Transformações familiares : aspectos da paternidade sócio-afetiva


Porbarbara_montibeller- Postado em 27 março 2012

Autores: 
SOUZA, Patrícia Verônica N. Carvalho Sobral de

I - INTRODUÇÃO

Toda pessoa, especialmente a pessoa humana em formação, tem direito à paternidade. O novo ordenamento jurídico estabeleceu como fundamental o direito à convivência familiar, adotando a doutrina da proteção integral. Principalmente a partir da Constituição de 1988, uma das mais avançadas do mundo em matéria de relações familiares, cujas linhas fundamentais foram regulamentadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e projetaram-se no Código Civil de 2002.

 A Lei Maior deu prioridade à dignidade de pessoa humana, alterando a feição patrimonialista da família. Coibiu discriminações à filiação, assegurando direitos idênticos e qualificações aos filhos nascidos ou não no casamento e aos filhos havidos por adoção (CF, 227, § 6º), contribuindo, dessa forma, para o surgimento de novos conceitos que retratam melhor a realidade atual: filiação social, filiação sócio-afetiva, estado de filho afetivo etc.

 O art. 1.603 do Código Civil diz que a filiação se prova pela certidão do termo de nascimento (registro civil), podendo ser de filiação biológica ou não. Bastando apenas a declaração de vontade, sem qualquer demonstração de prova biológica. Se houver erro ou falsidade do registro civil, admitir-se-á a vindicação de estado de filiação contrário ao declarado no mesmo (art. 1604 do código civil).

II - PRESSUPOSTOS E EVOLUÇÃO DA PATERNIDADE SÓCIO-AFETIVA

A questão da paternidade sócio-afetiva passou a ter relevância para o mundo do direito, em razão das transformações sociais e familiares ocorridas nos últimos tempos. Esta paternidade é aquela que se sobrepõe aos laços sanguíneos decorrentes das alterações familiares da atualidade: desconstituição das famílias, pai que não assume a paternidade, adoção e etc. Na verdade, é aquela em que aquele que não é pai ou mãe biológicos passa a tratar a criança ou adolescente, no âmbito de uma família, como filho, criando-o e sendo responsável pelo mesmo.

Berenice Dias[1]considera que “o ponto essencial da relação de paternidade não depende mais da exclusiva relação biológica entre pai e filho. Toda paternidade é necessariamente sócio-afetiva, podendo ter origem biológica ou não-biológica. A situação comum é a presunção legal de que a criança nascida biologicamente dos pais que vivem unidos em casamento adquire o status jurídico de filho. Paternidade biológica aí seria igual a paternidade sócio-afetiva. Mas há outras hipóteses de paternidade que não derivam do fato biológico, quando este é sobrepujado por outros valores que o direito considera predominantes. Se a família afetiva transcende os mares do sangue, se a verdadeira filiação só pode vingar no terreno da afetividade, se a autêntica paternidade/maternidade não se funda na verdade biológica, mas sim, na verdade afetiva, a ponto de o direito atual autorizar que se dê prevalência à filiação sócio-afetiva, esta só pode ser reconhecida na integralidade, com todos os seus efeitos ( e não somente no tocante ao direito sucessório).”

Em escrito publicado no número 1 da Revista Brasileira de Direito de Família[2]encontra-se distinção entre genitor e pai: “Pai é o que cria. Genitor é o que gera. Esses conceitos estiveram reunidos, enquanto houve primazia da função biológica da família. Afinal, qual a diferença razoável que deva haver, para fins de atribuição de paternidade, entre o homem dador de esperma, para inseminação heteróloga, e o homem que mantém uma relação sexual ocasional e voluntária com uma mulher, da qual resulta concepção? Tanto em uma como em outra situação, não houve intenção de constituir família. Ao genitor devem ser atribuídas responsabilidades de caráter econômico, para que o ônus de assistência material ao menor seja compartilhado com a genitora(...). Pai é aquele que cuida, educa, ensina, orienta, dá amor e carinho, brinca, leva à escola, etc.(...) A paternidade é múnus, direito-dever, construída na relação afetiva e que assume os deveres de realização dos direitos fundamentais da pessoa em formação à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar” (art. 227 CF). É pai quem assumiu esses deveres, ainda que não seja o genitor.”

