Proibição da múltipla persecução penal no sistema jurídico-constitucional brasileiro


PorFernanda dos Passos- Postado em 10 novembro 2011

Autores: 
CASTRO, Júlio César da Silva

Em se tratando de processo penal, o rigor técnico da ciência processual há de ceder perante os princípios maiores do favor rei e do favor libertatis. E o dogma do ne bis in idem deverá prevalecer, impedindo nova persecução penal a respeito de fato delituoso que foi objeto de outra ação penal.

RESUMO

Este artigo trata do princípio do ne bis in idem, que veda a persecução penal múltipla, com o objetivo de verificar se foi consagrado no texto da Constituição Federal de 1988 e quais seus efeitos práticos. Para atender ao proposto, desenvolve-se a pesquisa mediante a técnica bibliográfica, do tipo exploratório, com embasamento doutrinário e documental. Na apresentação didático-procedimental, o texto é subdividido em quatro seções de desenvolvimento: a primeira analisa o processo penal brasileiro e sua vertente garantista; a segunda define a cláusula ne bis in idem; a terceira é dedicada à história do princípio do ne bis in idem; e a quarta analisa a proibição da múltipla persecução penal no sistema jurídico-constitucional brasileiro. Ao final, conclui-se que o princípio do ne bis in idem implica na garantia de que ninguém pode ser julgado duas vezes pelo mesmo fato, mesmo que surjam novas provas.

Palavras-chave: Processo penal. Persecução penal. Ne bis in idem.

ABSTRACT

This article deals with the principle of "ne bis in idem", which prohibits multiple criminal prosecution, in order to verify that was enshrined in the Constitution of 1988 and what its practical effects. To meet the proposed research is developed through the technical literature, exploratory, with basement and doctrinal documents. In presenting didactic and procedural, the text is divided into four sections for development: the first analyzes the criminal justice process and guarantee section, the second clause defines the "ne bis in idem" and the third is devoted to the history of the principle of "ne bis in idem", and the fourth examines the prohibition of multiple criminal prosecution in the Brazilian legal system and constitutional. Finally, we conclude that the principle of "ne bis in idem" means the assurance that nobody can be tried twice for the same offense, even if new evidence arise.

Keywords: Criminal procedure. Criminal prosecution. "Ne bis in idem".

SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO. 2 PROCESSO PENAL DE GARANTIAS. 3 CONCEITO DE NE BIS IN IDEM. 4 ARCABOUÇO HISTÓRICO DO PRINCÍPIO DO NE BIS IN IDEM. 5 PROIBIÇÃO DA MÚLTIPLA PERSECUÇÃO PENAL NO SISTEMA JURÍDICO-CONSTITUCIONAL BRASILEIRO. 6 CONCLUSÃO. 7 REFERÊNCIAS.


1 INTRODUÇÃO

O direito penal é formado por um conjunto de normas jurídicas que regulam o poder punitivo do Estado, tendo em vista os fatos de natureza criminal e as medidas aplicáveis a quem os pratica. Trata-se de um segmento da ordem jurídica com a função de selecionar os comportamentos humanos mais graves e prejudiciais à coletividade e, destarte, capazes de colocar em risco valores fundamentais à convivência em sociedade, descrever tais condutas como infrações penais (tipificação), cominar, em consequência, as respectivas sanções, e estabelecer todas as regras complementares e gerais necessárias à sua reta aplicação.

Quando se fala em direito penal pode-se entender esta expressão em dois sentidos: como conjunto das normas positivas que disciplinam a matéria dos crimes e das penas - sinônimo de legislação penal -, ou como o conjunto dos princípios que regulam a multiplicidade das mesmas normas - ciência jurídica penal e a elaboração conceitual dos princípios informadores da legislação.

O direito penal, se por um lado define as condutas delituosas, concedendo ao Estado, caso ocorra um fato típico e antijurídico descrito anteriormente pela lei penal, o direito a iniciar a persecução penal; por outro, é garantia individual do limite estatal de intervenção no direito de liberdade do agente que, em tese, tenha cometido um delito.

Nas sociedades democráticas, o direito penal caracteriza-se pela mínima intervenção, embasado nos princípios da subsidiariedade e da fragmentariedade, e pela máxima garantia dos direitos individuais fundamentais, tendo por função defender os direitos humanos positivados nas Constituições e no direito internacional. O Estado de Direito na democracia é essencialmente garantístico. Neste contexto, o garantismo penal assume papel fundamental: ao passo que sustenta o direito penal, leva as garantias positivadas pelo constitucionalismo ao alcance dos indivíduos (CARVALHO, 1999, p. 752). Com efeito, a conquista da valoração da pessoa humana constitui um bem da civilização contemporânea que não pode ser destruído ou minimizado.

