O exercício regular do direito de informar como causa excludente de ilicitude na atividade jornalística


PorThais Silveira- Postado em 24 abril 2012

Autores: 
Ana Marina Nicolodi

 

O exercício regular do direito de informar como causa excludente de ilicitude na atividade jornalística

Resumo: O mundo moderno sustenta a ânsia profunda e sequiosa de conhecer detalhes íntimos dos outros, explorar a imagem, violar e denegrir a honra alheia, e os meios de comunicação social, sempre atentos, possuem uma inesgotável disposição para dar ao público o que desejam. É necessário, no entanto, que o jornalista, primando pela licitude da sua atividade informativa, tenha claro para si os limites da ética profissional e das liberdades preconizadas na Constituição e na lei, emergentes, outrossim, do equilíbrio sobre o fio da navalha, tendo de um lado os direitos de personalidade e o respeito às pessoas objetos da notícia, e de outro o interesse público, a liberdade de expressão e informação, sob pena de sofrer responsabilização no âmbito civil e/ou criminal. Tais noções devem pautar o profissional a todo o momento, seja na hora de divulgar fatos referentes à intimidade da vida privada de uma pessoa, de ofender a sua honra ou imagem, seja no momento da intromissão propriamente dita.

 

Abstract: In the modern world, there is a deep and eager anxiety to know intimate details about others, to explore their images, to violate and deplore their honour and the social communicative media, always alert, has an unlimited disposition of giving to the public what they want. It is necesary, however, that the journalist, observing the licitousness of his/her informative activity, have clearly in his/her mind the limits of the professional ethics and of the freedoms, preconized in the Constitution and in the Law, emerged from the equilibrium on the razor's edge, having on the one side the personality rights and the respect for the people who are the object of the news, and, on the other side, the public interest, the expression and information freedom, on the risk of suffering the responsabilization in the criminal and civil ambit. Such notions should guide the professional at every moment, at the time of publishing the facts referent to the private life of a person, of offending his/her image or honour, as well as at the time of the intrusion itself.

 

Palavras-chaves: Direi tos da Personalidade – Imprensa - Liberdade de Informação – Legitimidade de Atuação – Jornalismo Informativo - Veracidade Informativa – Interesse Público- Evolução Tecnológica- Proporcionalidade – Ponderação de interesses.

Key-words: Personality Rights - Press - Information Freedom - actuation legitimacy - informative journalism - informative veracity - public interest - technological evolution - proportionality - interests balance 
 

Não se discute a importância da imprensa na atual sociedade. Sua atividade informativa, a qual se reconhece como uma função de interesse público, posto exprimir e assegurar a realização de direitos fundamentais, bem como de outros valores relevantes para a coletividade, numa ordem constitucional, livre e democrática, visa posicionar as pessoas no cenário fático, atualizar e proporcionar a conscientização da opinião pública.

A imprensa, através das suas diversas maneiras de atuação, que abrange desde o jornalismo de informação e de notícias até o jornalismo de entretenimento, exerce grande influência social e política na sociedade. O reconhecimento desta capacidade, como não poderia ser diferente, projeta-se no mundo jurídico, seja no que diz respeito à defesa dos direitos das pessoas, que podem ser afetadas, seja no que interessa à garantia da liberdade e aos limites em que o seu poder esbarra. 

A rapidez e a facilidade na obtenção e na circulação de informações, viabilizadas pela evolução tecnológica, são fatores que concorrem para o desenvolvimento e a integração das relações humanas, denotando a sua essencialidade. Contudo, trazem à tona uma problemática jamais presenciada com as dimensões atuais, que requer a proteção efetiva de bens jurídicos constantemente ameaçados, tais como a honra, a privacidade e a imagem. 

Num mundo sempre em mutação e sujeito a constantes inovações técnicas, em que a informação constitui veículo impulsionador do desenvolvimento social e das relações humanas, e a globalização, cujo significado, mais ou menos indefinido, instalou-se como conceito, a importância de se proteger os atributos essenciais inerentes à personalidade do homem é um dado inestimável. Por outro lado, a proteção jurídica da liberdade de expressão e informação destina-se precipuamente a permitir uma adequada, autônoma e igualitária participação dos indivíduos na esfera pública, através da formação da opinião pública livre. Como não poderia ser diferente, diante de uma situação de pluralismo político, todos os cidadãos têm a possibilidade de formar suas idéias e de as exprimirem sem impedimentos. 

