equipara de forma material todas as pessoas que se encontram em condições de igualdade. Atualmente, a igualdade não é adotada no conceito apenas formal, como na época do liberalismo clássico, mas sim em seu sentido amplo, na tentativa de amparar a todos os que são abrangidos por determinadas condições.

Portanto, inaceitável a distinção entre os beneficiários dos institutos de guarda e tutela, haja vista não terem qualquer distinção prática capaz de gerar desigualdade entre os menores amparados por este ou aquele instituto jurídico.

O ordenamento jurídico traz uma proteção especial ao menor, não só pela sua incapacidade física e psicológica de gerir sua vida, mas também, pela necessidade de afeto e segurança, fatores indispensáveis a formação da personalidade.

Quando o constituinte fez tentativa de efetivar o Princípio da Igualdade material, visou justamente proteger pessoas como os menores sob guarda a fim de evitar diferenciação injusta entre ele e o menor sob tutela. Principalmente, por se tratar de diferenciação prejudicial ao desenvolvimento de crianças e adolescentes que se encontram nessa situação, e, por conseqüência, desvalorizar a entidade familiar em seu conceito originário de proteção e amparo.

A questão da concepção do menor sob guarda como dependente previdenciário, passa pelo entrave de compatibilizar a característica da temporariedade do instituto e a necessidade de substituição do poder familiar como pressuposto necessário à concessão do benefício previdenciário.

Desta forma, podemos perceber que, pode ser que a guarda, assim como sempre ocorre na tutela, tenha caráter transitório, o que de acordo com o legislador infraconstitucional é fator obstativo para sua colocação no rol de dependência de seu guardião. Fator este que não impede, porém, o menor sob tutela, diga-se de passagem, instituto jurídico que também possui caráter transitório.

É o entendimento de alguns doutrinadores, assim como o de Heloísa Hernadez Derzi:

Embora a guarda definitiva suponha a plena participação do menor na vida em família substituta e imponha ao guardião a obrigação de velar por ele, tê-lo em sua companhia, alimentá-lo, educá-lo e dar-lhe formação integral, nada impede que ela seja revogada a qualquer tempo, bastando que haja justificativa fundamentada. (DERZI, p. 284, 2010)

Ocorre que, os embasamentos legais para a cessação do benefício são descabidos no que tange aos preceitos constitucionais e fundamentais, principalmente quando nos referimos à uma diferenciação entre dois institutos tão parecidos.

É o que nos explica Emerson Odilon Sandim:

A Medida Provisória n. 1523/96, sabiamente deixou de fora, no que tange ao art. 16, §2º, da Lei de Benefícios, a hipótese do menor sob guarda, conquanto, a redação transata, do diploma legal citado, incluí-la. Mas, uma interpretação constitucional, seguidas de princípios específicos que regem a menoridade, consubstanciadas no Estatuto da Criança e do Adolescente, apontam que guarda é também hipótese de dependência previdenciária. (SANDIM, p. 83, 2004)

Conclui-se que, o legislador, sem querer confessar sua intenção implícita, teve o objetivo precípuo de restringir o número de dependentes da Previdência Social, a fim de reduzir custos, se utilizando para isso de menores incapazes de prover com seu próprio sustento.

O Estatuto da Criança e do Adolescente- ECA trata o menor sob guarda como dependente material, moral e educacional. O menor é dependente de seu guardião em todos os sentidos, inclusive para fins previdenciários.

Não bastando a supressão introduzida por esta lei (Lei nº. 9528/97), estar altamente contrária aos preceitos constitucionais, o atual entendimento do Superior Tribunal de Justiça, é de que, é preciso evitar as fraudes no sistema previdenciário, e por isso, o menor sob guarda não deve ser considerado dependente de seu guardião.

Indubitavelmente a polêmica do tema é considerável. Devemos destacar que, não é comum a promulgação de uma lei que fere diretamente os direitos dos menores, que há tempos são protegidos, e não poderia deixar de ser.

Além de todas as latentes inconstitucionalidades trazidas pela alteração legal, alguns entendimentos jurisprudenciais, alegam que, a concessão do benefício de pensão por morte ao menor sob guarda pode coadunar com fraudes no sistema previdenciário.

Atualmente, o Superior Tribunal de Justiça vêm realizando freqüentes julgamentos acerca do tema. Em princípio, todas as decisões vêm sendo proferidas em desfavor do menor sob guarda.

A lei ordinária posterior, qual seja, a lei modificativa do art. 16, § 2º da Lei 8.213/91, jamais poderia retroceder com relação a direitos essenciais dos menores sob guarda, o colocando á margem do sistema previdenciário, muito menos, se utilizando para isso do argumento de que “reverter o quadro de deterioração da situação financeira da Previdência Social, preservando o Tesouro Nacional de pressões decorrentes desse desequilíbrio”. (Exposição de Motivos da Medida Provisória nº. 1.523/96).