A atual difusão incontrolada de fatos como latrocínios, estupros, homicídios, chacinas, terrorismo, tráfico de drogas, lavagem de dinheiro, crimes econômicos, crimes ambientais, ao lado da recente tomada de consciência coletiva de que os riscos produzidos na sociedade contemporânea são de ampla dimensão lesiva, vêm produzindo no senso comum uma sensação de insegurança e a decorrente conclamação do direito penal para atuar diante desses novos problemas sociais.

Neste contexto, para equilibrar a insegurança das relações complexas (direito penal de eficácia), a sociedade demanda um direito penal cada vez mais intervencionista, desejo coletivo prontamente atendido pelos legisladores penais, o que vem propiciando ao Estado um poder ilimitado e, por conseguinte, irracional e incerto, justificado pelos argumentos fantasiosos da "segurança pública".

O atual drama do direito penal contemporâneo é conciliar a tutela da segurança social com o as garantias individuais fundamentais da pessoa humana.

Na busca de soluções para a questão da criminalidade moderna, acirrados e acalorados debates são levantados sobre a tutela dos bens jurídicos individuais e supra-individuais, a proteção dos direitos humanos, o conceito de conduta e ação delitiva, a imputação objetiva, a prevenção da pena, o simbolismo penal, dando origem aos mais variados entendimentos. Neste contexto insere-se o princípio-garantia do ne bis in idem, uma das fórmulas do direito internacional dos direitos humanos emergente no século XX, como forma de garantir segurança jurídica diante das diversas formas de intervenção estatal.


2 PROCESSO PENAL DE GARANTIAS

A onda de reconstrução do Estado de Direito, que inspirou as atividades parlamentares de então, teve como uma das principais consequências a adoção de um a nova ordem instrumental penal, de essência garantística.

Este redimensionamento político do processo penal materializa-se não apenas com um novo corpo de normas constitucionais, aqui compreendidos também os tratados de direitos humanos ratificados e que integram o texto constitucional com o mesmo status, indo mais além, na busca de um engajamento dos atores da justiça criminal com a construção de uma efetiva repressão criminal e, por tabela, com a definição de um conceito de segurança pública.

Portanto, tão importante quanto elencar princípios consagrados expressamente nos textos constitucionais nos tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos a ela incorporados, é entender seu significado metajurídico, principalmente nos campos ético e social para, a partir disto, construir uma nova ordem legal infraconstitucional. Esta compreensão é desejável, sobretudo porque a matéria é altamente suscetível de retrocessos em nome de uma política de segurança dita "eficiente", vulgarmente encarada dentro de um modelo repressivo onde o respeito ao ser humano que, casualmente, torna-se um suspeito, réu ou condenado não está necessariamente na ordem primeira da pauta de preocupações da agenda política.

Para tanto, é importante não apenas compreender o conteúdo (e a cultura) das normas garantistas contidas nos textos constitucionais, mas tecer algumas considerações sobre determinados conceitos que permanecem nebulosos, sobretudo princípios, garantias, direitos dos indivíduos, direitos humanos e direitos fundamentais.

Atecnicamente, o termo "princípio" é definido como aquilo que dá origem ao todo, constituindo sua base ou essência. Seguindo-se esse conceito, pode-se deduzir que os princípios guardam urna dose de generalidade e abstração que tendem a torná-los aparentemente inacessíveis na prática.

Contudo, na atualidade os princípios recebem outra conotação. Como enfatiza Paulo Bonavides (2000, p. 265), observa-se contemporaneamente:

[...] a passagem dos princípios da especulação metafísica abstrata para o campo concreto e positivo do direito, com baixíssimo teor de densidade normativa; a transição crucial da ordem jusprivatista (sua antiga inserção nos Códigos) para a órbita juspublicística (seu ingresso nas Constituições); a suspensão da distinção clássica entre princípios e normas; o deslocamento dos princípios da esfera da jusfilosofia para o domínio da Ciência Jurídica; a proclamação de sua normatividade; a perda de seu caráter de normas programáticas; o reconhecimento definitivo de sua positividade e concretude por obra sobretudo das Constituições; a distinção entre regras e princípios, como espécies diversificadas do gênero norma, e, finalmente, por expressão máxima de todo esse desdobramento doutrinário, o mais significativo de seus efeitos: a total hegemonia e preeminência dos princípios).

Destarte, em seu conceito técnico-jurídico, os princípios têm várias funções dentro do ordenamento, podendo-se destacar as de racionalização, interpretação e coesão.

