Tutela jurídica dos interesses do embrião nos contratos de doação


Porbarbara_montibeller- Postado em 20 março 2012

Autores: 
MARTINS, Adelaide de Andrade França

SUMÁRIO

 

1. Introdução; 2. Conceito e Características do Contrato de Doação; 3. O Embrião e a Tutela de seus Direitos; 4. O Biodireito; 5. Conclusão; 6. Bibliografia.

 

 

RESUMO: O presente artigo busca trazer breve discussão sobre a proteção dos direitos do embrião nos contratos de doação, em face do projeto de lei 6960/02, levantando alguns pontos relevantes quanto à necessidade de regulamentação do biodireito.

 

PALAVRAS-CHAVE: Embrião. Contrato de Doação. Tutela. Biodireito.

 

 

1 INTRODUÇÃO

 

Dentre as diversas modalidades de contrato existentes, o contrato de doação se destaca por se tratar de uma liberalidade do doador beneficiando o donatário de alguma forma. Para o embrião, ainda não há a possibilidade de se promover esse tipo de contrato, visto que não recebeu acolhida no nosso ordenamento jurídico. Como as pesquisas científicas avançam na direção de uma maior utilização do embrião nas técnicas de reprodução assistida, dentre outras, essa regulamentação é premente.

 

2. CONCEITO E CARACTERÍSTICAS DO CONTRATO DE DOAÇÃO

 

O contrato de doação, como uma das várias espécies de contratos, está conceituado no nosso Código Civil, em seu artigo 538: “Considera-se doação o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra”.

 

Como salienta Gonçalves[1](2009) a presença de conceitos no Código Civil não é algo comum, tendo em vista a função precípua do dispositivo legal de estatuir normas e comandos, ficando a cargo da doutrina fazê-lo. Contudo, essa opção legislativa quis resolver a controvérsia sobre a natureza contratual da doação, não aceita por muitos.

 

Esse autor ressalta que o código civil francês e o italiano de 1942, que se filiou àquele, equiparam-na ao testamento, como forma particular de aquisição da propriedade. O Código Civil brasileiro, acertadamente em sua opinião, assim como o alemão e o suíço, a adotou como uma das espécies de contrato, prevista no artigo 538, exposto acima.

 

Gonçalves (2009, p. 255) destaca ainda as características do contrato de doação extraída do seu conceito legal: “a) a natureza contratual; b) o animus donandi, ou seja, a intenção de fazer uma liberalidade; c) a transferência de bens para o patrimônio do donatário; e d) a aceitação deste.” Adotando como principais características: o animus donandi, que é o elemento subjetivo, e a transferência de bens, diminuindo o patrimônio do doador, como elemento objetivo. A aceitação pode ocorrer de várias formas: expressa, tácita, presumida ou ficta.

 

Para Pablo Stolze e Pamplona Filho[2](2009, p. 97), contrato de doação é “um negócio jurídico firmado entre dois sujeitos (doador e donatário) por força do qual o primeiro transfere bens, móveis ou imóveis para o patrimônio do segundo, animado pelo simples propósito de beneficência ou liberalidade”.

 

Para Gonçalves (2009, p. 256) “predomina, na moderna dogmática, a concepção contratualista, tendo em vista que a doação requer a intervenção de duas partes, o doador e o donatário, cujas vontades hão de se completar para que se aperfeiçoe o negócio jurídico.” Exigindo-se assim, no contrato de doação, a mesma capacidade ativa requerida para os contratos em geral, conclui o autor.

 

A capacidade passiva para firmar esses contratos pertence a “todos aqueles que podem praticar os atos da vida civil, sejam pessoas naturais ou pessoas jurídicas de direito privado, e, por exceção, o nascituro, conforme art. 542 do Código Civil, em função do caráter benéfico do ato.” Gonçalves (2009, p. 256)

 

Para que o nascituro exerça esse direito terá que ser representado, conforme o disposto no artigo 542 do mesmo código: “A doação feita ao nascituro valerá, sendo aceita pelo seu representante legal”.

