O direito de nascer do ventre de mãe morta e demais questões afins


Pormarina.cordeiro- Postado em 26 março 2012

Autores: 
ALVES, Leonardo Barreto Moreira

"Rede de surfistas no mar, ligados no computador, novas maravilhas pra se admirar, não me venha com a velha dor. O trem da juventude é veloz, quando foi olhar já passou, os trilhos do destino cruzando entre nós pela vida trazendo o novo" – Herbert Vianna

"A vida tem prioridade sobre todas as coisas, uma vez que a dinâmica do mundo nela se contém e sem ela nada terá sentido" – Maria Helena Diniz


SUMÁRIO: INTRODUÇÃO; 1. A PROTEÇÃO À VIDA E À DIGNIDADE HUMANA COMO LIMITE AOS AVANÇOS CIENTÍFICOS; 2. A PERSONALIDADE JURÍDICA; 3. O INÍCIO DA PERSONALIDADE JURÍDICA; 3.1. Breves noções acerca do nascituro; 3.2. Teorias acerca do início da personalidade jurídica; 3.3. A teoria adotada pelo Código Civil; 3.4. Crítica à teoria adotada pelo CC; 3.5. Definição de conceitos necessários à adoção da teoria concepcionista; 3.5.1. Conceito de "concepção"; 3.5.2. A representação processual como forma de suprir a incapacidade do nascituro; 3.5.3. Aplicação da teoria concepcionista ao caso Marion; 4. O DIREITO DE NASCER E O ABORTO; 5. A PROTEÇÃO À INTEGRIDADE FÍSICA E A DOAÇÃO DE ÓRGÃOS; 6. O DIREITO À MORTE DIGNA. QUESTÕES POLÊMICAS; CONCLUSÃO; BIBLIOGRAFIA.


INTRODUÇÃO

O presente artigo tem a pretensão de responder à indagação um tanto quanto tormentosa e que interessa à toda a sociedade, especialmente aqueles preocupados no progresso científico da Humanidade sem prejuízo da vida e do bem estar de cada indivíduo: é juridicamente possível ser mãe depois de morta?

Para tanto, parte-se da análise de um caso verídico bastante conhecido no meio acadêmico e que instigou os juristas a apresentarem uma solução pacífica para o litígio em jogo, o que acabou não acontecendo.

Em 5 de outubro de 1992, Marion Ploch, grávida de 13 semanas, sofreu um grave acidente de carro, o que provocou fratura de crânio. Seus pais receberam a notícia de que não havia chances de sobrevivência.

Em um primeiro momento, os médicos pretendiam obter da família a permissão para a doação de órgãos, posto que não acreditavam na sobrevivência do feto. Entretanto, os pais recusaram o pedido.

Em seguida, outro grupo de médicos não confiava na recuperação de Marion, mas apontava chances de sobrevivência para o feto.

Estes médicos conseguiram o consentimento dos pais da paciente para mantê-la com os aparelhos que permitiriam o funcionamento de suas funções vitais.

Em 8 de outubro, foi confirmada a morte cerebral, mas o respirador não foi desligado.

Com todo o esforço possível, os médicos tentaram manter o feto vivo. Em virtude disso, o nascimento, por meio de operação cesariana, foi planejado para março de 1993.

Destarte, em 16 de novembro de 1992, um aborto espontâneo aconteceu a Marion Ploch e o feto nasceu morto.

Os pais recusaram a autópsia da mãe e do feto. Caso fosse realizada, esclareceria os motivos do aborto espontâneo.

Inicialmente, devem ser feitos esclarecimentos acerca dos conceitos básicos para a discussão da matéria, tais como personalidade jurídica, nascituro, direito ao nascimento, à vida digna e à integridade física, à morte digna, o aborto e a doação de órgãos.

A seguir, os bens jurídicos em questão são postos em conflito para que se conclua qual aquele de maior relevância e que, por isso, merece prevalecer.

Assim, por exemplo, já há de se indagar: é preponderante a integridade física do cadáver materno, seu direito à morte digna, ou a vida de um ser que está pronto para nascer?

Inúmeras outras questões incidentais vão surgir ao longo deste trabalho, todas ligadas, direta ou indiretamente, ao tema principal.

Põe-se em discussão, nesse contexto, se é cabível a doação de órgãos ou mesmo a prática da eutanásia da genitora com morte cerebral enquanto o seu filho persiste com chances de ser gerado com vida.

Ressalte-se, ainda, que todas as considerações aqui explicitadas têm como base o ordenamento jurídico brasileiro, independente do local de ocorrência do fato.

A verdade é, sem dúvidas, historicamente relativa. Feliz daquele que consegue enxergar o maior número de faces deste objeto cultural, mas inexiste quem tenha conseguido mapear todas as suas vertentes.

Desse modo, não há como apontar aqui a verdade absoluta, a solução única para todos os males, especialmente em se tratando de matéria de Bioética e Biodireito.

Porém todos nós procuramos uma resposta provisória aos problemas que nos afligem. Nesse sentido, a caminhada é longa e árdua, mas só pode ser concluída depois de traçados todos os passos em direção à reta de chegada.

Que mais um passo seja dado com as sugestões oferecidas na presente pesquisa, ainda que ele seja lento e periclitante. A sorte está lançada.


1. A PROTEÇÃO À VIDA E À DIGNIDADE HUMANA COMO LIMITE AOS AVANÇOS CIENTÍFICOS

A sociedade industrial, descendente da máquina, produtora de artigos em série padronizados, celebra as núpcias da Ciência com a liberdade individual do burguês capitalista para gerar o progresso, a expansão, a explosão, o boom, e cria o chamado projeto iluminista da modernidade: o desenvolvimento material e moral do homem pelo conhecimento [1].

A essa dama pode ser creditado o imenso progresso das nações capitalistas, fundado nas grandes fábricas, ferrovias, navegação e exploração.

Com ela vieram o automóvel, o avião, o telégrafo, o telefone, o rádio, a televisão, a TV a cabo, o computador doméstico, o petróleo, a eletrecidade, o crédito ao consumidor, a publicidade, a cibernética, a robótica industrial, a astronáutica, as terapias psicológicas, a climatização, técnicas de embelezamento, trânsito computadorizado, Internet, videogame etc.

No campo das ciências biológicas, as inúmeras inovações revolucionaram o cenário mundial, merecendo destaque a tecnologia dos alimentos (incluindo os transgênicos), a medicina nuclear e a biologia molecular (a descoberta do DNA, o projeto Genoma, as inseminações artificiais, a fertilização in vitro e a clonagem).

A perspectiva de alcançar novos horizontes (cada vez mais próximos) através da ciência faz o homem sonhar com um mundo perfeito, sem sofrimentos ou doenças, onde até mesmo a morte está posta em xeque [2].