III - POSSE DO ESTADO DE FILHO E PATERNIDADE SÓCIO-AFETIVA

Com a presença do vínculo afetivo paterno-filial, passou a se valorizar o parentesco psicológico, prevalecendo sobre a verdade biológica e a realidade legal. Os artigos 3º, inciso I e 229, combinados, da Constituição Federal ressaltam o princípio da solidariedade entre os membros da família, reciprocamente entre pais e filhos, cuja afetividade caracteriza este princípio jurídico.

Barboza, Heloisa Helena[3]preleciona que cabe ao direito identificar o vínculo de parentesco entre pai e filho como sendo o que confere a este a posse de estado filial e ao genitor as responsabilidades decorrentes do poder familiar. O parentesco corresponde ao vínculo consangüíneo, bastando lembrar da adoção e da fecundação heteróloga.

Para Madaleno, Rolf[4], a noção de posse de estado de filho não se estabelece com o nascimento, mas com o ato de vontade, que se sedimenta no terreno da afetividade, colocando em xeque tanto a verdade jurídica, quanto a certeza científica no estabelecimento da filiação. Zeno Veloso[5]comunga de idêntico pensamento.

 No Código Civil Comentado de Paulo Luiz N. Lôbo[6], pg. 95, encontram-se três aspectos aceitos pela doutrina para o reconhecimento da posse do estado de filho: 1)tractatus – quando o filho é tratado como tal, criado, educado e apresentado como filho pelo pai e pela mãe; 2) nominatio – quando usa o nome da família e assim se apresenta; 3) reputatio – quando é conhecido pela opinião pública como pertencente à família de seus pais. Trata-se de conferir à aparência os efeitos de verossimilhança que o direito considera satisfatória.

A paternidade é encargo assumido voluntariamente ou imposto pela lei visando à formação integral da criança e do adolescente e que se solidifica com a convivência familiar. Se os pais se separarem após o registro, o vínculo de parentalidade não se extinguirá. Permanecendo a posse de estado de filiação, não há como anular o registro.

IV - A OPÇÃO DO LEGISLADOR BRASILEIRO PELA PATERNIDADE SÓCIO-AFETIVA

Paulo Lôbo[7]ensina que “a investigação de paternidade só é cabível quando não houver paternidade, nunca para desmanchá-la. É incabível o fundamento da investigação da paternidade biológica, para contraditar a paternidade sócio-afetiva já existente, no princípio da dignidade da pessoa humana, pois este é uma construção cultural e não um dado da natureza”. Este entendimento se materializa na esclarecedora decisão: Processo REsp 833.712/RS Relator(a) Ministro NANCY ANDRIGHI Órgão Julgador T3 - TERCEIRA TURMA Data do Julgamento 17.05.2007 Data da Publicação/Fonte DJ 04.06.2007:  Direito civil. Família. Recurso especial. Ação de investigação de paternidade e maternidade. Vínculo biológico. Vínculo sócio-afetivo.“A adoção à brasileira, inserida no contexto de filiação sócio-afetiva, caracteriza-se pelo reconhecimento voluntário da maternidade/paternidade, na qual, fugindo das exigências legais pertinentes ao procedimento de adoção, o casal (ou apenas um dos cônjuges/companheiros) simplesmente registra a criança como sua filha, sem as cautelas judiciais impostas pelo Estado, necessárias à proteção especial que deve recair sobre os interesses do menor. O reconhecimento do estado de filiação constitui direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, que pode ser exercitado sem qualquer restrição, em face dos pais ou seus herdeiros. O princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, estabelecido no art. 1º, inc. III, da CF/88, como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, traz em seu bojo o direito à identidade biológica e pessoal.”

 

Ainda, nas palavras dePaulo Luiz N. Lôbo[8],existem estudos antropológicos, psicológicos e sociológicos que indicam ser a paternidade expressão e simbiose sócio-afetiva resultante de uma construção de convivência, ao passo que o laço biológico caracteriza o genitor como apenas um dado da Ciência. Imagine a hipótese de um pai biológico requerer, por meio de ação judicial, o reconhecimento do filho nascido de uma relação amorosa ocorrida há muitos anos. Pode ser que a paternidade afetiva já esteja configurada, considerando-se como pai aquele que criou, educou e cuidou do filho nos momentos mais difíceis da sua vida. Não seria, portanto, aceitável que essa verdadeira relação fosse peremptoriamente desconsiderada em favor de um simples elo biológico que, in casu, nada significa em termos de consideração familiar.