Não é plausível de forma jurídica e menos ainda moral, revogar de forma expressa norma jurídica constitucional para fins de preservar o Tesouro Nacional.

Não se pode conceber a idéia de que a alteração legislativa teve objetivo primordial de combater a quantidade de benefícios que eram concedidos em decorrência de guardas judiciais que não condiziam com a realidade, gerando uma grande quantidade de desvio de recursos públicos.

Inaceitável a idéia de que sejam cessados direitos fundamentais com escopo em uma desculpa tão pouco aceitável. Então, podemos concluir que, se ocorre fraude em determinados casos, gera-se a liberdade de retirar de forma inconstitucional o direito de todos, mesmo se tratando de direitos fundamentais, e principalmente, alimentares.

Explica-nos o Ministro Arnaldo Esteves Lima:

“... Existem muitas [guardas] que não são legítimas, a pessoa obtém a guarda de um menor legitimamente, pois quer proteger, tem condições, acha que é justo e merecido. Mas, aquele menor que está legitimamente numa situação desta, será colocado numa vala comum porque existem fraudes? As fraudes devem ser combatidas pela fiscalização, pela polícia, pelo aparelho preventivo e repressivo que a legislação coloca à disposição da nossa sociedade.” (LIMA, Arnaldo Esteves. Embargos de Divergência em Recurso Especial nº. 844.598-PI de 17/02/2009).

A proteção infantil deve ocorrer em qualquer circunstância, e ser assegurada pelo poder Público. Não é justo que exista o ônus de um indivíduo ser o guardião, e retirem o bônus. É que com grande magnitude que nos fala o Ministro Napoleão Nunes Maia Filho:

As crianças e os adolescentes têm de ser protegidos pelo Poder Público e pelas famílias em qualquer circunstância (...). A criança estava sob guarda do segurado. Não importa que a lei diga que ele não poderia designar. Ele nem precisa designar; ele não era o guardião? A lei deveria dizer que ele não poderia ser o guardião. Ora, ele pode ser o guardião. Ora, ele pode ser o guardião, ter o ônus da guarda, e a criança, sob guarda, não tem as vantagens previdenciárias de uma situação de dependência qualificada pala guarda, e, ainda que não fosse, poderia justificar depois da morte? Essa decisão em contrário, com todo o respeito, com a data vênia, além de afrontar a Constituição Federal, que estabelece que se dê às crianças a máxima proteção, é uma recomendação muito antiga. Vem da época de Cícero, pueri debetur máxima reverencia. As crianças merecem o máximo de cuidado, e, no caso, estamos deixando a criança no desamparo. Já ficou sem a proteção moral do guardião, e fica, agora, também, sem a pensão que o guardião pode, legitimamente, deixar.” (FILHO, Napoleão Nunes Mais. Resp 844.598/PI de 17/02/2009)

Se formos cessar direitos pela ocorrência de fraudes a maioria dos benefícios concedidos não o seriam. Isso, sem comentar que, as maiores fraudes no sistema financeiro brasileiro ocorre dentro da mesma corte que legisla sobre os direitos alheios, tendo em vista a enorme quantidade de escândalos trazidos à tona ao longo dos últimos anos.

Desta forma, deve o Poder Público instituir políticas de fiscalização para garantir uma concessão justa de benefícios, e não transferir o problema da falta de prevenção aos cidadãos de bem, prejudicando um todo como forma de coibir uma minoria.

O cumprimento da função social da lei deve ocorrer independentemente de mera vontade dos poderes legislativo e judiciário, devendo ser respeitado, sobretudo, o Princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

O futuro e o desenvolvimento de nossa nação encontram-se nas mãos dos jovens. Os que hoje são crianças, amanhã serão adultos formadores de costumes e opiniões. Justamente por este motivo, devemos, como um todo, sociedade e Estado, gerar condições dignas para educação dos menores.

Defende-se atualmente a tese de que, lei inconstitucional não passa pelos planos legais, quais sejam, existência, validade e eficácia, pois esta, nunca existiu, justamente por irem de encontro à Constituição.

Infelizmente, os efeitos da inconstitucionalidade trazida pela alteração do art. 16, §2º, da Lei 8213/91 é o pior possível, afetando diretamente o campo social. A omissão do Estado em relação às verbas alimentares de pessoas que não têm como prover com seu próprio sustento é a típica “covardia legal” de um Estado que usa a lei para se esquivar de suas responsabilidades.

 

NOTAS:

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