Provoca a celebração máxima e sublime da existência humana neste planeta, um otimismo incomensurável e ilimitado a ponto de cada indivíduo realmente acreditar em um final feliz e eterno da História, idéia tão bem ilustrada nas telas do cinema, como na obra prima de Stanley Kubrick, 2001 – Uma Odisséia no Espaço.

Para que estes sonhos e utopias sejam concretizadas, entretanto, muitas vezes privilegia-se o resultado, o fim, em detrimento dos meios utilizados, o que mais denota uma prática de cunho maquiavélica.

Com a intenção de freiar certas práticas de consequências perenes e deletérias ao homem, indaga-se: há limite para os avanços científicos? Há réquiem para estes sonhos?

Os avanços que os diversos ramos da ciência promovem são todos do homem, pelo homem e para o homem. Ilógico é tratar o ser humano como meio e não como fim desta atividade.

Nada pode estar além dele, tudo deve voltar-se para ele. Que sentido existirá em uma inovação que viole a condição humana? Não é admissível que a criatura vença o criador.

Por isso, indubitável que o limite aos avanços científicos é a própria vida humana. O primado da Bioética e do Biodireito é a realização do máximo direito da personalidade, o início e a razão de ser de tudo que há neste mundo.

O ponto de partida para o estudo de qualquer outro direito é a inviolabilidade da vida. É o primeiro direito que todos nós adquirimos com o nascimento, com a obtenção da personalidade jurídica; é a fonte originária de todas as outras faculdades subjetivas.

Bastante elucidativa, neste contexto, é a lição de Gebler [3] ao estatuir que o direito deve aceitar as descobertas científicas cuja utilização não se demonstre contrária à natureza do homem e de sua dignidade. Devem ignorar as ciências tudo que estiver em detrimento do homem.

De nada adiantaria a proteção a direitos fundamentais como a igualdade, a intimidade, a liberdade, o bem-estar, se não erigisse a vida humana em um desses direitos [4].

Somente nesse contexto é que se compreende a proibição e punição ao aborto, à eutanásia, ao erro ou imprudência terapêutica, à pena de morte e a não aceitação do suicídio.

No dizer de Jacques Robert [5], o respeito à vida humana é a um tempo uma das maiores idéias de nossa civilização e o primeiro princípio da moral médica.

Como direito da personalidade, trata-se de direito absoluto, cogente, indisponível, irrenunciável e intransmissível que, nas palavras de Pontes de Miranda [6], se manifesta desde a concepção – ainda que artificialmente – até a morte.

Além disso, possui nítido caráter negativo, ou seja, em semelhança aos direitos reais, é oponível erga omnes, toda a coletividade está obrigada a respeitá-lo.

Nem mesmo o próprio titular da faculdade sub occulis pode desrespeitá-la, pois é cediço que não se vive apenas para si mesmo, mas também para a sociedade.

O direito à vida é protegido por normas jurídicas de todo o mundo em razão de ser comum a todo e qualquer ser humano.

A Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, em 04 de julho de 1776, já proclamava, in verbis:

"Consideramos estas verdades como evidentes por si mesmas, que todos os homens foram criados iguais, foram dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade (grifo nosso)".

A Declaração Universal dos Direitos do Homem, datada de 10 de dezembro de 1948, no seu Preâmbulo, assevera, in verbis:

"Considerando que os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, e na igualdade de direitos do homem e da mulher, e que decidiram promover o progresso social e melhores condições de vida em uma liberdade mais ampla... (grifo nosso)".

E, no artigo III, assim dispõe, in verbis:

"Artigo III. Todo homem tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal (grifo nosso)".

A Declaração sobre a Utilização do Progresso Científico e Tecnológico no Interesse da Paz e em Benefício da Humanidade, de autoria da ONU em 10 de novembro de 1975, no seu artigo 6º, esclarece, in verbis:

"Todos os Estados adotarão medidas tendentes a estender a todos os estratos da população os benefícios da ciência e da tecnologia e a protegê-los, tanto nos aspectos sociais quanto morais, das possíveis consequências negativas do uso indevido do progresso científico e tecnológico, inclusive sua utilização indevida para infringir os direitos do indivíduo ou do grupo, em particular relativamente ao respeito à vida privada e à proteção da pessoa humana e de sua integridade física e intelectual (grifo nosso)".

A Convenção sobre Direitos Humanos e Biomedicina, no seu artigo 2º, reitera, in verbis:

"Os interesses e o bem-estar do ser humano devem prevalecer sobre o interesse isolado da sociedade ou da ciência".

No Brasil, a Carta Magna estabelece, no artigo 5º, caput, a inviolabilidade do direito à vida como garantia fundamental de todo cidadão, in verbis:

"Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes... (grifo nosso)".

Por força do artigo 60, § 4º, IV, do Texto Constitucional, não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir a matéria ora em discussão.

Trata-se, pois, de cláusula pétrea, só podendo ser alterada pela feitura de uma nova Constituição.

A Carta Magna vai além da proteção à vida e estipula, como princípio vetor da República Federativa do Brasil, no seu artigo 1º, III, o direito a uma vida digna (dignidade da pessoa humana).

Assim, não se tutela tão-somente a existência do indivíduo, mas também a ele será assegurado o direito de viver dignamente, respeitando sua condição de ser humano.

Não se pode admitir, em virtude deste princípio, que o homem seja tratado como res, objeto de direito. Em verdade, a todo e qualquer instante ele é sempre sujeito de direito, titular de faculdades subjetivas.

A dignidade da pessoa humana vem a caracterizar aquilo que Noberto Bobbio [7] denominou de verdadeira personalização do Direito.

É com fulcro nos princípios insculpidos no art. 1º, III, e 5º, caput, que a Constituição, ao longo do seu corpo, elenca diversos outros, os quais também servirão como limites aos avanços científicos, tais como a prestação de alimentos (arts. 5º, LXVII, e 229), a tutela da saúde (arts 194 e 196), da ciência e tecnologia (art. 218), do patrimônio genético (art. 225, § 1º, II), dos deficientes físicos (arts. 203, IV, e 227, § 1º, II), do nascituro, da criança e do adolescente (art. 227) e do idoso (art. 230).

E mais, estabeleceu como um dos pilares de sustentação da ordem econômica nacional a valorização do trabalho, com a finalidade de propiciar existência digna e distribuir justiça social, através da redução das desigualdades sociais (art. 170).

Um dos objetivos fundamentais da República Federativa é construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I, CF), bem como promover o bem-estar de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV).

Há, ainda, a prevalência dos direitos humanos e cooperação entre os povos para o progresso da humanidade (art. 4º, II e IX) e a não submissão a tratamento desumano ou degradante, inviolabilidade da consciência e livre expressão da atividade científica (art. 5º, III, VI e IX).

No plano infraconstitucional, há consideráveis aplicações dos princípios supra mencionados.