O comportamento profissional do indivíduo voltado ao jornalismo informativo se projeta no seu direito de comunicar ou receber informações verdadeiras, por qualquer meio de difusão e, por outro lado, no seu direito de expressar e difundir livremente os pensamentos, idéias ou opiniões, narrando notícias que hajam acontecido nomeadamente na vida social e que, pelo próprio interesse, constituam interesse suficiente para serem conhecidos pelos destinatários da informação. 

Mas, se o fato de podermos pensar nos faz humanos, a forma com que expressamos esse pensamento é o que diferencia os seres humanos entre si. Garantir o direito à liberdade de expressão é, portanto, quesito indispensável para a realização plena do homem e pedra fundamental da democracia. Acresce-se, entretanto, que se o pensamento é livre e irreprimível, a sua exteriorização não deve ser irrestrita, devendo compatibilizar-se com as demais liberdades e valores que a sociedade e o ordenamento jurídico recepcionaram. É inegável que o exercício da atividade jornalística não justifica, em quaisquer situações, intromissões nos direitos de personalidade alheios. A sua conduta deve pautar-se pela diligência e probidade profissional que compete a qualquer outro profissional, em respeito aos preceitos jurídicos e éticos que estabelece a ordem institucional.

O exercício regular do direito de exprimir e divulgar livremente o pensamento e as opiniões pelos meios de comunicação, conseqüentemente a sua atuação de forma lícita, está adstrito a determinados requisitos essenciais, os quais, se infringidos, determinarão a ilicitude do fato e conduzirão a um dever destes indenizar o lesado pelos danos sofridos, através do instituto da responsabilidade civil. Não podemos esquecer que, no campo prático, constituir a obrigação de indenizar através da problemática aferição dos limites e do âmbito normativo dos direitos, significa, em muitos casos, um esforço de ponderação do julgador, que deverá confrontar efetivamente os direitos contrapostos, sopesando todos os elementos fáctico-jurídicos, presentes no caso concreto, com o fim de justificar a preterição de um em relação a outro, sem comprometer desnecessariamente o conteúdo essencial de algum deles1. Neste domínio, julgamos imprescindível ter em conta a difusão ou audiência do meio utilizado para propagar a ofensa, o prejuízo material e moral causado e a vantagem patrimonial auferida pela empresa de comunicação.

Assim, para além dos casos em que o titular do direito consente com a lesão, existem outras circunstâncias que traduzem a atuação lícita da imprensa, a saber: quando a notoriedade justifica um interesse geral pela sua vida; quando ocupa uma posição de destaque no cenário social ou político; quando o interesse público é motivado pela formação de uma opinião livre e plural, necessária para a concretização de uma sociedade democrática. Não fosse assim, comprometer-se-ía a toda evidência a atividade jornalista. Não é o que se pretende, tampouco o que se precisa para a proteção dos direitos pessoais ameaçados. 

Como hipóteses de legitimação da atuação da imprensa nas situações em que esta invade a esfera íntima de uma pessoa, ofende a sua honra ou imagem, traduzidos pelo exercício regular de seu direito de informar, temos a relevância pública dos fatos verdadeiros noticiados, em que predomine um interesse didático, científico, cultural, ou de polícia, divulgadas necessariamente com adequação do meio e com pertinência das expressões utilizadas. 

Dentre as causas de exclusão de ilicitude no âmbito civil, o exercício regular de um direito, referente à atividade do profissional jornalista, é a que deve reclamar um tratamento mais cuidadoso e ostensivo, já que detém um maior alcance prático-jurídico relativamente ao conflito que com frequência se instaura entre os meios de comunicação e os direitos de personalidade.

Contudo, se o exercício de um direito subjetivo justifica determinadas violações aos direitos de outrem, não se pode perder de vista as limitações do exercício dos direitos pelos institutos do abuso do direito ou da colisão de direitos, as quais, como anota Menezes Leitão, restringem a operatividade desta causa. O agente não se exonerará de responder por danos que causou, se no exercício do seu direito, verificados os pressupostos da responsabilidade civil, não ficou adstrito precisamente aos limites que o seu exercício lhe permite, ou seja, respeitando os deveres de segurança no tráfego2.