 

O professor Silvio Venosa[9]mencionou, em sua palestra, um caso ocorrido em Portugal, onde lá não existe o reconhecimento da família sócio-afetiva, foi o caso do sargento Gomes que recebeu um mandado de entrega da filha sócio-afetiva ao pai biológico que nunca tinha visto a menina, não possuía condições econômicas, nem morava naquela cidade, ficando o sargento (pai de criação) apenas com o direito de visita. Isto comprova que o direito de família está em defasagem em alguns países do mundo ocidental. Disse, mais, que os Tribunais Brasileiros estão respondendo com eficiência à dignidade da pessoa humana, ao amor, ao afeto, sobretudo nos Tribunais Gaúchos. Em sua mensagem final, alertou que os juristas não devem apenas observar o texto legal, mas, sim, os princípios embutidos nos fenômenos sociais e, acima de tudo, compreendê-los.

 

V -  CONCLUSÃO

Diante do exposto, pode-se perceber a importância do tema e a necessidade de reestruturação do sistema de atribuição da paternidade, a partir dos princípios constitucionais, de forma que os direitos dos filhos e dos pais sejam resguardados pela ótica do intérprete para o verdadeiro atendimento da felicidade e do bem comum familiar com afeto.

 

Utilizando a inteligência das palavras de Rafael DÁvila Barros Pereira[10]que considera não ser o registro de uma paternidade sócio-afetiva condição sine qua non para sua existência. Urge salientar que o registro assim promovido não prejudicará a paternidade sócio-afetiva daquele outro pai. Entretanto, o verdadeiro pai sócio-afetivo, não deve se preocupar com o registro, não deve se voltar simplesmente às formalidades legais. Esta paternidade presume amor, carinho, afeto, criação, convivência com a criança. E isto o registro não pode conferir e nem possui a idoneidade para extinguir.

 

REFERÊNCIAS  BIBLIOGRÁFICAS

 

        BARBOSA, Heloísa Helena. Novas Relações de Filiação e Paternidade. IN: PEREIRA, Rodrigo da Cunha, (coord.) Anais do I Congresso Brasileiro de Direito de Família. Repensando o direito de família. Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p.135-142.

       CAHALI, Yussef  Said. Código Civil, Código de Processo Civil, Constituição Federal. 8ª Ed. São Paulo: RT, 2006.

DIAS, Maria Berenice Dias. Manual de Direito das Famílias. 4ª Ed. São Paulo: RT, 2007,pg.320.

DINIZ, Maria Helena. Código Civil Anotado. 11ª  ed. São Paulo: Saraiva, 2005.

 

      LÔBO, Paulo Luiz Netto. Paternidade Socioafetiva e a Verdade Real. Revista CEJ, Brasília, n. 34, p.15-21, jul./set. 2006.

       MADALENO, Rolf Hanssen.Direito de Família em Pauta. Porto Alegre: Liv. Advogado, 2004.

       PEREIRA, Rafael DÁvila Barros. Dois pais e uma mãe. Condição para paternidade sócio-afetiva? Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1758, 24 abr. 2008. Disp. em: com 13 jun. 2008.

     REVISTA BRASILEIRA DE DIREITO DE FAMÍLIA nº 01 (O exame de DNA e o princípio da  dignidade da pessoa humana, p. 72).

    <https://www.stj.gov.br/>. Acesso em: 07/09/09

    VELOSO, Zeno. Direito brasileiro da filiação e da paternidade. São Paulo: Malheiros, 1997.




[1]Manual de Direito das Famílias, pg.320 e seguintes.

[2]O exame de DNA e o princípio da dignidade da pessoa humana, p. 72

[3]Novas Relações de Filiação e Paternidade, pg.141

[4]Direito de Família em pauta, pg. 22

[5]Direito Brasileiro da Filiação e da Paternidade, pg.36

[6]Código Civil Comentado, pg. 95

        [7] ArtigoPaternidade Sócio-afetiva e a Verdade Real. Rev. CEJ, Brasília, n. 34, p. 15-21, jul./set. 2006.

 

         [8] ArtigoPaternidade Sócio-afetiva e a Verdade Real. Rev. CEJ, Brasília, n. 34, p. 15-21, jul./set. 2006.

[9]Jornada Internacional de Direito em Gramado- RS, junho 2008

    [10] Artigo: “Dois pais e uma mãe. Condição para paternidade sócio-afetiva?”Jus Navigandi, ano 12, n. 1758.