A garantia, ao seu turno, pode ser definida como o instrumento ou meio técnico-jurídico que tenha o condão de converter um direito puramente reconhecido ou atribuído em abstrato pela norma em um direito efetivamente protegido em concreto e, assim, suscetivel de plena atuação ou reintegração, se foi violado, conferindo a este conceito um caráter instrumental em relação a uma norma de fundo que, embora sem ser expressamente afirmada pelo autor, repousa na seara dos direitos fundamentais, que nada mais são que os direitos humanos protegidos pela ordem constitucional interna (SARLET, 2005, p. 29-35).

Acompanhando a contemporânea doutrina constitucional, pode-se afirmar que a dignidade da pessoa humana é o grande valor de fundo a ser instrumentalizado pela garantia, afinal, uma Constituição verdadeiramente comprometida com a dignidade humana é aquela que lança os contornos de sua compreensão, impondo-a dever jurídico fundamental do Estado constitucional.

Desta maneira, todas as garantias constitucionais servem para a promoção dessa dignidade e jamais podem ser empregadas em regras ou em interpretações que constituam desserviço a ela. Por esta razão, não se pode admitir gradação de garantias tomando como base aquelas que façam parte ínsita do núcleo do denominado "devido processo legal". Isto porque a dignidade que fundamenta a garantia não pode ser graduada. Assim, não existe processo parcialmente obediente à dignidade da pessoa humana, esculpido por garantias que correspondam ao due process e outros completamente a elas obediente.

Portanto os princípios constitucionais da legalidade, do contraditório, da ampla defesa, etc. não são fins em si, mas instrumentos pêlos quais se alcança a tutela da integridade da dignidade da pessoa humana. A dignidade da pessoa humana como fundamento maior do sistema implica a formação de um processo banhado pela alteridade, ou seja, pelo respeito à presença do outro na relação jurídica, advindo daí a conclusão de afastar-se deste contexto o chamado modelo inquisitivo de processo, abrindo-se espaço para a edificação do denominado modelo acusatório. Fundamentalmente aí reside o núcleo da expressão que afirma que o réu é sujeito de direitos na relação processual (ou fora dela, desde já na investigação), e não objeto de manipulação do Estado (CHOUKR, 2006, p. 7-8).


3 CONCEITO DE NE BIS IN IDEM

A expressão latina ne bis in idem, aut bis de eadem re ne sit actio, é hoje consagrada como princípio geral de direito, e consiste na proibição de julgar-se o mesmo fato duas ou mais vezes (GUEDES, 2006, p.12). É utilizada para significar a proibição de um segundo processo pelos mesmos fatos já apreciados pelo Poder Judiciário. Significa dizer que um bem jurídico obtido por meio de uma ação judicial não pode ser objeto de uma nova ação com o mesmo intento.

Na definição de Fábio Medina Osório (apud GUEDES, 2006, p.1):

A idéia básica do ne bis in idem é que ninguém pode ser condenado duas ou mais vezes por um mesmo fato. Já foi definida essa norma como princípio geral de direito, que, com base nos princípios da proporcionalidade e coisa julgada, proíbe a aplicação de dois ou mais procedimentos, seja em uma ou mais ordens sancionadoras, nos quais se dê uma identidade de sujeitos, fatos e fundamentos [...].

De acordo com as explanações de Glênio Sabbad Guedes (2006, p.2), para caracterizar o ne bis in idem, "há a necessidade de coexistirem dois elementos, a dizer : a mesma causa de pedir, e identidade de réu. E só!", Explica que "não há, aqui, identidade de autor, pois que, no campo penal, o Estado será sempre o autor, por ser ele o único titular do ius puniendi", também entende que "nem mesmo quando o ofendido move a ação penal pode-se dizer ser ele o autor, porquanto, na realidade, em nosso sistema, funcionará como mero substituto processual do Estado". Quanto à causa de pedir, o autor em comento lembra que "tratar-se de um mesmo fato, do qual se extrai a conseqüência jurídica", com efeito, "não se trata de indicar um dispositivo legal, e a ele ficar-se atrelado. O fato permanece o mesmo, independentemente da roupagem legal que eventualmente ganhar em um segundo processo, reitere-se, abordativo do mesmo fato".

Destarte, o que vai definir o fenômeno do ne bis in idem é a unidade de sujeitos, fatos e fundamentos, entendidos da forma a seguir: "o sujeito puniente é o mesmo? O fato, naturalístico, objeto da lide, é o mesmo? O fundamento jurídico, a categoria jurídica em que se enquadra o fato, é a mesma? Se positiva a resposta, tem-se bis in idem, e sua conseqüente proibição" (GUEDES, 2006, p. 2-3).