Estamos certos que, a verdadeira função dos media na atualidade, para além de informar e divulgar os fato noticiáveis, é a de “difundir conhecimento, disseminar a cultura, iluminar as consciências, canalizar aspirações e os anseios populares, enfim, orientar a opinião pública no sentido do bem e da verdade”3. Justamente para a concretização de tais fins, reconhece-se aos meios de comunicação social uma função de interesse público, na medida em que o exercício da sua atividade exprime ou assegura a realização de direitos fundamentais e de outros valores comunitários, tendo em vista nomeadamente a formação da opinião pública democrática, não apenas no estrito plano político, como no plano social e cultural4.

prossecução de interesses legítimos em sede de atividade jornalística se traduz fundamentalmente no seu exercício regular e lícito, sempre que o profissional relata ou toma posição sobre matérias em relação às quais subsiste um interesse sério pela informação por parte do público5. O que não quer significar que impõem-se limites à divulgação de escândalos e notícias sabidamente com grande impacto perante o público, respeitadas que estejam as balizas gerais consignadas ao exercício da liberdade de imprensa, o cumprimento da ética profissional, o respeito mínimo exigido a pessoa objeto da notícia, ao princípio da presunção de inocência, comprovando-se a fiabilidade de suas fontes informativas e não ultrapassando a fronteira que demarca a licitude da sua atuação.

A propósito de prosseguir interesses legítimos, Costa Andrade refere que, para além de estarem as opiniões apoiadas em fatos, o que pressupõe a necessidade de verificação ou, pelo menos, a sua possibilidade, deve estar presente a boa fé do jornalista, esta equiparada ao erro não censurável sobre a existência de justa causa, valorando-se o rigor e a objetividade da mesma e evitando juízos subjetivos sobre a pessoa visada6

A exclusão da ilicitude da conduta do jornalista pressupõe sempre que o exercício do seu direito de informar se haja baseado em fatos, devidamente investigados, ainda que se refira a uma crítica, a um juízo de valor, neste caso, devendo traduzir uma opinião legítima e honesta sobre o fato, não necessariamente razoável aos olhos do público, mas admissível aos parâmetros do homem médio. Em síntese, o exercício regular do direito de informar do jornalista corresponde à divulgação de um fato verdadeiro, de forma adequada e proporcional, para satisfação de um interesse público ou relevância social.

Analisemos pois, com o esforço de síntese que nos é possível, de per si, esses requisitos.

1) A veracidade informativa e a relevância da exceptio veritatis no direito civil.

Sem nos aprofundar numa reflexão filosófica sobre o sentido da verdade7, cuja exigibilidade irrestrita para o exercício das liberdades de expressão e informação não se coaduna com o espírito da lei, cumpre-nos indagar sobre os aspectos parcelares e pragmáticos da verdade, os quais se revelam em maior consonância com o fim sócio-econômico a que se propõe os meios de comunicação social, tais como, rigorexactidãoobjectividade e isenção8.

Segundo o Código Deontológico português de 1993, “o jornalista deve relatar os factos com rigor e exactidão e interpretá-los com honestidade”. Por seu turno, o art. 3º da Lei de Imprensa daquele país refere-se aos limites da liberdade de imprensa, “de forma a salvaguardar o rigor e a objectividade da informação”. Neste contexto, também em artigos correspondentes na legislação pátria, a isenção, o rigor e a objetividade requerida aos jornalistas no exercício da sua função reconduzem à exigência de condutas que não constituem apenas deveres deontológicos, mas a própria essência do direito de informar, tais como a clara separação entre opinião e notícia, a necessidade de colher a versão de todas as pessoas objeto da notícia, de não se fazer acusações descabidas ou sem provas ou, caso haja irrefutável interesse público na revelação, com a ressalva da natureza duvidosa dos fatos e, em qualquer caso, a presunção de inocência9.