No Código Civil de 1917, pertinente ressaltar a proteção ao nascituro (art. 4º) e à existência (arts. 396 a 405, 1537 e 1539).

As Leis 5.478/68, 8.971/94 (art. 1º e parágrafo único) e 9.278/96 (art. 7º) reforçam o direito à existência.

A Lei nº 8.974/95, no art. 13 e parágrafos, também é nesse sentido.

O Novo Código Civil protege o nascituro (art. 2º), além de regulamentar os direitos da personalidade (arts. 11 a 21).

O Código Penal elenca, do artigo 121 ao 128, os crimes contra a vida, incluindo as formas específicas do aborto.

O Código de Ética Médica (Resolução CFM nº. 1.246/88), no artigo 6º, estatui que o médico deve sempre garantir respeito absoluto à vida humana, in verbis:

"Art. 6º. O médico deve guardar absoluto respeito pela vida humana, atuando sempre em benefício do paciente. Jamais utilizará seus conhecimentos para gerar sofrimento físico ou moral, para o extermínio do ser humano, ou para permitir e acobertar tentativa contra sua dignidade e integridade (grifo nosso)".

Assim, sempre que estiverem em jogo a vida e qualquer outro direito, aplicando-se o princípio da proporcionalidade, prevalecerá aquela. Dessa forma ensina Maria Helena Diniz [8], in verbis:

"A vida tem prioridade sobre todas as coisas, uma vez que a dinâmica do mundo nela se contém e sem ela nada terá sentido. Consequentemente, o direito à vida prevalecerá sobre qualquer outro, seja ele o de liberdade religiosa, de integridade física ou mental etc. Havendo conflito entre dois direitos, incidirá o princípio do primado do mais relevante. Assim, por exemplo, se se precisar mutilar alguém para salvar sua vida, ofendendo sua integridade física, mesmo que não haja seu consenso, não haverá ilícito nem responsabilidade penal médica".

Apesar desta comprovação cabal da primazia absoluta do direito à vida, no caso Marion a opinião pública entendeu não ser possível o nascimento do bebê ao fundamento de que a mãe deveria prevalecer sobre seu próprio filho, pois este seria parte do corpo daquela, além do que o feto não seria, ainda, titular de direitos face à inexistência de vida, a qual só estaria configurada com o nascimento.

O raciocínio é recheado de equívocos e para mitigá-los fundamental é obter a resposta a uma nova questão: juridicamente, quando se inicia a vida humana?

Em outros termos: em que momento o homem adquire personalidade para titularizar direitos e obrigações?

É o que será visto a seguir.


2. A PERSONALIDADE JURÍDICA

Persona, máscara utilizada pelos atores na Antiguidade, mas que, por um desvio de significado, passou a identificar o próprio papel representado, provavelmente é a origem do termo "pessoa".

Nos dias atuais, é juridicamente considerada "pessoa" todo aquele ente suscetível de contrair direitos e obrigações.

Nesse contexto, define-se a personalidade jurídica como sendo a aptidão genérica para titularizar direitos e contrair obrigações na órbita civil.

Assim, toda pessoa é sujeito de direito, ou seja, tem personalidade jurídica, conforme apregoa o art. 2º do Código Civil, in verbis:

"Art. 2º. Todo homem é capaz de direitos e obrigações na ordem civil".

Essa capacidade de direito ou de gozo pode não ser exercida pessoalmente pelo seu titular, surgindo, desse modo, a capacidade de fato ou de exercício.

O maior de 21 anos, em regra, é capaz para exercer pessoalmente os atos da vida civil. Além disso, o instituto da emancipação, disciplinada no art. 9º, parágrafos 1º e 2º do CC, permite a antecipação da capacidade civil plena.

Por outro lado, são incapazes, absoluta ou relativamente, os indivíduos elencados, nessa ordem, nos artigos 5º e 6º do CC, incapacidade essa suprida através dos institutos protetivos da representação e da assistência [9].

Destarte, há que se indagar: quando ocorre o início da personalidade jurídica no Direito Civil brasileiro?

É tema a ser explorado, de forma minunciosa, nos tópicos seguintes.


3. O INÍCIO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

3.1. Breves noções acerca do nascituro

Sob uma visão biológica, não há que se olvidar que o nascituro é o ente já concebido, mas ainda não nascido, ou seja, aquele que há de nascer.

Dúvidas residem somente nos seus caracteres jurídicos: tem o nascituro personalidade jurídica? Ou melhor, retomando o questionamento realizado no item anterior: afinal, quando se inicia a personalidade?

3.2. Teorias acerca do início da personalidade jurídica

A doutrina civilista pátria diverge quanto ao início da personalidade jurídica. Três foram as teorias formuladas para determinar este ponto de partida.

A primeira, mais antiga, foi a teoria negativista ou natalista, que apregoava o começo da personalidade a partir do nascimento com vida, não reconhecendo nenhum direito ao nascituro.

É entendimento pouco adotado nas legislações modernas, havendo poucas notícias no Direito Comparado.

Em reação diametralmente oposta, engendrou-se a segunda teoria, denominada afirmativista, concepcionista ou conceptualista. Ao contrário da anterior, sustentava que o nascituro já possuía natureza jurídica de sujeito de direito, pessoa no seu sentido técnico, pois a personalidade era plenamente adquirida, sem qualquer distinção, no momento da concepção.

Esta doutrina encontra adeptos como Teixeira de Freitas. No seu famigerado Esboço, entendia que a concepção era o início da personalidade.

Assim também Clóvis Beviláqua, que, no art. 3º do seu Projeto de Código Civil, adotou o conceptualismo como regra.

Modernamente, citam-se ainda Francisco Amaral [10] e R. Limongi França [11]. No direito alienígena, C. Massimo Bianca [12].

Como ponto de equilíbrio entre as duas teses acima aludidas, fomenta-se a teoria da personalidade condicional (personalidade desde a concepção sob a condição suspensiva do nascimento com vida, nos dizeres de Arnoldo Wald).

É aplicação dos ensinamentos do Direito Romano, sintetizados no brocardo nasciturus pro iam natu habetur quoties de eius commodis agitur.

3.3. A teoria adotada pelo Código Civil

Pela inspiração nitidamente romana, o Código Civil brasileiro de 1917 preferiu a tese da personalidade condicional, assim como toda a doutrina tradicional (Orlando Gomes [13], Sílvio Rodrigues [14] e Washington de Barros Monteiro [15]).

É a redação do seu artigo 4º, in verbis:

"Art. 4º. A personalidade civil do homem começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo desde a concepção os direitos do nascituro".

Nas palavras de Caio Mário [16], embora exista um ente, não tem ainda personalidade, vale dizer, ainda não é pessoa.