 

3. O EMBRIÃO E A TUTELA DOS SEUS DIREITOS

A definição de embrião segundo o dicionário é o “germe ou rudimento de um organismo, um ser vivo; germe fecundado que ainda não é feto”. O nascituro, por sua vez, é aquele “concebido mas ainda não dado à luz; aquele que há de nascer”. Entretanto, a regra estabelecida para doações ao nascituro não se aplica ao embrião, pois este último não se confunde com o primeiro.

Na tentativa de se tutelar os direitos do embrião o Deputado Ricardo Fiúza encaminhou ao Congresso Nacional em 2002, o Projeto de Lei nº 6960[3], com a alteração do artigo 2º que passaria a ter a seguinte redação: “A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do embrião e do nascituro” (grifo nosso).

 

Com essa propositura aceita, o embrião passaria a gozar dos mesmos direitos que o nascituro, inclusive patrimoniais, embora o artigo 542 não tenha feito parte do PL 6960/02. Na Comissão de Constituição, Justiça e Redação, cujo relator foi o Deputado Vicente Arruda, a referida mudança foi rejeitada com o argumento de que “a matéria deveria ser tratada em lei especial pelos aspectos técnicos e éticos que refogem o direito”.

 

Ocorre que esse tema já fora deixado de lado no próprio bojo da elaboração do código civil, como expressam as palavras de um dos membros da Comissão Elaboradora e Revisora do referido Código, Prof. Miguel Reale[4](2005, p. 51), que justifica os motivos da exclusão da proteção dos direitos do embrião:

 

 “(...) obedecendo-se sempre a diretriz de não incluir no Código senão matéria dotada de devida experiência crítica, e que, ademais, não implicasse normas metajurídicas, como se dá, por exemplo, com a questão da filiação extra-uterina, (...), até de normas administrativas indispensáveis à proteção do sêmen, para salvaguarda da legítima paternidade”.

 

Maria Helena Diniz[5](2003, p. 219) tece sua opinião sobre o assunto concordando com a exclusão do tema no código civil, também pela mesma razão, senão vejamos:

(...) Deixa, acertadamente, para a legislação especial a disciplina de questões polêmicas ou dependentes de pronunciamentos jurisprudenciais e doutrinários. Por isso, nada dispõe sobre contratos eletrônicos, (...), clonagem humana, efeitos jurídicos decorrentes das novas técnicas de reprodução humana assistida, medidas socioeducativas aplicadas à criança e ao adolescente, etc. (grifo nosso)

 

Esgotadas as possibilidades de inserção desse direito no Código Civil, urge então a necessidade de se regulamentá-lo por lei especial[6], como já apregoado e defendido pelos juristas citados acima. Sabemos também que há uma pressão de cunho religioso que compõe e fortalece essa corrente contrária à normatização pela via da codificação.

 

4. O BIODIREITO

 

Para Loureiro[7](2009) o biodireito é um ramo novo do direito, mas que deverá se comprometer com a criação de normas que venham a validar a principal dicotomia do código civil, que é o direito das pessoas e o direito das coisas, de modo a não permitir que seja dado ao embrião o tratamento de “coisa” que poderá vir a ser objeto de comercialização ou utilizado como “meio para se atingir determinados fins”. Por isso, o direito precisa se manifestar no sentido de criar normas coercitivas para o biodireito de modo a exigir o respeito à dignidade da pessoa humana.

Embora o nosso ordenamento jurídico tenha adotado a teoria natalista pela leitura do artigo 2º do código civil, a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, onde só há personalidade jurídica a partir do nascimento com vida, essa autora afirma que o embrião, desde o momento da fecundação, já está inserido no mundo jurídico, adquirindo também a personalidade jurídica e passando a ser sujeito de direitos e deveres.

Tanto para essa teoria, quanto para a concepcionista, a discussão não se encerra na titularidade dos direitos patrimoniais do não nascido, mas tão-somente nos efeitos desses direitos, que dependem do nascimento com vida. Desta forma, o embrião e o nascituro enfrentam a mesma condição suspensiva na aquisição do seu direito.