O dever de verdade não deve, outrossim, ser tão exaltado que acabe por comprometer a liberdade de expressão. A necessidade de investigação que impende sobre um jornalista não deve implicar uma parificação, no espectro de exigência e de risco admissíveis, ao mesmo dever de um juiz, historiador, crítico de arte, etc. “E tanto menos quanto maior for a urgência da publicação da notícia: pelo seu relevo comunitário, pela periodicidade do órgão de comunicação, etc.”10. A investigação exaustiva dos fatos é assim incompatível com o direito de informação, a ponto de Jónatas Machado11 falar da existência de uma presunção de verdade dos conteúdos informativosem matérias de relevância social, produzidas por jornalistas profissionalizados. 

A esta luz, tem-se por certo que “a funcionalidade da liberdade de expressão não é prejudicada quando se exige de quem arrisca uma imputação de factos negativos que, antes de mais, empreenda todos os esforços necessários para a clarificação da verdade que, na situação concreta, sejam possíveis e lhe sejam exigíveis”12. O jornalismo em consonância com as obrigações ético-deontológicas e com as normas jurídico-institucionais, a preservar a imprescindível relação de confiança entre os cidadãos e os meios de comunicação social, impõe tão somente a não invenção ou distorção de fatos, eventos, personagens, bem como a procura e a análise sob diversas perspectivas de fontes fidedignas e diversificadas de informações. 

A par destas breves considerações, e já não nos reportando à veracidade informativa como algo reconducente à noção de jornalismo cívico, a que se refere a doutrina norte-americana, e que surge na doutrina européia como ética e responsabilidade jornalística13, mas adentrando num campo em que a verdade dos fatos alegados pode operar como hipótese de exclusão de ilicitude das ofensas causadas aos direitos pessoais alheios, a questão reside basicamente em se saber se, quando a notícia veiculada é verdadeira, deve ser ignorado o direito de personalidade ofendido, em prol do direito de informação. 

Pensamos que assim não deve ser, ao menos não em termos absolutos, pois a simples veracidade das imputações ou referências a uma pessoa não tem o condão de, por si só, legitimar uma conduta ofensiva da honra ou intimidade alheia, principalmente no que toca a este último direito, conforme já fizemos breve menção, pelo próprio interesse que visa salvaguardar, qual seja, justamente não dar a conhecer certos fatos verdadeiros pertencentes à sua esfera de vida íntima. Impende que a conduta do jornalista corresponda ao seu exercício legítimo de seu direito de informar, não se esgotando esta possibilidade no relato de fatos verdadeiros. 

Apesar da nossa legislação civilista parecer não ter acolhido expressamente a verdade dos fatos como causa de justificação de ilicitude de quem ofende o direito à honra, em consonância com o espírito da lei, não se pode deixar de relevar sua importância na hipótese de colisão de direitos e da necessária ponderação de interesses jurídicos que a lesão faz emergir, momento em que se irá verificar se estão presentes outros requisitos conducentes à legitimidade do fato danoso, oriundo da atividade jornalística, tais como, o interesse público, a idoneidade, a necessidade e a proporcionalidade da notícia ofensiva, aferidos de forma objetiva segundo “padrões de sensibilidade média de um bonus pater familias14. Mas não só. Dois outros fatores a considerar e a justificar o critério adotado pelo C. Civ. seriam: a) um fato verdadeiro pode ser bem mais ofensivo e prejudicial que uma mentira ou falsidade; b) “o dever de dizer a verdade não exime do de respeitar o direito alheio, nem vale em caso algum para justificar a precipitação, ou a presunção”15, resultando nisso a falibilidade da regra da exceptio veritatis, no âmbito das responsabilidades civil e criminal.

A este respeito, poder-se-ia indagar se uma informação verdadeira lesiva da honra, mas divulgada com o intuito exclusivo de provocar o dano é menos censurável que aquela não correspondente à verdade, mas que, de boa fé, é tida como verdadeira. Se vemos corretamente a situação das coisas, a nível de ilicitude, pensamos que ela não se altera perante fatos verdadeiros, podendo ser encontrada a solução para a não responsabilização do agente da divulgação ou publicação da notícia ofensiva a nível da culpa ou do dano. Assim, há de resultar a exclusão de ilicitude de outra causa e não da comprovação da verdade em si mesma, ou ao menos não exclusivamente.