Dessa forma, a personalidade só seria obtida com o nascimento com vida, inobstante o falecimento instantes (até segundos) depois, mas, uma vez realizada tal condição, retroagiria ao nascituro.

Essa aparente contradição é esclarecida por Maria Helena Diniz [17], in verbis:

"Na vida intra-uterina, ou mesmo ‘in vitro’, tem personalidade jurídica formal, relativamente aos direitos da personalidade, consagrados constitucionalmente, adquirindo personalidade jurídica material apenas se nascer com vida, ocasião em que será titular dos direitos patrimoniais, que se encontravam em estado potencial, e do direito às indenizações por dano moral e patrimonial por ele sofrido".

Por esse raciocínio, o nascituro, enquanto permanecesse dentro da barriga materna (ou ainda in vitro), teria direitos atuais (adquiridos), na definição do artigo 74, III, do Código Civil., de natureza jurídica somente de direitos da personalidade. O direito à vida, por exemplo, já seria tutelado desde a concepção. Em razão disso, aplicar-se-ia a este pequeno ser o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III).

É a própria Maria Helena Diniz [18], com sua competência ímpar, quem cita casos na lei e na jurisprudência que autorizam o nascituro a pleitear danos extrapatrimoniais por violação a um ou alguns dos seus direitos da personalidade. Senão vejamos.

Em proteção à sua integridade física, o nascituro pode requerer danos morais por ter sido objeto de manipulações genéticas e experiências científicas de toda sorte, tais como uso de espermatozóide, reprogramação celular, congelamento ou comercialização de embriões excedentes, erro em cirurgias intra-uterinas, eristroblastose fetal, ausência de vacinação, transfusão de sangue contaminado no feto, recusa à transfusão sanguínea por motivo de crença religiosa dos pais, transmissão de doenças (AIDS, sífilis), omissões em terapias gênicas, medicação inadequada ministrada à gestante (exemplo clássico é o da Talidomida), radiações (raio-X), uso de fumo, bebidas alcoólicas e tóxicos pelos pais, aplicação errônea de hormônios, inocuidade de pílula anticoncepcional, problema ocorrido no parto por falha médica, uso de abortivos (como o DIU), a recusa da gestante de ingerir medicamento ou de se submeter a uma intervenção cirúrgica ou médica para preservar a saúde ou integridade física do nascituro etc.

Cabível, ainda, dano moral contra atos que violem a condição digna de pessoa do nascituro.

Emblemático é o fato denunciado pelo jornal católico italiano Avvenire: a empresa americana VipAdoption colocou à venda nascituros na Internet ao preço de US$ 12.000,00 (doze mil dólares) como forma alternativa à adoção.

No Brasil, o STJ já julgou caso semelhante ao entender que o tipo penal previsto no artigo 238 do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA ("prometer ou efetivar a entrega de filho ou pupilo a terceiro, mediante paga ou recompensa") também englobaria o nascituro, in verbis:

"Estatuto da Criança e do Adolescente. Crime de promessa de entrega de filho mediante paga ou recompensa. O vocábulo ‘filho’, empregado no tipo penal do art. 238 da Lei 8.069/90, abrange tanto os nascidos como os nascituros (grifado no original)". (STJ, 5ª Turma, Resp 48119/RS, rel. Min. Assis Toledo, j. 20.3.95 à unanimidade, DOU 17.4.95, p. 9.587).

O nascituro também tem direito à filiação. Nesse contexto, o mesmo STJ decidiu que há interesse de agir na ação de indenização por danos morais face a morte em acidente de seu pai, já que a ausência do genitor ao longo da sua vida trará transtornos de ordem psíquica incalculáveis, in verbis:

"Direito Civil. Danos Morais. Morte. Atropelamento. Composição Férrea. Ação ajuizada 23 anos após o evento. Prescrição inexistente. Influência na quantificação do quantum. Precedentes da Turma. Nascituro. Direito aos danos morais. Doutrina. Atenuação. Fixação nesta instância. Possibilidade. Recurso parcialmente provido.

I - Nos termos da orientação da Turma, o direito à indenização por dano moral não desaparece com o decurso de tempo (desde que não transcorrido o lapso prescricional), mas é fato a ser considerado na fixação do quantum.

II - Nascituro também tem direito aos danos morais pela morte do pai, mas a circunstância de não tê-lo conhecido em vida tem influência na fixação do quantum.

III - Recomenda-se que o valor do dano moral seja fixado desde logo, inclusive nesta instância, buscando dar solução definitiva ao caso e evitando inconvenientes e retardamento da solução jurisdicional (grifado no original)". (STJ, 4ª Turma, Resp 399028/SP, rel. Min. Sálvio de Figueiredo Teixeira, j. 22.2.02 à unanimidade, DOU 15.4.02, p. 232).

O Código Civil, em algumas passagens, firma outros direitos relativos à filiação, tais como aqueles insculpidos nos artigos 353, 357, parágrafo único, 372 ("não se pode adotar sem o consentimento do adotado ou de seu representante legal se for incapaz ou nascituro") e 377.

Ainda pertinente a esse estado da pessoa, pode o nascituro interpor ação de investigação de paternidade, consoante acórdãos do sempre avançado Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, in verbis:

"Nascituro. Investigação de Paternidade. A genitora, como representante do nascituro, tem legitimidade para propor ação investigatória de paternidade. Apelo provido". (TJRS, 7ª Câmara Cível, Apelação Cível nº 70000134635, rel. Des. Maria Berenice Dias, j. 17.11.99).

"Investigação de Paternidade. Nascituro. Capacidade para ser parte. Ao nascituro assiste, no plano do direito processual, capacidade para ser parte, como autor ou como réu. Representando o nascituro, pode a mãe propor a ação investigatória, e o nascimento com vida investe o infante na titularidade da pretensão de direito material, até então apenas uma expectativa resguardada. Ação personalíssima, a investigatória somente pode ser proposta pelo próprio investigante, representado ou assistido, se for o caso; mas, uma vez inicidada, falecendo o autor, seus sucessores têm direito de, habilitando-se, prosseguir na demanda. Inaplicabilidade da regra do art. 1621 do Código Civil". (TJRS, 1ª Câmara Cível, Apelação Cível nº 583052204, rel. Des. Athos Gusmão Carneiro, j. 24.04.84).

Esclarecida a personalidade formal do nascituro, cumpre observar pontos relevantes daquilo que Maria Helena Diniz denominou personalidade jurídica material.

Esta só seria obtida a partir do nascimento com vida, inexistindo na fase intra uterina ou in vitro. Realizada aquela condição, entretanto, retroagir-se-ia a este momento.

Diz respeito aos direitos patrimoniais. Para o nascituro, terão natureza jurídica de direitos futuros não deferidos (art. 74, III e parágrafo único do CC), pois sua aquisição pende de evento futuro e incerto, qual seja, o próprio nascimento. Há, em verdade, mera expectativa de direito.

