Abortos e uma possível mudança argumentativa: (Des)Criminalização?


Porwilliammoura- Postado em 14 dezembro 2011

Autores: 
AMARAL, Alberto Carvalho

 

Abortos e uma possível mudança argumentativa: (Des)Criminalização?

 

 

Alberto Carvalho Amaral

 

bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Pós-graduando em Ciências Penais, pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UniSUL). Pesquisador do Grupo Sociedade, Controle Penal e Sistema de Justiça, da Faculdade de Direito, da Universidade de Brasília (UnB).

 


 

Muito se discutiu acerca da criminalização do aborto. Vozes da sociedade, das mais distintas origens, já mostraram o quão intrigante é esta questão. Pode o Estado autorizar uma prática que, segundo determinadas religiões, ciências e doutrinas, ceifa uma vida inocente? Ou o Estado é autorizado a, em primeiro instante, pensar na coletividade para, apenas após, centrar-se no indivíduo? De fato, o que pretende a sociedade, de maneira mais condizente, nas discussões acerca da legalização do aborto, é o que pretendemos expor na presente resenha.

Segundo dados da Benfam, de 1998 (ou seja, há quase dez anos), a mortalidade oficial é de que uma mulher morre a cada 3 dias, vítima de um aborto mal sucedido. Veja-se que há um índice muito grande que fica oculto, de meninas que se voltam para o aborto de modo oficioso, em clínicas clandestinas ou em grandes clínicas, com altos pagamentos. Nesse ano, 1998, foram 3,58 mortes para cada 100.000 nascimentos vivos, ou, ainda, para cada 25.000 crianças nascidas vivas. Das 119 mulheres que tiveram o aborto declarado como causa de suas mortes, apenas 70% delas receberam tratamento médico. (Fonte: Sua pesquisa).

Atualmente, há hipóteses previstas no Código Penal que autorizam o aborto, quais sejam, (a) quando a concepção da criança foi fruto de alguma violência; (b) haja perigo de morte para a mãe. Nestes casos, o Juiz autoriza o aborto, inexistindo qualquer crime. Quanto às demais hipóteses, a realização de aborto caracterizaria o crime previsto nos artigos 124 e seguintes do Código Penal.

Contudo, há outras hipóteses que são altamente discutidas, como o presente embate, ainda em discussão no Supremo Tribunal Federal (ADPF n.º 58, rel. Min. Marco Aurélio), sobre o aborto dos anencéfalos, ou seja, de fetos que não possuem cérebro ou, ainda, que o possuem, mas de forma tão defeituosa, que não seriam capazes de viver por si só, sem auxílio de máquinas. Várias pessoas já se manifestaram, algumas com argumentos científicos, outras com jurídicos e religiosos, e ainda muito irá ser discutido sobre o fato do aborto, quando o feto não possui qualquer viabilidade de vida, ser crime. É razoável exigir que a mãe passe por todo esse sofrimento, durante pelo menos 9 meses, quando é seguro que a criança irá morrer? Ou, melhor, que a criança nunca irá viver de modo apartado dos aparelhos, vivendo sem sentimentos e raciocínio? Quais resquícios psicológicos uma mãe ficaria após essa situação desesperadora? Essa é, portanto, uma das discussões postas.

A discussão americana deu-se em razão de o porquê do aborto ser crime, já que, de um lado, várias mães diziam que, enquanto estavam na barriga, em gestação, aquilo não era uma vida autônoma, mas, sim, parte sua, e, portanto, ela poderia autolesionar-se para evitar a gravidez. De outro lado, as discussões acerca da identidade do feto como ser com vida independente da mãe, que merece ser resguardado jurídicamente.

A discussão nos EUA é bem diferente da nossa, já que lá cada Estado disciplina seu próprio direito penal. Então, entre 1967 e 1970, metade dos estados legalizaram o aborto, limitando a sua prática até o primeiro trimestre de gravidez (em regra), em caso de pedido, e a qualquer tempo, em caso de risco de morte para mãe.

Posteriormente, uma jovem texana levou a questão para a Suprema Corte americana, dizendo que o prazo fixado na lei (até o primeiro trimestre) seria inconstitucional, pois não deveria existir prazo qualquer. Este foi o caso Roe versus Wade, que, em 23.01.1973, teve por desfecho a consideração de que, com fundamento na 14ª Emenda, "a personalidade legal não existe nos Estados Unidos antes do nascimento". Ou seja, se não há personalidade legal do feto, não existiram direitos a serem protegidos. Assim, a Suprema Corte americana entendeu que o aborto, desde que autorizado por um médico, poderia ser realizado até antes do momento do nascimento.

Como devem ter percebido, a Suprema Corte dos EUA cometeu um erro primário na construção jurídica do pensamento. Considerou que o aborto protege apenas o indivíduo, aquele com personalidade legal. No Brasil, esse argumento é muito insuficiente, até porque protegemos, em nosso Código Civil, o direito dos nascituros, da mesma forma que uma pessoa, ainda não concebida, pode ser destinatária de um testamento...

Ora, a questão mais pujante, e a que rende mais discussões, não foi discutida pela Suprema Corte, se o feto possui ou não vida. Se o que o feto tem pode ser considerada vida, para fins de proteção jurídica. Pois, se ele possui vida, a morte dele é um crime contra a vida, o denominado aborto. Se não possui, não há qualquer delito (ao menos em tese), pois seria uma lesão consentida pela mãe, em um órgão que lhe pertence.

A discussão ainda renderá bastantes frutos, mas é bom que tenhamos opiniões abertas e embasadas cientificamente, não envolvida em argumentos religiosos (apenas). E, como já visto em nossos breves dados desatualizados, é um grave problema público, que onera os nossos cofres e, além disso, eventualmente fere direitos subjetivos de muitas mães. Ou seja, fere a dignidade humana de várias brasileiras.