A ofensa ocasionada em razão da divulgação pela imprensa de um fato inverídico, mas como resultado da convicção séria da sua veracidade, após o cumprimento do dever de investigação que impende sobre os jornalistas e na perspectiva da prossecução de um interesse legítimo, não será passível de indenização pecuniária, precisamente pela ausência de um dos pressupostos da responsabilidade civil, qual seja, a culpa latu sensu. Inversamente, a imputação de fatos verdadeiros, com o único fim de lesionar a honra, ou assumido o seu resultado, sem correspondência com o exercício legítimo da atividade jornalística, implica a responsabilização civil, se disso resultou um dano para o ofendido. 

Daí que, a questão deva girar na órbita da ponderação de interesses e bens juridicamente tutelados, através da análise da própria notícia e dos fins que a motivou, com o intuito de aferir se o jornalista, ao noticiar uma informação não condizente com a realidade, empregou a diligência exigida na averiguação e no relato rigoroso e objetivo dos fatos, agindo desta forma no exercício lícito de seu direito de informar. 

Em relação ao direito à privacidade, a desvalorização da ação lesiva como ilícito civil, prescinde da análise da verdade dos fatos, já dissemos, na medida em que o bem que pretende tutelar é o não conhecimento e não a divulgação desses mesmos fatos. Não seria de conceber a defesa em juízo através da prova da verdade, porque, como anota Costa Andrade, o que acima de tudo lesa a honra é a imputação de fatos inverídicos, o que propriamente fere a privacidade/intimidade é a verdade dos fatos devassados ou revelados16

Destarte, a verdade dos fatos é insuficiente para se formar um juízo de licitude sobre a notícia e sobre a constituição da obrigação de indenizar, principalmente porque as intromissões ilegítimas nos direitos alheios, através da imprensa, normalmente decorrem, não da sua falsidade, mas das notícias que, com o desrespeito pelo rigor e a objetividade, omitem fatos relevantes ou, ao contrário, exageram no modo como são relatadas, seja porque utilizam títulos apelativos, sem qualquer correspondência com o conteúdo, seja porque enfatizam fatos marginais. 

2) Interesse público: o debate político como justificação máxima frente às ofensas aos direitos de personalidade. 

O direito de informação é próprio da atividade do jornalista, o qual na medida do possível deve conferir a devida conotação ao que está divulgando através da imprensa escrita ou dos meios audiovisuais, se fatos noticiáveis de caráter geral ou especial, formação ou doutrinação, posicionamentos pessoais a respeito deles, de entretenimento ou publicidade, mesmo para caracterizar qual o tipo de notícia ou programa a que se refere, o grau de seriedade que a ele deve ser conferido, o público que atinge, etc., designadamente para fins de eventual responsabilização por fatos lesivos dos direitos de outrem.

O reconhecimento autônomo do direito de informação e a sua particular proteção nos levam a considerar que os direitos de personalidade normalmente cedem face à ela caso a informação seja relevante para a formação da opinião pública numa sociedade democrática onde impera o pluralismo e a liberdade de opinião. Reveste-se de interesse geral ou relevância pública, pela matéria ou pela pessoa versada, a informação que permite os cidadãos atuarem na esfera pública de modo consciente, porque lhes fornece condições para o exercício de seus direitos, entre os quais o direito de voto17.

Uma questão que aqui se coloca é a de se saber se é de fato pertinente a distinção de proteção jurídica do direito de informação em função da mensagem difundida conter assuntos de discussão política ou outros temas gerais de interesse público.

Cumpre-nos assinalar primeiramente que não é possível afirmar que as notícias que apenas são veiculadas para entretenimento ou satisfação da curiosidade das pessoas não se revistam em caso algum de interesse público, capaz de legitimar uma conduta intromissiva do jornalista nos direitos de personalidade alheios18, ou que tais matérias estejam circunscritas, exclusivamente, aos aspectos relacionados com o Estado e sua administração pública. Mas, é indubitável, neste último aspecto, que a participação do cidadão num processo de tomada de decisão numa democracia é fator que torna mais amplo os limites da crítica admissível na discussão política do que no debate relativo a outros temas de interesse geral.