Nascendo com vida, mesmo por poucos segundos, e morrendo logo em seguida, transmitiria seus bens aos herdeiros. Se natimorto, nenhum direito patrimonial subsistiria.

O mestre Caio Mário [19], novamente, vem a esclarecer que ao nascituro são reconhecidos direitos em estado potencial: se nasce (adquire personalidade), constitui-se o direito, o que não acontecerá ocorrendo o evento morte, situação em que não se fala em personalidade jurídica.

3.4. Crítica à teoria adotada pelo CC

Não obstante ser esse o posicionamento atual do Código Civil, cresce cada vez mais na doutrina e na jurisprudência a teoria concepcionista para permitir que o nascituro adquira, de logo, direitos de ordem patrimonial.

Assim, a concepção seria o marco para a aquisição da personalidade jurídica plena, não mais a condição suspensiva do nascimento com vida.

Ora, é no mínimo ilógico admitir a fração da personalidade em duas. Ela é una e plena: ou está configurada em um único momento ou então ainda não existe. Não há meio termo.

Data maxima venia, inadmissível a dicotomia entre personalidade formal e material.

O conjunto dos direitos da personalidade configura uma universitas juris, um todo ilimitado.

Na verdade, desde a concepção já é possível a aquisição de direitos patrimoniais.

Nesse trilhar, já decidiu o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, in verbis:

"Seguro-obrigatório. Acidente. Abortamento. Direito à percepção da indenização. O nascituro goza de personalidade jurídica desde a concepção. O nascimento com vida diz respeito apenas à capacidade de exercício de alguns direitos patrimoniais. Apelação a que se dá provimento (grifo nosso)". (TJRS, 6ª Câmara Cível, Apelação Cível nº 70002027910, rel. Des. Carlos Alberto Álvaro de Oliveira, j. 28.3.01).

Depreende-se que ele possui capacidade de direito, mas não de fato (exercício), o que será realizado pelos pais ou, na falta ou impossibilidade, pelo curador (ao ventre ou ao nascituro).

Se assim não fosse, como então aceitar o fato de que o nascituro pode receber bens por doação (art. 1169, CC) ou por herança (art. 1718, CC)?

Pontes de Miranda [20] já alertava que os pais ou o curador são meros guardiões ou depositários desses bens, bem como dos frutos e produtos, não podendo usar, gozar ou dispor.

E mais: haveria lógica o Código de Processo Civil regular, nos artigos 877 e 878, o procedimento cautelar denominado posse em nome do nascituro? Reitere-se: trata-se de ação designada a proteger a posse de bens (patrimoniais) que lhe pertencem.

O nascituro também faz jus a alimentos para uma adequada assistência pré-natal (RT, 650:220).

É por tudo isso que nova interpretação já vem sendo dada ao artigo 2º do Código Civil que entrará em vigor a partir de 11.01.03, in verbis:

"Art 2º. A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro".

Note-se que, em comparação com o artigo 4º do Código de 1917, o termo "desde a concepção", apesar de presente em ambos dispositivos, aparece na nova lei separado entre vírgulas. Por força da interpretação gramatical e até sistemática, alguns autores, como J.M. Leoni Lopes de Oliveira [21], vêm entendendo que foi adotada a teoria concepcionista no novo Código Civil.

Fala-se até na reforma da redação do artigo 2º, mesmo na vacatio legis, para que seja dirimida qualquer tipo de dúvida.

3.5. Definição de conceitos necessários à adoção da teoria concepcionista

3.5.1. Conceito de "concepção"

O que é, afinal, concepção?

Define o "Dictionnaire de Médecine", de E. Littré, como substantivo feminino derivado do latim conceptio, concipere, de cum, junção de com e capere, que denota uma ação de natureza orgânica ou vital da qual resulta a produção de um novo ser, nas entranhas de uma fêmea animal, como fruto do contato do espermatozóide com o óvulo, contato este denominado ontogenia humana [22].

É esse o entender de Maria Helena Diniz [23], in verbis:

"Embora a vida se inicie com a fecundação, e a vida viável com a gravidez, que se dá com a nidação, entendemos que na verdade o início legal da consideração jurídica da personalidade é o momento da penetração do espermatozóide no óvulo, mesmo fora do corpo da mulher [24]".

Como já referido, é um conceito fundamental para os adeptos da teoria concepcionista, a exemplo da multi-citada autora [25], in verbis:

"Com isso, parece-nos que a razão está com a ‘teoria concepcionista’, uma vez que o Código Civil resguarda desde a ‘concepção’ os direitos do nascituro".

3.5.2. A representação processual como forma de suprir a incapacidade do nascituro

Um breve comentário acerca de pressupostos processuais merece ser feito neste momento. É cediço que "as pessoas naturais, o homem, inclusive o nascituro" têm capacidade de ser parte, conforme lição de Moacyr Amaral Santos [26].

Entretanto, nem todos possuem capacidade de estar em juízo (legitimatio ad processum), como, por exemplo, o próprio nascituro.

Tal incapacidade pode ser suprida mediante um representante legal. Em regra, o pai ou a mãe assume essa posição.

Na hipótese de pai falecido e mãe grávida, o artigo 462 do Código Civil permite a figura do curador ao nascituro, in verbis:

"Art. 462. Dar-se-á curador ao nascituro, se o pai falecer, estando a mulher grávida, e não tendo o pátrio poder".

E "se a mulher estiver interdita, seu curador será o do nascituro" (parágrafo único do art. 462) para que não deixe de ter lógica o quanto exposto no art. 458 ("a autoridade do curador estende-se à pessoa e bens dos filhos do curatelado, nascidos ou nascituro").

Maria Helena Diniz [27], citando diversos julgados, ainda ventila a possibilidade de nomeação de um curador ao ventre.

Humberto Theodoro Júnior [28] faz lembrança extremamente feliz quando afirma que o Ministério Público atuará na causa como custos legis, na defesa de interesse de incapaz (art. 82, I, CPC), e, caso a mãe seja incapaz ou inexistente e não haja curador, pode legitimar-se a propor a ação.

Por qualquer desses modos estará o nascituro apto a pleitear em juízo direitos patrimoniais, confirmando, assim, que, em verdade, a personalidade jurídica é obtida desde a concepção, como preceitua a teoria concepcionista.

3.5.3. Aplicação da teoria concepcionista ao caso Marion

Retornando ao caso Marion, como não era conhecido o pai do feto, o que poderia provocar problemas financeiros na sua assistência, possível era a propositura de ação investigatória, inclusive cumulada com alimentos, com base na teoria concepcionista. Para tanto, o nascituro deveria ser representado em juízo pelo seu curador ante a falta ou impossibilidade de sua genitora, ou ainda ser substituído processualmente pelo Parquet.