O Gabinete de Relações Internacionais do Ministério da Justiça Português (GRIEC, 2006, p.7) considera relevante para os efeitos da aplicação do princípio ne bis in idem:

[...] saber se alguém foi, ou não, objeto de uma decisão final transitada em julgado, de uma jurisdição penal condenatória ou absolutória, devendo ser considerada não só apreciação do mérito, mas também as causas de extinção do procedimento criminal.

Em termos gerais, o princípio ne bis in idem, vem sendo aplicado, atualmente, em dois sentidos: a) na vertente processual, que corresponde à inadmissibilidade de múltipla persecução penal, simultânea ou sucessivamente, pêlos mesmos fatos, vinculando-se à garantia constitucional da coisa julgada; e b) no âmbito material, que diz respeito aos limites jurídico-constitucionais da acumulação de sanções penais e administrativas pêlos mesmos fatos e mesmos fundamentos, ainda que impostas em ordens sancionadoras diversas (SABOYA; DANTAS, 2006, p. 150).

Ao tratar do tema, León Villalba (apud SABOYA; DANTAS, 2006, p. 150) observa que:

Na atualidade, o princípio superou a noção tradicional limitada ao efeito preclusivo processual interno, ou no máximo de caráter bilateral entre uma sentença interna e outra de um país estrangeiro, quer dizer o efeito processual externo, incorpora uma vertente substancial que deixa sentir seus efeitos, essencialmente, na regulação de hipóteses de concorrência de normas sancionadoras sobre um mesmo fato. aplicando a máxima em seu conjunto, no que temos denominamos de proteção internacional do princípio. Mas o que sem dúvida alguma constitui o ponto fundamental [...] é a possibilidade de aplicar o princípio ne bis in idem às hipóteses de concorrência entre sanção administrativa e penal [...].

A alusão ao princípio ne bis in idem é feita por meio de fórmulas de diversas extensões, podendo ser agrupadas em: uma de alcance mais restrito e outra de alcance mais amplo.

a) a fórmula de alcance limitado, restrito, se refere apenas à reação penal material, isto é, à consequencia da perpetração de um fato punível. Essa limitação é claramente apontada no texto do artigo 103, inciso III, da Constituição da República da Alemanha: "ninguém pode ser apenado várias vezes pelo mesmo fato" (SABOYA, 2006, p. 150).

Essa forma de regular a garantia, por seu alcance e pela oposição ao conceito mais amplo, é denominada de "sentido meramente material". A consequência mais importante que dela se deriva é a carência de recursos jurídicos para admitir a revisão de uma senteça definitiva, mesmo contra o imputado absolvido ou condenado por um fato punível menos grave ou a uma pena mais leve que a correspondente e, em geral, a ausência de previsão jurídica para conceber o recurso do Ministério Público contra a sentença. Com efeito, o único que a sentença garante, especialmente quando se refere à pena, é que uma pessoa não sofra a reação penal mais de uma vez.

b) a segunda fórmula é de alcance mais amplo, no sentido de impedir a múltipla persecução penal. Por ela se extende como garantia de segurança para o imputado, no âmbito do procedimento penal. Por essa razão, tem também sentido processual e cobre o risco de uma nova persecução penal quando já encerrada uma anterior ou ainda em curso.

O principal efeito da regra assim concebida consiste em impedir absolutamente toda possibilidade de estabelecer o recurso de revisão contra o imputado absolvido ou o condenado por um delito mais leve; em conjunto com o direito ao recurso do condenado determina, também, a abrogação da faculdade do acusador de recorrer à sentença, ao menos em alguma instância. Além disso, a forma ampla do princípio em tela estende sua influência ao mesmo trâmite processual, declarando inadmissível tanto o regresso sobre uma persecução penal já esgotada, no sentido do aforismo res iudicata pro veritate habetur, quanto a persecução penal simultânea ante distintas autoridades, e não apenas por razões meramente formais relacionadas à questões de competência.

Por fim, ainda existe uma fórmula intermediária, como a da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, que concede apenas ao acusado absolvido por sentença transitada em julgado a garantia de não ser submetido a novo processo pelos mesmos fatos.

De qualquer modo, o fundamento do princípio ne bis in idem "reside na necessidade de segurança jurídica, como uma limitação ao poder punitivo estatal, considerando o caráter repressivo do direito penal" (princípio garantista), e "na idéia de que a cada indivíduo será aplicada a sanção correspondente e suficiente para os seus atos (princípio da proporcionalidade)" (JAPIASSÚ, 2003-2004, p. 96).