Os tribunais, tanto a nível nacional como comparado, não realizam de forma expressa uma gradação das mensagens com a intenção de conferir proteção maior ou menor em função do assunto tratado, mas certamente o faz de forma indireta.

 

O direito de informação e a sua especial significação numa sociedade democrática, como instrumento imprescindível para informar, dar a conhecer fatos, formar as opiniões dos cidadãos sobre quem os pretende representar num cargo público, neste aspecto adquire relevância e atinge seu máximo nível de eficácia justificadora frente aos direitos de personalidade20.

De fato, como anota Marcos Barbosa Pinto21, “uma das mais relevantes razões de justificação e legitimação da liberdade de imprensa, está na convicção recorrente nas sociedades modernas, ainda que na prática ameaçada, de que o debate e o diálogo são os melhores e mais efetivos meios para se tomar decisões, legislar, definir políticas e direções governamentais, enfim, para se determinar a Justiça e, sobretudo, a verdade nas relações humanas. Tal convicção se nos apresenta mais evidente em se tratando de fatos políticos (…)”. 

O sistema norte-americano relativo à imprensa e a sua responsabilização por danos causados aos direitos de outrem (Libel law), já dissemos, foi o grande responsável pela concepção hoje globalmente difundida de diferenciação entre as pessoas públicas (vale lembrar, devido às funções que desempenham, a profissão que exercem, à ascenção social que atingiram ou ao poder e influência que possuem) e as pessoas não públicas, ou seja, aquelas que optam pelo anonimato e preferem se manter afastadas da atenção do público, atingidas por atos da imprensa, mais ainda em relação à promoção do diálogo político livre na medida em que implica um critério de culpabilidade mais favorável aos veículos comunicacionais através do critério da actual malice.

A viabilização do debate político no cenário social, permitindo aos governantes, candidatos e partidos expressarem suas idéias e comunicarem-se com o povo, faz da imprensa um poderoso instrumento do Estado democrático. O qual, não se olvida, pode funcionar também como um meio persuasivo de opiniões, ou mesmo fiscalizador do poder público, mais uma vez, porque sua função está longe de se limitar ao mero relato dos acontecimentos.

Em síntese, nas situações em que estejam em causa figuras públicas, nomeadamente candidatos ou titulares de cargos políticos, possibilita-se, mesmo antes de um raciocínio que conduza à tentativa de harmonização dos direitos contrapostos (respeitados que sejam o princípio da proporcionalidade e a não diminuição do conteúdo e alcance essenciais do direito que possa vir a prevalecer), o reconhecimento diminuído à partida da sua esfera de proteção22. Tendo-se que, no entanto, após um juízo fático-valorativo, precisar se a ofensa, através das expressões utilizadas pelo jornalista, traduzem um insulto pessoal de gravidade tamanha capaz de caracterizar uma violação à sua integridade moral, situação que, reiteramos, não está a coberta pelo exercício lícito do direito de informar e formar a opinião pública.

3) Outros requisitos de legitimação da conduta dos profissionais jornalistas: idoneidade, necessidade, proporcionalidade.

Decerto que para além dos requisitos da verdade dos fatos e do interesse público para a configuração do exercício regular do direito de informação, devem somar-se outros requisitos, como critério racional de equacionamento, a fórmula idoneidade mais necessidade maisproporcionalidade

As concepções idoneidade e necessidade relacionam-se essencialmente “à conduta do agente como meio (idóneo e necessário) à prossecução dos interesses legítimos em causa”23. A informação para ser divulgada deve ser necessária, indispensável à formação da opinião pública livre e saudável, da consciência e do desenvolvimento social, bases sólidas das instituições democráticas e da ideologia que nelas predominam. Necessárias e idôneas são as informações que correspondam com interesses superiores, que se revistam de conteúdos que consultem à fruição de interesse que mereça satisfação, e não apenas à curiosidade banal, ao desejo sequioso de conhecer os pormenores da vida alheia, sem as peias da ética, do respeito pela vida privada, honra e imagem, da moderação e adequação, dos bons costumes e da dignidade humana que compete a todo ser humano.