 

5. CONCLUSÃO

A existência do embrião in vitro remonta quase 25 anos, quando nasceu o primeiro bebê de proveta do nosso país. O que está em discussão atualmente não é mais a existência ou não do embrião, mas o que fazer com o embrião excedente, ou seja, aquele que não foi fecundado e encontra-se em laboratório para descarte[8].

No estágio atual e irreversível em que se encontram as pesquisas científicas sobre reprodução humana assistida, dentre outras técnicas, é premente a regulamentação da matéria, principalmente para criar limites ao uso de material humano nessas pesquisas. Dada a impossibilidade desse regramento no Código Civil, pelos motivos acima expositados, só resta a via de uma lei especial, para atendimento das carências protetivas desses direitos.

Em que pese a Lei de Introdução ao Código Civil possibilitar fazer a integração do ordenamento jurídico, suprindo suas lacunas, é imperiosa a criação de uma regulamentação para a proteção dos direitos da personalidade do embrião, especialmente os patrimoniais.

 

6. BIBLIOGRAFIA

 

BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Nova edição. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

 

FERNANDES, Francisco, LUFT, Celso Pedro e GUIMARÃES, F. Marques. Dicionário Brasileiro Globo. 24 ed. São Paulo: Globo, 1992.

 

GAGLIANO, Pablo Stolze e PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil. Contratos em Espécie. 2ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2009.

 

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro. Contratos e atos unilaterais. Vol. II. 6ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2009.

 

LOUREIRO, Claudia Regina Magalhães. Introdução ao Biodireito. São Paulo: Saraiva, 2009.

 

REALE, Miguel. História do Novo Código Civil. Biblioteca de Direito Civil. Estudos em Homenagem ao Professor Miguel Reale. Vol. I. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005.

VADE MECUM Universitário de Direito. Coleção de Leis Rideel. Org. Anne Joyce Angher. 6ª edição. São Paulo: Editora Rideel, 2009.

 

Vários Autores. História do direito brasileiro. Organizador Eduardo C. B. Bittar. São Paulo: Atlas, 2003.

[1]Carlos Roberto Gonçalves. Direito Civil Brasileiro. Contratos e atos unilaterais. Vol. II. 6ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2009

[2]Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho. Novo Curso de Direito Civil. Contratos em Espécie. 2ª edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2009.

[3]Projeto de Lei nº 90/99 que diz respeito ao embrião tramita no Congresso em sentido diametralmente oposto ao anterior, mas que corrobora com o discurso do relator do PL 6960/2002 quando o rejeitou, no sentido de não proteger o embrião, negando-lhe qualquer garantia na esfera jurídica, conforme artigo 14, parágrafo segundo: “Não se aplicam aos embriões originados in vitro, antes de sua introdução no aparelho reprodutor da mulher receptora, os direitos assegurados ao nascituro na forma da lei”.

[4]Miguel Reale. História do Novo Código Civil. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2005

[5]Ainda segundo essa autora, essas matérias não estão “nos marcos do direito civil”, por compreenderem outros ramos jurídicos, levando à necessidade de seu regramento por normas especiais. A autora coloca ainda a necessidade da criação de um biodireito para corrigir os excessos provocados pelas pesquisas científicas, como também pelo desequilíbrio do meio ambiente, necessitando da elaboração de um Código Nacional de Bioética, para solucionar questões resultantes de práticas biotecnocientíficas;

[6]Norberto Bobbio afirma que, do ponto de vista teórico, “os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todas.” A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. p. 6.

[7]Claudia Regina Magalhães Loureiro. Introdução ao Biodireito. São Paulo: Saraiva, 2009.

[8]A Resolução nº 1358/92 do Conselho Federal de Medicina, proíbe o descarte e a destruição dos pré-embriões e limita a implantação de até quatro embriões nas fertilizações in vitro.