Atente-se somente para o detalhe que, em época de despatrimonialização e personalização do Direito Civil, cada vez mais é retumbante o princípio da desbiologização da paternidade.

Superadas essas primeiras questões (direito à vida e proteção ao nascituro), mister se faz analisar outros incidentes direta ou indiretamente ligados ao tema principal desta pesquisa, tais como o aborto, a doação de órgãos e a eutanásia.

4. O DIREITO DE NASCER E O ABORTO

Já foi visto e revisto neste trabalho que a inviolabilidade da vida é um direito também oferecido ao nascituro.

Ora, se há tutela à vida, por óbvio, resguarda-se ao ser intra-uterino o direito de nascer, mesmo em detrimento da integridade física da genitora.

No conflito de interesses e entrechoque de valores da personalidade, escolhe-se a todo instante a vida, até mesmo porque o feto não faz parte do corpo da mãe (pars viscerum matris).

O bem maior do ser humano supera qualquer direito da mulher sobre seu próprio corpo, além do que, reitere-se, o nascituro não o integra.

Merece destaque mais uma decisão do sempre lúcido Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, in verbis:

"Pedido de aborto. Estupro. Violência indemonstrada. Direito do feto à vida. Proteção constitucional. Direito natural. Diante da ausência de elementos seguros de convicção acerca da ocorrência de violência sexual, não se mostra recomendável nem indicada a interrupção da gravidez pretendida, vsito que maiores seriam os malefícios. Destaco que merece maior proteção o interesse do nascituro em viver, conforme o art. 227 da CF. O fato de existir e de permanecer vivo, enquanto as funções biológicas permitirem, constitui direito natural inalienável de todo ser humano e, em si mesmo, o ponto de partida para todos os demais direitos que o ordenamento jurídico possa conceber. Recurso desprovido (grifo nosso)". (TJRS, 7ª Câmara Cível, Apelação Cível nº 70001010446, rel. Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, j. 03.05.00).

A Declaração dos Direitos da Criança, de 20 de novembro de 1959, determinava que, in verbis:

"A criança, dada a sua imaturidade física e mental, precisa de proteção legal apropriada, tanto antes como depois do nascimento".

O direito à vida não exige nenhum pressuposto, sendo integralmente tutelado desde a concepção, inclusive para o nascituro.

Fica cada vez mais claro, portanto, que o bebê de Marion Ploch deveria realmente nascer, independente dela estar morta. A perda de uma vida jamais poderá justificar a retirada de outra.

Ao contrário, é missão do Direito e da Medicina priorizar a vida como valor maior.

Com esse intuito, inclusive, os médicos poderiam suprir a vontade contrária dos pais da paciente através de um alvará judicial, o qual isentaria os profissionais de qualquer responsabilidade.

Apesar de clareza tão meridiana, registre-se que Maria Helena Diniz [29] tem posição contrária, in verbis:

"Poderá também haver responsabilidade médica por dano moral ao nascituro na cesárea ‘post mortem’, para resgatar feto vivo do cadáver de sua mãe, mas, para tanto, será necessário que o médico esteja certo do óbito da gestante, que deverá ser confirmado por outro médico, ante o direito de viver do novo ser, sob pena de omissão de socorro. Tal intervenção não poderá ser feita em gestante agonizante".

Inobstante o douto entendimento, concessa venia, nem mesmo o dano à moral do feto é obstáculo para que ele venha a nascer.

Nesse trilhar é que decorre a punição, na ordem jurídica brasileira, do aborto, considerado ilícito civil e penal.

Damásio E. de Jesus [30] define aborto como uma interrupção da gravidez com a consequente morte do feto (produto da concepção).

Etimologicamente, aborto é a junção de ab (privação) e ortus (nascimento), ou seja, privação de nascimento.

Tomando-se como critério a causa, há três diferentes espécies de aborto.

A primeira é o aborto natural ou espontâneo. Não é considerado crime nem mesmo ilícito civil porque a gravidez foi interrompida de forma não intencional (ausência de dolo ou culpa), em razão de doenças da mãe por exemplo.

Outra espécie é o aborto acidental, decorrente, em regra, de um trauma físico (exemplo: queda) ou psicológico (exemplo: susto). Também não configura tipo penal e, desde que não haja imprudência, negligência ou imperícia, inexiste o ilícito civil.

Já o provocado pode configurar crime e/ou ilícito civil. São duas as suas subespécies: o criminoso e o permitido.

O aborto criminoso constitui tipo penal, conforme as hipóteses previstas nos artigos 124 a 127 do Código Penal. Por força do artigo 91, I, do mesmo estatuto e do art. 63 do CPP, há caracterização, na mesma medida, do ilícito civil.

O aborto permitido não é crime, ao contrário, são hipóteses trazidas no bojo do artigo 128 do Código Penal que excluem a ilicitude do ato.

Excluído o ilícito, a maioria da doutrina e jurisprudência entende que nenhuma consequência permanecerá na seara cível.

No episódio de Marion Ploch, restou delineada a primeira espécie de aborto, qual seja, o espontâneo ou natural. Logo, não haverá qualquer responsabilização cível ou criminal dos médicos nem dos pais da falecida.


5. A PROTEÇÃO À INTEGRIDADE FÍSICA E A DOAÇÃO DE ÓRGÃOS

Os primeiros médicos que atenderam Marion Ploch pretendiam obter da família a permissão para a doação de órgãos, posto que não acreditavam na sobrevivência do feto. Entretanto, os pais recusaram o pedido.

Indaga-se: é possível a doação de órgãos neste caso e, se afirmativa a resposta, em quais termos?

O direito ao próprio corpo como um todo e em separado (órgãos e tecidos) integra o rol dos ditos direitos da personalidade.

Como tal, é bem indisponível, coisa fora do comércio, nos termos do artigo 69 do Código Civil, enfim, guarda tom eminentemente extrapatrimonial.

Destarte, em um conflito com outro valor da personalidade de maior importância ou abrangência, de acordo com o princípio da proporcionalidade, o direito ao corpo próprio pode ser relevado a segundo plano.

Isso acontece quando a integridade física cede espaço a um estado de necessidade. Assim, admite-se a disponibilidade para salvaguardar a saúde do interessado ou de terceiro ou para fins científicos ou terapêuticos.

Portanto, com o escopo nobre e ímpar, o titular pode dispor do seu direito. Mas são impostos limites pela Lei nº 9.434/97, regulamentada pelo Decreto nº 2.268/97.

Os médicos que pretendiam conseguir a doação de órgãos fizeram a proposta antes mesmo do diagnóstico de morte encefálica [31] da paciente.

Assim, necessário é verificar, em apertada síntese, se estavam presentes os principais requisitos exigidos no artigo 9º para a doação inter vivos.

Ab initio, a disposição, qualquer que seja a espécie, só é autorizada quando realizada de forma gratuita. É norma que visa o combate ao mercado de órgãos e tecidos humanos.