proporcionalidade, respeitando, sobretudo “à ponderação entre os valores ou interesses a promover e os atentados (lesão ou perigo) a inflingir à honra”24, reporta-se à forma adequada através da qual a notícia chegará ao público, ao local onde será publicada, à amplitude e ao alcance da matéria, ao destaque e ao impacto do título, do conteúdo, enfim da peça jornalística em geral. Ao existir meios disponíveis igualmente eficazes, há que se escolher o menos gravoso para o ofendido; “só será justificada a conduta que apareça como indispensável à salvaguarda dos interesses legítimos em causa”25. O princípio do mínimo dano implica que a notícia ofensiva da honra continue ilícita, ainda que exista interesse público, se houver excesso na sua divulgação26.

necessidade ou utilidade da informação constitui o termômetro que define a proporcionalidade e a adequação da notícia, a qual deve ser veiculada com preservação máxima dos direitos de personalidade, a fim de satisfazer um interesse público efetivo e louvável. “Não é infrequente ver a verdade espezinhada porque a serviço da notícia colocam-se meios inadequados, tendentes aoboom do resultado, mas mancos de espírito lícito e finalidade profícua”27. Ocorre que, muitas vezes, o excesso na veiculação dos fatos, o sensacionalismo estimulado pela concorrência predatória entre os veículos de comunicação, o desejo irrefreável pelo lucro, a ânsia pelo escândalo, deturpa informação verdadeira e extrapola os limites lícitos do dever de informação. 

A bem da verdade, o interesse público genuíno só estará presente numa informação quando esta, sendo verdadeira, seja necessária, ou relevante à coletividade, útil a uma finalidade política, cultural, artística, científica, desportiva, ou laser sadio da informação, e veiculada de forma proporcional, isto é, adequada em relação ao local onde foi divulgada, ao espaço, à amplitude e ao destaque que se destina a informação28.

1 Canotilho, Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6ª ed.. Coimbra: Almedina, 2002, p. 1266, sobre o problema dos limites, entende que “é irresolúvel através de critérios prévios, livres de qualquer ponderação, só podendo construir-se como resultado de ponderação de princípios jurídico-constitucionalmente consagrados”.

2 Idem, ibidem. Nesse sentido, Jorge, Fernando Pessoa. Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil. Coimbra: Almedina Editora, 1995, pp. 207/209. 

3 Nas palavras de Darcy Arruda Miranda apud Jabur, Gilberto Haddad. Liberdade de Pensamento e Direito à Vida Privada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 163.

4 Cf. Andrade, Vieira de. Os direitos fundamentais e a comunicação social. Apontamentos do Curso de Direito da Comunicação Social. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2004, pp. 3 e 4. 

5 Cf. Andrade, Manuel da Costa.. Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal: uma perspectiva jurídico-criminal. Coimbra: Coimbra Editora, 1996, p. 327

6 Ob. cit., p. 327

7 Cf. Correia, Luis Brito. Direito da Comunicação Social. v. I. Coimbra: Coimbra Editora, 2000, p. 577, “algumas correntes filosóficas modernas (com raízes antigas) recusam toda a transcendência (imametismo), ou negam a possibilidade de conhecimento racional do trancendente (agnosticismo), ou defendem que o conhecimento da verdade depende do ponto de vista do sujeito (subjectivismo), sendo, por isso, variável (relativismo). Alguns chegam mesmo a negar a existência de uma verdade (niilismo – Nietzsche)”. Para uma maior compreensão sobre o assunto, o autor remete para Jean Daujaut, Y a-t-il une vérité? Lês grandes réponses de la philosophie, Paris, Téqui, 1974, pp. 187 e segs.

8 “Rigor significa exactidão ou precisão na aplicação prática de uma norma. No caso de informações, o rigor significa que a descrição corresponde à realidade: não é falseada, nem distorcida, nem vaga. Exactidão significa correcção, apreciação justa ou rigorosa, cumprimento rigoroso e diligente dos deveres. Objectividade é a qualidade de quem descreve as coisas como elas realmente são, sem se deixar influenciar por preferências pessoais (subjetivas – do sujeito), sejam preferências religiosas, filosóficas, políticas, estéticas ou outras. Isenção é a qualidade de quem descreve as coisas com imparcialidade, com independência, sem se deixar influenciar pelos seus próprios interesses ou pelos interesses de terceiros a quem deseja servir (seja o governo, seja a oposição, seja determinado partido, força econômica ou social, ou seja um amigo)” (Idem, ibidem, p. 578).

9 Importante que se diga que nada obsta programas de ficção ou de humor, não correspondentes à realidade tal como ela se apresenta, mas deve estar claro para o público receptor que disso se trata. (Nesse sentido, Correia, Luis Brito, ob. cit., p. 576).

10 Andrade, Manuel da Costa, ob. cit., p. 162.

11 Cf. Jónatas Machado. Liberdade de Expressão, Dimensões Constitucionais da Esfera Pública no Sistema Social. Coimbra: Coimbra Editora, 2002, p. 588.

12 Como anota Zippelius apud Andrade, Manuel da Costa, ob. cit., p. 161.

13 Ainda que não em termos exatamente coincidentes, conforme adverte Jónatas Machado, ob. cit., p. 592.

14 Segundo Sousa, Rabindranath Capelo de, O direito geral de Personalidade. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 310, nota 775, a notícia lesiva da honra, deve ser analisada segundo princípios objetivos de apreciação que apelam a padrões de sensibilidade média de um bom pai de família, por constituir a honra a “projecção na consciência social do conjunto de valores pessoais da cada indivíduo”.

15 Del Vecchio apud Andrade, Maria Paula Gouveia. Da Ofensa do Crédito e do Bom Nome: contributo para o estudo do art. 484 do Código Civil. Lousa: Tempus Editores, 1996, p. 88.

16 Idem, ibidem, p. 105. 

17 Cf. Pinto, Marcos Barbosa. Liberdade de imprensa e responsabilidade civil dos meios de comunicação. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, Ano 36, jul./ set., São Paulo: Malheiros Editores, 1998, p. 17. 

18 Se não se revestem de interesse público pela matéria, podem revestir-se pelo caráter público da pessoa noticiada. 

19 Cf. Bueso, Laura Díez. La relevancia pública en el derecho a la información: algunas consideraciones. Revista Española de Derecho Constitucional, Madrid, nº 66, Ano 22, Septiembro/Diciembre, 2002, p. 218. 

20 Na verdade, conforme nos relata Cassano, Giuseppe. Persona e Diritto Civile. Napoli: Edizioni Giuridiche Simone, 2000, p. 19, quanto maior o relevo público do personagem, tanto maior será o interesse do público pelo conhecimento de determinados fatos ou notícias.

21 Idem, Ibidem, pp. 17 e 18.

22 Segundo Chamarro, Asunción de la Iglesia. O derecho a la propia imagen de los personajes públicos. Revista Española de Derecho Constitucional, Madrid, Año 23, n° 67, en/abr., 2003, p. 290: “Y es que el derecho a la própria imagem, al igual que ocorre côn el derecho a la intimidad, se configura como una faculdad de exclusión sobre un âmbito de reserva elástico, que se restringe notablemente en el caso de los personages públicos”.

23 Andrade, Manuel da Costa, ob. cit., p 370.

24 Idem, ibidem, p 370.

25 Ob. cit., p. 371.

26 Nesse sentido, Vasconcelos, Pedro Pais de. Teoria Geral do Direito Civil. 2 ed.. Coimbra: Almedina Editora, 2003, pp. 62 e 63.

27 Ob. cit., p. 106.

28 Weingartner Neto, Jayme. Honra, Privacidade e liberdade de Imprensa: uma pauta de justificação penal. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2002, p. 273, citando Eugénio Bucci,Sobre ética e imprensa, Companhia das Letras, São Paulo, 2000, p. 226, neste aspecto, reporta-se à ética jornalística, a partir de uma obrigação especial dos jornalistas: “garantir que os negócios públicos sejam conduzidos às claras e que os registros governamentais sejam abertos à inspeção”. Neste desiderato, a espionagem e outros métodos sub-reptícios comportam exceção e são permitidos. A ilicitude vai, preenchidos os requisitos, excluir-se pela necessidade.