Além disso, a finalidade da doação é terapêutica ou para transplantes em cônjuge ou parentes consaguíneos até o quarto grau ou, ainda, para qualquer pessoa desde que haja autorização judicial.

Ademais, o órgão ou tecido não deve ser essencial para a vida ou saúde do doador.

Requer, ainda, a expressa e voluntária autorização do proprietário dos bens ou, se incapaz, dos seus representantes legais.

Em tese, preenchidos todos os requisitos supra, seria cabível a doação de órgãos desde que os pais de Marion Ploch consentissem.

Contudo, em virtude da gravidez, em nenhuma hipótese os médicos poderiam lograr êxito na sua pretensão, como esclarece o parágrafo 7º do artigo em debate, in verbis:

"§ 7º. É vedado à gestante dispor de tecidos, órgãos ou partes de seu corpo vivo, exceto quando se tratar de doação de tecido para ser utilizado em transplante de medula óssea e o ato não oferecer risco à sua saúde ou ao feto (grifo nosso)".

É de clareza solar que o dispositivo transcrito é aplicação do princípio da inviolabilidade da vida humana. Mais uma vez ela (a vida) prevalece sobre outro bem jurídico.

E é correta a vedação. Os fins a que a doação se destina não superam o direito de nascer.

Isto posto, mesmo que os pais de Marion Ploch aceitassem, impossível a doação de órgãos face a existência do nascituro.

Confirmada a morte cerebral (encefálica) da genitora em 8 de outubro de 1992, haveria alguma alteração na solução apresentada?

A doação post mortem tem requisitos semelhantes à inter vivos, quais sejam, a gratuidade (art. 1º) e a finalidade terapêutica ou humanitária (art. 3º).

Só que se verifica um terceiro pressuposto, o consentimento dos parentes apontados no artigo 4º. In casu, a proibição dos pais da falecida impede a doação.

E, da mesma forma, a vida do nascituro desautoriza o quanto postulado pelos médicos.

Concluindo, os médicos não poderiam obter a doação de órgãos de Marion Ploch, seja em vida, seja após a morte, face a vontade contrária dos pais da paciente e, especialmente, a inviolabilidade da vida do nascituro.


6. O DIREITO À MORTE DIGNA. QUESTÕES POLÊMICAS

Falecidos mãe e filho, não foi realizada a autópsia para apurar a causa do evento por ordem dos parentes que sobreviveram.

O respeito à integridade física, mesmo do corpo morto, por si só já sustenta a posição dos pais de Marion Ploch.

Entretanto, além disso, também é garantido o direito a uma morte digna, o que será visto neste Capítulo.

No fato sub occulis, jamais se olvidou acerca da irreversibilidade do quadro de Marion. Todos os médicos diagnosticaram como impossível a sobrevivência da paciente.

Todavia, os aparelhos que permitiam o funcionamento das funções vitais em nenhum momento foram desligados, mesmo após a morte encefálica.

Pode-se afirmar, então, que houve violação do direito à morte digna? Em caso afirmativo, de que espécie?

Novamente é imperioso fazer alusão à inviolabilidade (art. 5º, caput, CF) e à dignidade (art. 1º, III, CF) da vida humana.

Desses princípios é que decorre, ontologicamente, o direito à morte digna. É mais um dos direitos da personalidade.

Discute-se a possibilidade do titular escolher o momento da sua morte e qual a melhor forma de esperá-la.

Apura-se o debate em época que cada vez mais as técnicas científicas avançam em duas frentes opostas e com limites tênues. Tanto percorrem o caminho da garantia de melhor qualidade de vida (durante maior tempo) aos pacientes como podem, de forma abusiva, tão-somente com fins de experimentos terapêuticos, prolongar o sofrimento de quem não possui qualquer perspectiva de sobrevida.

Nesse contexto, questões polêmicas afligem juristas, médicos, pacientes e familiares, tais como a eutanásia, a mistanásia, o suicídio assistido, a distanásia e a ortotanásia.

A eutanásia é o chamado homicídio por piedade: encurta-se a vida de quem sofre por estar acometido por doença incurável.

É permitida na Holanda. Em alguns países latinos, a exemplo do Paraguai, Uruguai e Colômbia, constitui crime de homicídio privilegiado.

No Brasil, a depender do caso, caracteriza homicídio simples (art. 121, caput, CP) ou privilegiado (art. 121, § 1º - "relevante valor social ou moral") ou até qualificado (art. 121, § 2º, II – "motivo fútil).

A conduta comissiva (não se define a eutanásia por omissão) do profissional de saúde que abrevia a vida do paciente a seu pedido ou por piedade viola um direito tratado como indisponível.

O Código de Ética Médica, por isso, no seu artigo 6º, obriga o médico a promover, sempre e de forma absoluta, a vida.

E o art. 61, § 2º desse diploma assevera, in verbis:

"Art. 61. § 2º. Salvo por justa causa, comunicada ao paciente ou ao a seus familiares, o médico não pode abandonar o paciente por ser este portador de moléstia crônica ou incurável, mas deve continuar a assisti-lo ainda que apenas para mitigar o sofrimento físico ou psíquico".

A mistanásia é a dita eutanásia social. Frequente em países pobres como o Brasil, se dá, por exemplo, em hospitais públicos na insuficiência de leitos e médicos, obrigando o profissional a optar entre salvar pacientes com muitas chances de sobreviver ou manter aquele ali instalado mas em estado vegetativo.

Não deve o médico ser responsabilizado e sim o Estado pela sua omissão na prestação de serviço público.

O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, tratando a mistanásia como eutanásia indireta, condenou o município a indenizar os prejuízos decorrentes da falta de leitos, in verbis:

" ASSUNTO: 1. Ação Civil Pública. Ação proposta contra o município. 2. Hospital. Compra de vagas. Leito em UTI pediátrica. Obrigação do município. Tutela antecipada. Cabimento. 3. Saúde Pública. 4. Eutanásia indireta". (TJRS, 4ª Câmara Cível, Agravo de Instrumento nº 598293223, rel. Des. Wellington Pacheco Barros, j. 17.3.99).

Ocorre o suicídio assitido quando a parte quer se matar e o médico presta auxílio para tanto. Permitido na Holanda e na Suíça, é conduta tipificada como crime no Código Penal nacional (art. 122).

Já a distanásia e a ortotanásia precisam ser analisadas em conjunto, pois são as duas faces de uma mesma moeda.

Deixemos a Professora Roxana Cardoso Brasileiro Borges [32] defini-las com brilhantismo, in verbis:

"Chama-se de distanásia o prolongamento artificial do processo de morte, com sofrimento do doente. É uma ocasião em que se prolonga a agonia, artificialmente, mesmo que os conhecimentos médicos, no momento, não prevejam possibilidade de cura ou de melhoria. É expressão da obstinação terapêutica pelo tratamento e pela tecnologia, sem a devida atenção em relação ao ser humano".

"Etimologicamente, ortotanásia significa morte correta: ‘orto’: certo, ‘thanatos’:morte. Significa o não prolongamento artificial do processo de morte, além do que seria o processo natural, feito pelo médico... A ortotanásia serviria, então, para evitar a distanásia. Em vez de se prolongar artificialmente o processo de morte (distanásia), deixa-se que este se desenvolva naturalmente (ortotanásia)".

A distanásia é fato típico (o Código de Ética Médica veda, no art. 130, a realização de "experiências com novos tratamentos clínicos ou cirúrgicos em paciente com afecção incurável ou terminal sem que haja esperança razoável de utilidade para o mesmo, não lhe impondo sofrimentos adicionais"), enquanto que a ortotanásia, para a maioria da doutrina, é atípico, apesar de respeitáveis posições em contrário que se baseiam nas constantes descobertas científicas de métodos que venham a reverter um quadro de saúde até então tido com perdido e na falibilidade humana.

Do exposto, voltemos ao caso de Marion Ploch. Face a completa impossibilidade de sobrevida da paciente, por que os médicos insistiram em conservar os aparelhos ligados?

Primeiro porque se tivesse ocorrido esta ação, mesmo a pedido dos pais, restaria delineada a eutanásia. Acertaram, pois, quando não desligaram os aparelhos.

Por outro lado, caso fosse mantido o tratamento terapêutico, sem qualquer perspectiva de êxito, configurar-se-ia a distanásia e os profissionais liberais seriam punidos?

A resposta é negativa diante da peculiaridade do caso. Apesar de, em tese, o incentivo ao tratamento de Marion ser condenável (distanásia), já que a sua morte era apenas uma questão de tempo, também agiram corretamente os médicos ao tentarem, a todo custo, sustentar qualquer suspiro da enferma em razão de um escopo maior, a proteção à vida do nascituro.

Entre a cruz e a espada, a solução escolhida foi correta: entre um moribundo e um ser intra-uterino prestes a nascer, inequivocadamente, privilegia-se o feto.

Não se vislumbra, portanto, erro médico in casu.

CONCLUSÃO

O ordenamento jurídico pátrio prima pela proteção absoluta e suprema da vida e da dignidade da pessoa humana. Corolário disso é a tutela concedida ao nascituro, pois, conforme a teoria concepcionista, defendida nesse trabalho, é adquirida a personalidade jurídica desde a concepção.

Dentre os direitos da personalidade pertencentes ao nascituro, destaca-se o direito de nascer, o qual é o fundamento da proibição do aborto no Brasil.

Por isso, em caso de um feto alojar ventre de mãe já falecida, imperativa é a proibição da prática da eutanásia ou ainda da distanásia, sob pena de crime de homicídio, bem como censura-se a doação de órgãos da gestante, seja em vida ou post mortem,

Por tudo isso, a conclusão é inevitável e irrefutável: é possível que uma mãe morta dê a luz a um bebê.

Assim, independente da integridade física de Marion Ploch, do respeito ao seu corpo, ainda que morto, e mesmo contra a vontade dos seus pais, deveria o feto nascer. Não importa o valor que se contrapõe à vida: sempre esta vencerá.

Além disso, ainda em relação ao multi-citado caso verídico, era cabível a ação de investigação de paternidade, inclusive cumulada com alimentos, desde que o nascituro fosse representado pelo seu curador ou pelo Ministério Público.

Os médicos, por outro lado, não deveriam ser responsabilizados pelo aborto, visto que este foi espontâneo, nem pela distanásia porventura praticada em virtude da peculiaridade do caso (existência do feto).

Por fim, deveria ser atendida a vontade dos pais da paciente quanto a não realização da autópsia nesta e no feto em atendimento à inviolabilidade da integridade física.


BIBLIOGRAFIA

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THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. 32ª ed., Rio de Janeiro:

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Notas

1. Jair Ferreira dos Santos, O que é pós-moderno, São Paulo: Braziliense (Coleção Primeiros Passos; 165), 2000, p. 21-23.

2. Interessante tratamento ao tema é dado pelo filme Vanilla Sky, uma regravação do espanhol Abra Los Ojos que merece ser assistida.

3. Le droit français de filiation et la verité, apud DINIZ, Maria Helena, O estado atual do biodireito, São Paulo: Saraiva, 2001, p.18.

4. José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, p. 201.

5. Libertés publiques, p. 234, apud SILVA, José Afonso da, Curso de Direito Constitucional Positivo, 15ª ed, São Paulo: RT, 1998, p. 201.

6. Tratado de Direito Privado, p. 15-16.

7. Dalla struttura alla funzione, Milano, Edizioni di comunità, 1977, e, espec., Verso una teoria funzionale del diritto, p. 63 e ss.

8. O estado atual do biodireito, p.25-26.

9. Capítulo baseado no resumo de aula do Professor Pablo Stolze Gagliano, publicado no site

www.direitoufba.com.br.

10. Direito Civil Brasileiro: Introdução, p.226.

11. Manual de Direito Civil., p.126.

12. Diritto Civile, passim.

13. Introdução ao Direito Civil, passim.

14. Direito Civil, passim.

15. Curso de Direito Civil, passim.

16. Direito Civil: Alguns Aspectos da sua Evolução, p. 17.

17. O estado atual do biodireito, p.113-114.

18. Ibid., p.116-126.

19. Direito Civil: Alguns Aspectos da sua Evolução, p. 19.

20. Tratado de Direito Privado, p. 29.

21. Fórum Brasil de Direito, 3º, 2002, Salvador. Conclusões... Salvador: Juspodivm, 2002.

22. Definição encontrada no resumo de aula do Professor Pablo Stolze Gagliano no site www.direitoufba.com.br.

23. Código Civil Anotado, p. 10.

24. Isso explicaria a existência de vida (personalidade jurídica) já na fecundação na proveta ou embriões humanos congelados e vedaria, por exemplo, a manipulação genética de células germinais humanas.

25. Código Civil Anotado., p. 10.

26. Primeiras linhas de direito processual civil, p. 353.

27. O estado atual do biodireito, p.125.

28. Curso de Direito Processual Civil., p. 484.

29. O estado atual do biodireito, p.124.

30. Direito Penal: Parte Especial, p. 115.

31. Para fins de doação de órgãos post mortem, adota-se como critério a morte encefálica e não a parada cardio- respiratória.

32. Direito de morrer dignamente: eutanásia, ortotanásia, consentimento informado, testamento vital, análise constitucional e penal e direito comparado, in SANTOS, Maria Celeste Cordeiro (org.), Biodireito: Ciência da vida, os novos desafios, São Paulo: RT, 2001, p. 286-288.